quinta-feira, 24 de agosto de 2023

Milinho do Precatório

 

                                                                                                        J. Flávio Vieira

--- Oxe ! Degraça pouca é meio de vida !

                        Com esse axioma, o professor Gilbertino adentrou a praça da matriz de Matozinho, pronto a desdobrar uma tese de banco de praça. Aos poucos se foi juntando uma rodinha, a princípio de bicicleta e, quando avolumou-se em feitio de roda de trator , ele debulhou o resto da glosa.

                        -- Vejam vocês a triste sina de professor! A vida inteirinha ganhando salário de miséria, que, no final do mês perde, inclusive para cuia de cego! De repente, sabe-se lá como, chega uma notícia que vão receber uma dinheirama danada dum tal de Precatório do FUNDEF. Aí, começa logo o suplício, com uma ruma de carcará querendo morder uma parte do quinhão. Onde é que se viu professor ter direito a alguma coisa, né mesmo ? A APEOC , entidade de classe, propôe, rapidamente, que a grana seja dividida por todos os professores do estado e não apenas para aqueles que tinham direito por tempo de serviço. Os dirigentes queriam fazer cortesia com o chapéu alheio, de olho, claro, nas eleições vindouras. Uma banca de advogados, contratada por alguns professores, de repente, resolve cobrar honorários de todos os mestres do estado, descobriu a galinha dos ovos de ouro, a dinheirama chegaria para eles próximo de meio bilhão de reais!  E ainda estão aí sojigando o povo, mandando cartinha de cobrança para tudo quanto é lado !  Nélson Rodrigues dizia que tutu compra até amor verdadeiro. Pois o dinheirinho fez milagre: ex-marido voltou a se apaixonar pela esposa; filho brigado retornou pra casa da mãe professora, chorando e a chamando de mamã; coroa encalhada teve que abrir ficha de inscrição para pretendentes!  Já vi que onde dinheiro não resolver, meus amigos, é porque foi pouco ! No início do ano  Onevaldo Jurema , aquele  cambista de jogo do bicho, tava largando a mulher. Arranjou um amancebo com uma balconista da Farmácia de Liberalino. Já estava o casal cada qual com seu advogado, brigando por dois ou três picuaios. Quando sopraram no pé do ouvido de Onevaldo do tal do precatório, o homem reapaixonou-se, pediu perdão à mulher de joelhos e, dois meses depois, antes da grana chegar, ela já estava prenha  de novo. Nené Jurema anda mais santo do que o Papa Chico.   O menino nasceu semana passada, roliço, sorridente como bezerro em manga nova. Eu só estranhei o nome do cristão: Camilo Precavinte! Perguntei a Nené de onde tirou aquele nome estrambótico para sapecar num cristão. Ele não teve arrodeio. O Camilo veio em homenagem ao governador que desencavou a bufunfa. Achei estranho o sobrenome de Precavinte. Nené , então, descaroçou:

                        --- Ora!  O Preca vem do tal de precatório, sem ele o menino não tinha vindo ao mundo!

                        --- E o vinte ? De onde diabos tu tirou vinte ?

                        --- Quando eu e a mulher estávamos pra nos apartar , desconfiei que ela tava com algum escandelo com o advogado dela. Por vias das dúvidas -- seguro morreu de velho --  resolvi homenagear o homem e coloquei os vinte pensando em 20% , acho que é essa pelo menos a contribuição que ele deu na fabricação de Milinho !  

Crato, 24/08/2023

                       

                              

sexta-feira, 18 de agosto de 2023

Que país é esse ?

 

 

Viva o Brasil
Onde o ano inteiro
É primeiro de abril

Millôr Fernandes

 

J. Flávio Vieira

                               Quem portasse um mínimo de discernimento ,rapidamente,  mataria a charada antes do seu final. Bastava olhar a trajetória da família Bolsonaro na política ,que se estendia, então,  já há mais de vinte anos,  para entender que tudo era a crônica de uma tragédia anunciada. E aí embarcamos no trem fantasma, numa viagem de quatro anos: a cada esquina um monstro diferente. O preço do ingresso foi altíssimo:  mais de setecentas mil mortes pela Covid; descrédito  diplomático internacional jamais visto; corrupção desenfreada; ameaça real à Democracia; disseminação de armas de fogo junto à população; pregação continuada de ódio em nome de deus.

                        Se no holocausto previsível,  o capitão carreou um terço da população  como um novo Jim Jones e, usando todos artifícios espúrios, quase consegue a reeleição, há, no entanto, um aspecto da catástrofe que me parecia muito mais improvável. Expulso um dia das Forças Armadas por indisciplina, o ex-presidente convenceu o Exército a segui-lo cegamente no seu voo rumo ao desastre. Permitiram acampamento de golpistas junto aos quartéis; fizeram vista grossa à tentativa de golpe de 08 de janeiro. Inimaginável presenciar um general , cargo mais alto na hierarquia, envolver-se na tentativa de vender e comprar o produto de um furto aos cofres públicos. Coisa que pensávamos ser destinada apenas a muambeiros e contrabandistas de somenos importância. Testemunhar o ex-assessor da presidência, Mauro Cid, fraudar Carteiras de Vacinação e vender , em viagem oficial, presentes pertencentes à União, parecia-nos filme de ficção científica. O Tenente-Coronel Mauro  foi , segundo consta, um dos mais brilhantes alunos da AMAN. Como é possível ter aceitado uma missão tão rasteira ? Que pensar dos outros colegas da Academia menos graduados ? O Exército, no seu depoimento à CPI, permitiu que Mauro se apresentasse fardado, ou seja:  abraçou a causa como sua e fez com que todos os desdobramentos, a partir daí, viessem  manchados de Verde Oliva.   O General Heleno, tão contundente, disse em junho de 2019 que um presidente desonesto deve pegar prisão perpétua, que é um deboche para com a sociedade. Continua valendo sua assertiva ? E militares desonestos, funcionários públicos, pagos com nossos impostos,  que pena deve lhes ser atribuída?  Esse, certamente, não é o Exército de Caxias e Barroso e  que , estudantes, aprendemos a admirar nos bancos de escola.

                        Hannah Arendt concluiu que Eichmann , um dos responsáveis pela chacina dos judeus nos Campos de Extermínio, era apenas um burocrata cumpridor de ordens. Isso, claro, não os isenta de culpa. Se queremos um país limpo,   é preciso punir os mandantes e seus ajudantes de ordem. Quanto maior a graduação, maior a culpa. É inconcebível que enquanto milhares moram na rua, milhares em insegurança alimentar, crianças prejudicadas definitivamente em suas vidas por conta de desnutrição, vidas e famílias despedaçadas  por mera incúria governamental; é inconcebível que uma elite política e econômica predatória, esteja, impunemente, dançando em bacanais e dividindo o butim. Que país é esse ?

Crato, 18/08/2023

                         

sábado, 12 de agosto de 2023

Carta ao pai

 


Aos poucos a imagem que vejo refletida no espelho mais e mais se assemelha com a sua. Talvez porque você tenha ficado com um ar ainda juvenil    na foto pendurada na parede, como se posando para cliques futuros que não mais se revelariam. Seu sorriso agora parece pender dos meus lábios e até aquele ar resignado e tranquilo de que tudo acontece porque já estava previsto acontecer. O reflexo no espelho está cada vez mais parecido com o retrato do álbum que esmaeceu sob o poder dos influxos do tempo. Percebo, mais que nunca : herdei  muitos daqueles traços físicos e de personalísticos com os quais convivi e, alguns, até abominei. A profundidade do olhar, a perda do brilho faiscante das pupilas, o desapego aos tesouros materiais que incandescem os meninos de hoje. Cada vez , também, te sinto mais presente nos meus gestos, nas minhas tiradas de humor, no andar, num hábito de gemer após cada bocejo, nos pitocos de unhas ruídas e até nos mínimos toques de mãos.

                        Só não me ficou aquele amor telúrico seu pelo mato. Como um teju apegado ao sertão o que fez com que você aos poucos se mimetizasse  com a folhagem ressequida e as agruras e rachaduras  do chão. Mas te percebo vivo em mim no meu sossego, no meu recolhimento meio monástico e no prazer que emana dos textos e dos poemas que me escorregam pelos olhos.

                        Tento fugir da memória cruciante da tua partida, quando a vida , aos poucos, desceu em correnteza rumo à foz. E ali estávamos nós, totalmente incapazes de mudar o curso das águas. Fixo o pensamento nos dias tranquilos  de calmaria, quando boiávamos no fluxo do rio, sem baronesas e sem marolas. A paisagem ao redor nos enebriava, as nuvens , no alto, desenhavam figuras oníricas e espumosas e a travessia até parecia ir para  um porto seguro.  Nada predizia as cascatas e corredeiras que armavam bote logo à frente.

                        Hoje, olho meus filhos e netos e vejo que tudo se repete, como num moto-contínuo. O rio nunca mais é o mesmo, mas o seu fluxo é permanente e imutável.  No fundo, nada muda, apenas a correnteza flui.

                        Um dia o espelho estilhaçou, para nosso espanto. Tua imagem, pai, já não é una, mas multiplicou-se e brilha em cada um dos pedacinhos como novas estrelas e novos sóis.  Cada fragmento carrega consigo um facho da luz primal do espelho original.  Daqui a pouco os meninos estarão brincando em algazarra aqui no oitão de casa,  você estará com ar juvenil na foto da parede, mas há um estilhaço seu refulgindo em cada cantinho de nós.

Crato, 11/08/2023