sexta-feira, 29 de julho de 2022

Morando num Site, vivendo de Likes

 

 


                               Andy Warhol  já profetizara, nos anos 60, que no futuro, todo mundo teria seus quinze minutos de fama. Falava sobre as celebridades instantâneas aquelas que, pelos novos tempos, surgem, brilham e, como estrelas cadentes, rapidamente desaparecem no espaço. Nem imaginava, certamente, o nosso pintor pop,  que se fazia o Nostradamus de uma era tecnológica que estava pronta a eclodir,  pouco depois do seu desaparecimento em 1987. A Internet e, depois, as Redes Sociais,  possibilitaram a aparição  multiplicada dos famosos de quinze minutos. O mundo se tornou pequeno, a intimidade passou a ser um pecado irremediável e, hoje, não mais interessa a vida real, apenas aquela virtual que se mede , em importância, pela quantidade de likes e de visualizações. Os novos messias têm milhares de seguidores no espaço cibernético e se tornam influenciadores de uma manada de robôs que os seguem, religiosamente, como se tratassem de gurus.  Antigamente, para se ter certeza que uma pessoa estava viva, se verificava os sinais vitais, hoje medem-se as curtidas e o número de seguidores. Ai do desgraçado que não tiver postado sua foto de viagem no Instagram, seu registro de uma festa badalada, uma beira de praia, a Torre Eiffel, a Estátua da Liberdade, o jantar no restaurante famoso. A felicidade deixou há muito de ser um adereço interno, hoje só vale , mesmo que postiça,  se projetada para todo o mundo curtir e, principalmente, invejar.

                        Tom Jobim reclamava dos brasileiros que, ao contrário dos americanos do Norte, não gostavam dos seus heróis. Se alguém fizesse sucesso aqui era logo observado com olhar atravessado: Só pode ter tramoia pelo meio! Aos poucos, no entanto, com o advento da panaceia eletrônica, parece que fomos, pouco a pouco, absorvendo o way of life dos gringos. E temos à brasileira uma visão muito pragmática do homem de sucesso. Aquele que amealhou uma quantidade expressiva de grana, que tem carros importados, que usa as roupas das mais finas grifes, que frequenta os ambientes mais requintados e faz as viagens mais mirabolantes. É a quantidade de dinheiro na conta bancária a trena que mede o sucesso de uma pessoa ou seu fracasso. E, percebo, já não interessa muito os meios utilizados para chegar no Shangri-lá. Até porque, no Brasil, o ilícito torna-se facilmente lícito desde que se pague o preço pela transformação. É só pagar a tabela. Quando perguntamos por amigos que não vemos há muito tempo, é frequente sermos informados que estão em outros locais, estabelecidos  e , diga-se de passagem, estão muito bem ! O bem , aí, não significa que se encontram em perfeita  saúde, realizados nas suas atividades e profissões, com famílias equilibradas e felizes. O bem diz respeito basicamente ao seu plural: aos bens !

                        É claro que essa corrida desenfreada em busca da felicidade palpável e material tem seus muitos inconvenientes. Como em toda competição são poucos os que sobem ao pódio e muitos os perdedores. E mais: faz parte intrínseca do meu suposto sucesso a derrota inevitável dos outros competidores. Ao nosso redor não temos amigos e companheiros, apenas concorrentes prontos a puxar o nosso tapete para cruzar a linha de chegada. Estaremos sempre sós na competição e, por melhor atleta que termine por me tornar, não se ganha sempre, um dia a casa há de ruir. Atrelando a ideia de felicidade apenas ao material, há de se entender que o tempo oxida o ferro, corrói as rochas, faz tombar as árvores mais frondosas. Quando isso ocorrer,  a saída mais palatável não pela porta dos fundos ?

                        Quem seria, afinal, o homem ou a mulher de sucesso? Se a conclusão for a que se tem hoje,  que depende basicamente da riqueza que se pode acumular com o passar dos anos, podemos concluir que Francisco de Assis, Chico Xavier, Padre Lancelotti, Jesus Cristo, Hélder  Câmara, o Dalai Lama, Francisco I e Gandhi  são ou foram uns frustrados e chefes dos cordões de infortúnios da humanidade. Os mais felizes serão encontrados, então, nas páginas da Revista Forbes. No fundo, tudo depende do que você, caro leitor, entende pelo que pode se considerar sucesso. É você que tem a balança e o metro para aferir. Cada um tem o direito sagrado de despender sua força, seu suor e seu tempo em busca daquilo que acredita lhe trará ventura e completude. Cada um dos caminhos , certamente, tem seus pedregulhos e seus abismos. Mas sempre me fica a sensação de que quanto mais minha busca seja por uma bem-aventurança  que ultrapasse as fronteiras do meu quintal e possa  se espraiar para outros viventes, ser compartilhada pessoalmente e não apenas pelo Facebook, maior será minha satisfação e meu júbilo e, multiplicada por outros corações e mentes, mais imune estará ao caruncho dos dias e ao bolor das horas.

 

Crato, 28/07/2022

sexta-feira, 22 de julho de 2022

A Riqueza de Ver e de Ser

 

J. FLÁVIO VIEIRA

 

“Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que nossos olhos
nos podem dar
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver”

Alberto Caeiro

 

 

                               Quem mora na metrópole tem sempre a percepção que a grandeza dos espaços, o formigueiro de gente, a velocidade acentuada dos passos e dos veículos, a suntuosidade dos edifícios tudo isso se reflete, imediatamente, numa melhor visão do universo e numa plenitude maior das almas. Como se o tamanho da cidade fosse diretamente proporcional à  importância dos seus habitantes. Cidades grandes, pessoas grandes ;  pequenas vilas, viventes menores!  Nem percebemos que, no fundo, tudo é uma mera questão de foco. A grandiosidade da urbe nos abre uma grande angular para a  percepção do mundo, mas perdemos o zoom para o mínimo e para o detalhe. Passa-se a contemplar o cosmos com um certo distanciamento, as pessoas (embora tantas e multiplicadas) estão sempre longe, cada qual no seu quadrado. Em meio à multidão sentimo-nos sós e solitários, nosso ciclo de amizades restringe-se aos colegas de trabalho e à família, não fazemos parte da complexidade do todo. O vizinho separado de mim por apenas uma parede e que mora contíguo é um inteiro desconhecido. Como no princípio da incerteza de Heisenberg é impossível, para qualquer um de nós,  ter a visão macro e micro do Cosmos, é sempre uma questão de escolha. Os habitantes das metrópoles imaginam os interioranos como caipiras, ingênuos e atrasados. Os interioranos vêm os da capital como doidos correndo atrás de um objeto inatingível, uns bestas em carreira disparada em procura do abismo. São  uns cegos sem guia, impossibilitados de ver, ofuscados pela imensidão das cidades onde habitam,  como diz o nosso Alberto Caeiro.

                               Na última semana,  estive em Mangabeira, um pequeno distrito de Lavras, conhecido carinhosamente por São José de Mãe Velha. A vilazinha, um dos epicentros da gigantesca Cultura carirense,  encontra-se encravada num lugar mágico, a 20 kilometros de Várzea Alegre, de Cedro e de Lavras da Mangabeira. Naquelas cercanias, não por acaso,  vieram ao mundo artistas  fabulosos: o cantador Geraldo Amâncio, o escritor Padre Antonio Vieira, o músico Nonato Luiz, o grande artista plástico Bruno Pedrosa ( hoje radicado na Itália), o cantor Gilberto Milfont, o repentista Zé Gonçalves, os poetas Zé Clementino e Sávio Pinheiro, , o grande intelectual João Gonçalves, os escritores João Clímaco , Linhares Filho e Batista de Lima, os três últimos membros da Academia Cearense de Letras,  apenas para citar alguns dos luminares. A pequena Mangabeira promoveu a primeira Feira Literária do Cariri, a FLIMAN ( Feira Literária de Mangabeira) , acontecida nos dias 15 e 16 deste mês de julho, com incontáveis lançamentos de livros, shows musicais, saraus literários. O evento foi organizado pelos escritores Batista de Lima, Pedro Luiz e Fátima Lemos e contou com a presença de várias Academias Literárias do entorno: Instituto Cultural do Cariri, Academia Lavrense de Letras, Academia Varzealegrense de Letras, Academia Cedrense de Letras. Num documento lido na abertura do Encontro foram citados, pasmem vocês, mais de quarenta escritores de Mangabeira, uma vilazinha de menos de cinco mil habitantes.  Um destes intelectuais, radicado integralmente à sua terra, Dias da Silva, tem trinta e seis livros publicados e montou uma biblioteca fabulosa, de acesso público, com mais de 15.000 livros. Por dados do Ministério do Turismo, o Brasil vai na contramão de Mangabeira: de 2015 a 2020,  fechou duas bibliotecas por dia, ao mesmo tempo, no atual governo, inaugurou um clube de tiro por dia. Sintomaticamente colocamos a violência e o dissenso acima da força das ideias.   Mangabeira é um claro exemplo da pujança cultural do Cariri . Convidado,  tentei escarafunchar as origens dessa fortaleza, numa palestra despretensiosa,  na abertura da FLIMAN.

                               Voltei renovado de Mangabeira, até porque, de alguma maneira estava retornando para casa: ali pertinho fica a Lagoa dos Órfãos, berço do meu pai, dos meus avós paternos e dos meus tios. Mais uma vez bateu-me  a certeza de que , do cima do outeiro, como disse nosso Pessoa, a visão é mais ampla e a vida é maior. E, antes de tudo, que a terra e o homem, nas pequeninas vilas, são parte indissociável de uma mesma entidade. A força gravitacional é tão forte que, pelas circunstâncias e necessidades, muitos precisam migrar para as grandes cidades, mas nunca perdem a possibilidade de esmiuçar os detalhes e, principalmente, jamais lhes escapa a sensação de pertencimento. Os corpos migram, mas as almas permanecem indefinidamente presas ao pequenino torrão natal.

Crato, 21/07/22   

                              


sexta-feira, 8 de julho de 2022

Sete Palmos de Terra, Oito Pés em Quadrão

 


                                                                           J. FLÁVIO VIEIRA

                Val do Pai Mané rápido reconheceu que nunca na vida tinha passado uma pindaíba daquele tamanho. Parecia um daqueles castigos bíblicos como as pragas do Egito ou o fogaréu de Sodoma & Gomorra.  Família de cinco filhos pequenos, todos de bico aberto esperando a comida, como filhotes ansiosos pela volta do urubu cangueiro ao ninho.  Val tirava seu sustento aspergindo as cordas da viola e cantando suas loas mundo afora. O seu escritório era tão nômade como ele: bares, feiras, novenas, festinhas, sambas, aniversários, programas de rádio. Às vezes cantava sozinho e, mais frequentemente, arranjava outros cantadores para acompanhá-lo. Os desafios juntavam mais gente e criavam aquele clima de disputa, dividindo-se a plateia, rapidamente, em torcidas como se fora jogo de futebol. O ganho carregava a imprevisibilidade típica da profissão. Como monetizar o imponderável ? Como precificar algo fluido e irrotulável como o verso e a poesia ? Terminada a refrega os contendores somavam o que havia sido depositado no bojo do chapéu jogado a um canto do terreiro. Dias mais auspiciosos, outros de secura em feitio de cuspe de papagaio.

                                    “Essa é minha jornada

                                    Do nada sigo pro nada

                                    Como um bascui na enxurrada

                                    No rio da precisão

                                    Vivendo no pé da serra

                                    A vida toda se encerra

                                    Nos sete palmos de terra

                                    Nos oito pés em quadrão”

 

                        Se os dias normais já carregavam  consigo seus tons mais puxados para o cinza, os dois últimos anos , então, se tornaram uma via crucis para Val. Tempos de pandemia, de isolamento social. Os eventos públicos todos cancelados. Feiras, festividades, aglomerações, totalmente proibidas. Val ainda pôs a  mão numa esmola do governo, dada a contragosto e de má vontade. Voltou para a roça, tentando arrancar da terra algum sustento para a família que dividia o cardápio entre o ovo e o osso.   Ficava , à noite, matutando que pecados ele e os vizinhos tinham cometido para receber um castigo daquele tamanho. Perdera vários familiares com a peste.   No Natal não conteve o choro quando viu o seu filho menorzinho pedir a Papai Noel , de presente, um prato de decumê com um tiquinho de carne pro riba.

                        Nos últimos meses, as coisas melhoraram um pouco. Diziam que a praga parece que tinha ido embora, finalmente. Mesmo assim , as coisas não voltaram ao normal. No rastro de mortes da reima ficaram também as consequências da liseira generalizada e do desemprego. Além de tudo, a carestia estava como há muito tempo não se via. O dinheiro era minguado e, além de tudo, comprava bem pouco. Val, por outro lado, não podia aumentar o preço da cantoria: em rima não cabe código de barras.

                        Esta semana, num bar do Pai Mané, alguns filósofos de balcão se mostraram otimistas. Ia aumentar a esmola do governo. O velho Pedro Cidrão , no entanto, do alto dos seus oitenta e lá vai pedrada, mostrou-se cético. Aquilo era ano de eleição e político é danado pra inventar moda. Querem comprar nosso voto. É tanto que vai ser só até dezembro! Não é mais esmola, não, meus amigos, agora é extorsão. Alguns mais otimistas discordaram, o presidente tinha acordado, agora reconhecia a importância dos pobres e estava se penitenciando. Foi neste instante que Val sacou da viola e definiu o pacote de bondades oferecido pelo satanás.

 

                        SÓ QUEM CRÊ QUE ESSA TERRA É QUADRADA

                        QUE UMA PATA PARIU UM BOI ZEBU

                        E QUE O PAPA CASOU , SÓ ANDA NU

                        SÓ QUEM TROCA PIMENTA POR POMADA

                        E ACREDITA EM SACI, ALMA PENADA

                        PODE ACHAR QUE UM BICHO ESCONJURADO

                        SANGUINÁRIO, FEROZ E DESGRAÇADO

                        DE REPENTE SE TORNA PURO E SANTO

                        SAI PREGANDO E REZANDO PELOS CANTOS

                        ENTOANDO MARTELO AGALOPADO”

 

Crato, 08 de Julho de 2022


sexta-feira, 1 de julho de 2022

Calangos & Caititus

 



                      Aos desavisados que chegassem em Matozinho, ficava sempre complicado entender aquela infuca dos moradores dali com os de Bertioga, uma vila que cresceu, praticamente, como um puxado da vila vizinha. Dividiam história e geografia. Que diabos teria acontecido para, com o passar dos anos, chegarem a disputas acirradas, uma e outra se declarando mais importante e desenvolvida, não poucas vezes redundando em arranca-rabos e risca-facas? Só com uma imersão maior nos costumes e fofocas locais descobria-se alguns sintomas que poderiam ter levado ao estranhamento.

                                               Como simples distrito de Matozinho, Bertioga ganhou sebo nas canelas depois do desenterramento da imagem de N. S. dos Desafogados de Bertioga, do fundo das águas do Rio Paranaporã,  e os milagres que, a partir dali, começaram a pulular por ali. De repente, Bertioga inchou como milho de mugunzá. Em poucos anos,  já era bem mais populosa que a vila mãe da vizinhança. Um outro fato que terminou trazendo animosidade , acredita-se, teria sido a escolha de Bertioga para sede da Estação de Trem que  um dia chegou naquelas brenhas. Matozinho, mais antiga e tradicional, tinha como justa e certa  a prioridade como sede da Rede Ferroviária do Vale da Jurumenha – REFEVAJU. Motivos políticos, principalmente relacionados ao poder de votos do maior cabo eleitoral da região , N. S. dos Desafogados, redundaram naquilo que terminou sendo considerado mais um milagre da santa. Os matozenses não engoliam ter que se deslocar até aquele cuvioco chamado de Bertioga para pegar um trem que os levasse à capital. Os bertiogenses referiam-se aos matozenses como os “Calangos”  e o povo de Matozinho  chamavam os de Bertioga de os “Caititus”. E , claro, as ingrisias que aconteciam numa ou outra cidade, envolvendo os Calangos e Caititus eram sempre resolvidos com as leis estatutárias de cada um dos municípios: mais leves para os nossos e sempre mais severas para os deles.

                                               Aí pelos anos 50, teve uma grande epidemia de Gripe Asiática na região. Os matozenses e bertioguenses caíram doentes e aconteceu uma das maiores mortalidades da região em todos os tempos. Mais de mil viventes sucumbiram, criando uma fila de espera danada, principalmente na porta do inferno e na do purgatório. O prefeito de Bertioga, entrevistado por um jornal da capital, engrossou a voz e cagou goma:

                                               --- Foi uma peste danega, meu senhor ! Mas veja você como são as coisas ! Em Matozinho, que vive de pabulagem, foram dessa para melhor  uns 200 Calangos. E ainda vivem por aí contando vantagem e estufando os peitos parecendo sapa prenhe no brejo. Pois aqui, meu amigo, bateram as botas mais de seiscentos caboclos!  Neguim foi enterrado até em buraco de tatu ! E eles ainda engrossam a voz e chamam aquilo de “nossa cidade”.

                                               Giba, filho do artesão Chico do Pau Véi, morava em Bertioga e, adolescente, resolveu ir pra um forró em Matozinho. Como sempre, levou junto sua patota, condição sine qua non  como item de segurança no check-list local. Frequentemente a coisa esquentava e, sem amparo da infantaria, era difícil enfrentar os adversários. Giba , bem apessoado, caiu no terreiro como jacaré em piracema. Dançou com as meninas mais jeitosas, sempre sob o olhar atravessado dos Caititus que se perguntavam, entre dentes: Que diabos esse cafinfim veio fazer no nosso terreiro?  Lá pras tantas,  aceirou Matilde, a mais paquerada mocinha de Matozinho. A turma babava de inveja, até porque, Giba puxou Matilde pro currupio e ela se deixou levar de bom grado.  Giba , então, cometeu o deslize que todos esperavam: chutou um sapo que, em tempo de inverno, invadiu o salão de língua em riste atrás de besouro e se meteu em meio aos pares dançantes. Imediatamente, Severo, soldado do destacamento de Matozinho, lhe deu voz de prisão. Arrastaram o pobre do Giba para delegacia. Lá  Francalino Cassundé, também conhecido como “o Craque” ( diziam que era porque ele comia muita bola), o recebeu com um rigor geralmente empregado para grandes meliantes. Giba, revoltado, explicou que aquilo era uma injustiça. Não tinha feito nada, não cometera nenhum crime e não entendia porque estava ali. Aquilo era uma perseguição barata !

                               --- Perseguição o que, seu descarado ! Dobre essa língua! Você é acusado de agredir, sem justa causa, uma pessoa !

                               --- Uma pessoa, seu delegado ? Uma pessoa ? Eu chutei um sapo ! Isso é crime?

                               --- Sim, seu Giba ! Mas esse sapo mora onde ? Aqui ou em Bertioga? Você desacatou um cidadão de Matozinho ! Por que você não vai dá cangapé nos cururu daquele cu do mundo onde vocês moram?

                               No famoso São João de Bertioga, o atrito entre os Calangos e Caititus eram sempre mais frequentes. Naquele ano, parecia coisa combinada: as moças namoradeiras de Bertioga começaram a saltar cavalheiros. Negavam-se a dançar com os matozenses, sempre sobre a justificativa de que estavam cansadas. Juca Crispim , já meio melado como brocha de pintor, cismou com aquela implicância. Tinha vindo de Matozinho para festa e estava passando batido.  Acercou-se de uma mocinha a requisitou para dança e, quando ela veio com a desculpa repetida de que não podia porque estava cansada, ele se sentou na cadeira ao lado e disse: Não tem problema, eu espero, quando você descansar a gente dança. Depois de uma hora de espera, ela não descansara ainda,  mas, estranhamente, acolheu um pedido de um rapazinho de Bertioga que a convidara para o salão. O tempo fechou: abriu-se o maior fuzuê envolvendo as já treinadas patotas de Matozinho e Bertioga. Juca terminou preso com sua trupe e levados à delegacia. Estranhamente, nenhum dos seus adversários foi arrolado no processo. Atrás das grades, um Juca furioso reclamava da injustiça cometida:

                               --- Preso ? Só nós ? E nós brigamos foi com nós mesmos ? Cadê os Caititus? Tudo solto ? É um despautério mesmo ! Ser preso e logo numa cidade de merda como essa Bertioga !

                               O soldado Furdelino Morais, também conhecido como Capote, baixinho , invocado e afobado como galinha de pinto, partiu pra cima da galera de Matozinho e não perdoou:

                               --- Fiquem caladinhos aí que até de bico fechado vocês ainda estão errados! Deem graças a Deus, é melhor está preso em Bertioga do que solto naquela porcaria de Matozinho!

Crato, 01/07/2022