sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Continência !


Astrolábio  Cafinfim  era uma das figuras mais populares de Matozinho . Desde novinho, todos notaram, rápido, ele viera com parafusos de menos ou, talvez, cabos e conexões em demasia. Crescendo, corria como cachorro, em tempos de lua nova e rangia os dentes,  nos quarto minguantes, crescentes e na lua cheia. Na escola, apesar da doidice, sempre fora um aluno bem acima da média. Num relance súbito, muitas vezes, resolvia intricados problemas matemáticos. Tempos por tempos, no entanto, começava a delirar, dizia-se uma reencarnação de Cristo, botava para fazer milagres a granel. Noutras, travestia-se de um lorde, envergava roupas militares e traçava planos mirabolantes para resolver a questão indígena no Brasil. Quando lhe perguntavam o nome, era enfático e rígido :
                   --- Marechal Rondon ! Continência, cabra !
                            Astrolábio , assim, transitava livremente pela vila, transformara-se quase numa preciosidade de Matozinho. Uma figura, como a lua, apresentando muitas fases, destoava do mesmismo da maioria das pessoas, sempre iguaizinhos, dentro da mesma caixa de sapatos. Cafinfim, por outro lado, tinha, como Pessoa, muitos heterônimos. E tinha tiradas de gênio, muitas e muitas vezes. Dias desses, pedreiros estavam cavando uma cacimba, próximo ao açude do Sabugo. O buracão já ia com mais de trinta metros de fundura. Os cacimbeiros pararam um pouco porque encontraram um grande cano de uma adutora que passava justamente no caminho da escavação cacimbal. Pois num é que Saturnino Codó, um magarefe da vila, passando por ali, caiu inadvertidamente, dentro do cacimbão ? Queda feia, braço quebrado, ferido, ficou morre não morre lá dentro. Não conseguiam tirá-lo, pois Codó não tinha como sustentar uma corda, devido à fratura. Todos imaginavam que morreria ali, sem socorro. Pois num é que Cafinfim matou a charada ! Pediu para um dos pedreiros descer no cacimbão, com uma marreta e quebrar o cano da adutora. Todos riram com a aparente solução  louca de Astrolábio. A água ia jorrar e afogaria os dois. Cafimfim, então, fechou o firo :
                   --- Deixem de ser aruás ! Joguem uma câmara de ar de caminhão para  Codó e o pedreiro. A água jorra, enche o buraco e eles sobem até a boca da cacimba !
                   Todos ficaram tontos com a solução que, rápido, trouxe nosso Codó de volta à superfície para pronto tratamento. Alguém, então, perguntou, meio confuso :
                   -- Oxe ! Cafinfim ! Como pode ? E tu num é doido não, é ?
                   -- Doido eu sou ! E não arredo pé disso ! Agora o que eu não sou é burro !
                   Astrolábio carregava satisfeito e orgulhoso este título honorífico de mais pirado de Matozinho. Imaginava, extrapolando o seu mundo, que talvez, em todo o universo não houvesse um outro biruta mais varrido do que ele. Semana passada, passando na praça, andava plantando bananeira. Explicava que para um mundão desse às avessas só dava para viver de ponta cabeça também. Ele parou defronte a uma televisão pública instalada pela prefeitura. Num jornal televisivo apareceu, de repente, um presidente recém eleito , de olhos esbugalhados, cuspindo brasa e tossindo lagarta de fogo, dizendo que ia transferir a embaixada brasileira de Telavive para Jerusalém , e cortaria relações diplomáticas com Cuba e Venezuela e nem interessava  que retaliação a china poderia tomar. Astrolábio, observando tudo de bunda canastra,   comentou , entredentes :
                   --- Meu Deus ! E eu pensando que era o mais doido deste mundo ! Já vi ! Esse aí caga rodando, viu ? Brigar cum bicho manso como  árabe ...  Catucar  marimbondo de chapéu feito  Chinês ... Sei , não ! E depois o doido  sou eu, é  ? Ainda bem que sou só doido ...   Continência !

Crato, 09/11/18


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