sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Um gato na mesa de cristais

 


Há pessoas que são como pássaros, singram com seu voo os nossos horizontes, sem estardalhaço, silenciosamente, como se temessem, de alguma maneira, quebrar a harmonia  do mundo. Como um gatinho andando sobre uma mesa de cristais. Mas, sem que ao menos dessem conta, trazem uma nova luz, uma nova cintilação para nossa manhã. Nesses dias , o Crato perdeu um desses artistas contorcionistas da vida. Enoque partiu depois do Carnaval, esperou as Cinzas para, talvez, não atrapalhar a festa de tantos. Teve uma travessia terrestre simples mas marcante. Na juventude,  voltou-se ao futebol e foi um dos maiores craques que já pisaram os campos empoeirados da nossa vila. Fez parte de uma plêiade de artistas da bola como: Anduiá, Netinho, Dote, Chico Curto, Pinto que entendiam que futebol não é um esporte, mas uma dança. Usavam os pés como os pintores usam seus pincéis: para fazer Arte. Depois da aposentadoria, brincando com o tempo, como um menino brinca com bola de gude, vendia livrinhos de faroeste ali defronte ao antigo Banco Caixeral. O pequeno comércio ambulante ajudava menos a engrossar a aposentadoria e mais a conversar com um e com outro e, assim, ir debulhando o rosário das horas.

                   Talvez, no entanto, o que mais tenha ficado na memória dos seus conterrâneos tenha sido a sua atividade como Chef de Cachorro Quente, na Exposição do Crato. Junto com seu ajudante de obras, uma espécie de Sancho Pança, o “Batatinha”, Enoque fazia o mais saboroso e inesquecível sanduba de que se tem notícia na Cidade de Frei Carlos. O Cachorro Quente de Enoque deveria ter sido tombado como Patrimônio Imaterial e Gustativo do Crato, assim como o Filhós São José.  Abandonou, anos depois,  sob protestos de muitos, a profissão:  queixava-se , já naquela época, dos altos valores cobrados para colocar o seu  quiosquizinho no Parque de Exposições que virava, pomposamente, Expocrato e cobrava pedágio por conta disso.

                   Quando o inverno da existência chegou, não passou frio. Os rigores da travessia lhe tinham dado já cobertores. Levou a mesma vida humilde e ativa ali na Caixa D´Água, com a família estruturada , os vizinhos e amigos. Diariamente,  postava ainda a cadeira na calçada, de noitinha para pôr em dia as últimas notícias da vila e contemplar ainda alguns fiapos de lua e estrelas por trás das luzes de neon. Personalidade forte , enfrentou os achaques típicos da velhice com a mesma disposição que combatia os times adversários na juventude. Quando percebeu que a partida estava praticamente perdida, deixou-se levar pelas marés inexoráveis do tempo, até que o apito final soasse já a mais de cinquenta minutos do segundo tempo da prorrogação. Perdeu  a partida, mas ganhara o campeonato.

                   A história oficial louva apenas os vultos de brilho tantas vezes falso emitido pelos holofotes da economia e da política. Parece que toda a beleza da manhã resume-se à  cintilância ofuscante do sol, foge-nos a beleza oculta do entreabrir das flores do campo e do voo sinuoso do pássaro que corta diagonalmente o esplendor da aurora nascente. Grande Enoque ! Uma vida grandiosa escondida em pequenos e minúsculos  detalhes !

 

Crato, 23/02/24

                     

                    

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Macetando o Apocalipse

 

          


  Os “Novos Baianos” marcaram definitivamente a Música Popular Brasileira a partir dos anos 70. O grupo trouxe, para minha geração , além do mix de ritmos brasileiros e estrangeiros, banhado em levadas de Tropicalismo, o desbunde do movimento Hippie com figuras antológicas como Moraes Moreira, Pepeu Gomes, Luiz Galvão, Paulinho Boca de Cantor e uma vocalista mignon e linda: Baby Consuelo. A Casa de Jacarépaguá, onde o grupo passou a morar junto, numa espécie de comunidade psicodélica e hippie, onde sexo, drogas e Rock n´ Roll estavam liberados,   fez-se o protótipo de vida de muitos imersos na Contracultura, isso em plena Ditadura Militar. O grupo de viés anarquista nunca quis se submeter ao julgo de gravadoras. O vinil “Acabou Chorare de 1972 foi considerado pela Revista Rolling Stone o melhor disco da música popular brasileira, numa lista de cem  . A menina Baby Consuelo seria,   também,  a primeira vocalista a cantar em um Trio Elétrico.   O sonho durou uma década de 1969 a 1989 e gerou dezoito discos, entre LP´s e Compactors, alguns magistrais.

                   Corte de quarenta e sete anos. No Carnaval da Bahia deste ano, Baby Consuelo, agora com nome de Baby do Brasil, em plena folia no Trio Elétrico de Ivete Sangalo, ao invés de cantar com a nova diva, resolveu fazer um discurso milenarista-evangélico- apocalíptico, cortando o barato de uma imensidão de foliões: Todos atentos porque nós entramos em apocalipse. O arrebatamento tem tudo para acontecer entre cinco e dez anos. Procure o Senhor enquanto é possível achá-Lo. Obrigada, galera ! “ Veveta, rápido, entendeu a nova piração de Baby , retomou o curso da alegria e resolveu macetar o apocalipse junto com a galera.  A Baby já passou por outras fases nesta busca que se diz espiritual. Nos anos 80 seguia o pseudoguru Thomaz Morton , aquele que resolvia todos os problemas gritando: Rá! , uma espécie de abre-te-sésamo para os édens celestes. Há vinte cinco anos virou evangélica, após um assalto em sua casa. Disse, messianicamente, do seu arrebatamento em 1999:  "Eu fui levada no terceiro céu, que Paulo fala na Bíblia. E eu fui mostrada a Jesus, a Deus, ele é lindo. Eu entrei na barriga de Deus, voando, e ele falou para mim que eu estava sendo gerada de novo".

                   Nada contra a busca espiritual empreendida por Baby. Difícil  aguentar esta vida sem anestesia e cada um procura sua lombra. Baudelaire mandava que nos embriagássemos com   vinho, com ópio, com poesia ou virtude, contra o fardo horrível do tempo. Pode ser também com religião, com bromazepam, com consumismo. Cada um tem o direito de escolher seu anestésico. A complicação vem quando, de repente, você salta a cancela, se traveste de guru, de possuidor de poderes sobrenaturais com a missão de salvar o mundo. Baby, inclusive, já se autodenomina não mais do Brasil, mas Baby das Nações. Aquela que veio fazer a nova Arca de Noé,  salvar os escolhidos e conduzi-los ao terceiro céu.  Já vimos estes mesmo sintomas em Jim Jones na Guiana, com o Conselheiro em Canudos e com João Antonio dos Santos em Pedra Bonita. Que nossa cantora faça sua viagem solitária como são todas as de verdadeira ascensão espiritual. As outras substâncias psicoativas que você macetava   eram bem menos perigosas.  De todas as Babys, prefiro a mais virtuosa, a primeira: a Consuelo.

 

Crato, 16/02/24

O Impossível e o Sensível

 


 

                   A primeira notícia de um Carnaval de Rua no  Crato data de 03 de março de 1857, no Jornal “O Araripe”.  Falava o artigo sobre o “Entrudo”, fazendo críticas acerca do anarquismo da festa popular. Junto criticava outras manifestações da Cultura de Tradição como o Farricoco, o Papangu, o Judas, o Boi, o São Gonçalo, sonhando que deveriam ceder lugar, num futuro próximo,  “para manifestações mais honestas e civilizadas”.  O Crato tem assim, oficialmente,  uma tradição de quase dois séculos de Carnaval de Rua, festa que se foi consolidando com o aparecimento dos primeiros Blocos no início do Século XX  e que teve seu apogeu entre os anos 50 - 70 dos Novecentos. A cidade então fervilhava de blocos, tinha Corsos animadíssimos e o Carnaval de Clube mais efervescente de todo o Sul Cearense.  A derrocada político-econômica da cidade contribuiu para que aos poucos, a partir dos anos 90, a festa fosse a cada ano murchando e virando uma reles história do passado.

                   Nos últimos anos, no entanto, vem se observando um esforço de alguns segmentos da cidade em reviver aqueles tempos gloriosos. São Paulo, Belo horizonte e o Rio de Janeiro já estão correndo em busca da magia da rua. Aqui,  o primeiro  passo importante foi o Carnaval da Saudade promovido pelo CTC que vem acontecendo , religiosamente , no Sábado Magro, há mais de dez anos. Note-se, ainda, o Desfile das Virgens, festa que tem se mantido firme e, ano após, ano, vem se espalhando pela cidade.  Tem-se percebido, também, uma tentativa de recomposição dos Blocos de Rua como o Pé de Jambo, De Juarez a Juarez, Humor Político, Iº Grito , entre outros. A Prefeitura Municipal tem programado, ainda, um Pólo de animação na Praça Siqueira Campos, com a apresentação de Bandas Locais e outras apresentações em bairros da cidade , conseguidas através de Editais da Secult. Sabemos que toda ação destruidora é muito mais rápida e eficaz que o esforço da reconstrução, mas parece alentadora a luta pelo retorno de uma festa de tanta tradição na nossa cidade.

                   A revitalização passa pelo Carnaval de Rua que é a alma da festa. A rua é que cria o clima de alegria e descontração. As festas clubísticas são mais fechadas e menos inclusivas e carregam consigo sempre aquele gosto insulso do isopor. É preciso que a administração municipal se sensibilize com a certeza de que o Carnaval bem além de diversão, festa e alegria é, principalmente, um investimento turístico importante. Gerador de renda, envolve uma vasta cadeia de trabalhadores: pequenos comerciantes, hotelaria,  bares, restaurantes, lanchonetes, músicos, artesãos de fantasias e adereços ,produtores,  empresários de material musical, iluminação e Som. E com vasta possibilidade de patrocinadores. Os próximos passos para revitalizar o Carnaval seriam o apoio aos Blocos e Escolas de Samba, a criação de desfiles e premiação e a utilização do Palco da Expocrato para fazer a continuidade da Folia, com bandas  e artistas consagrados e locais , varando a noite nos quatro dias de Momo. E, claro, uma festa gratuita,  aberta para todos, com a segurança devida. Como seria possível ? Tudo é possível quando a alma é sensível. Basta seguir os rumos do Festival de Inverno de Garanhuns e do Carnaval de Olinda e Recife.

                   O Carnaval está na alma do povo cratense, os barris de pólvora estão espalhados por todos espíritos, basta o poder público acender o estopim. Para que o povo caia no passo é preciso apenas que o governo dê os primeiros passos...

Crato, 01/02/2024