sexta-feira, 29 de março de 2024

Caju

 

                                                                                                Pintura- Ivan Cruz

Houve tempos em que a Páscoa não carregava esta atmosfera de chumbo e presságios dos dias de hoje.  Mesmo com o roxo cobrindo as igrejas e o jejum imposto aos adultos, ficava-nos mais uma alegria de Sábado de Aleluia do que as trevas da sexta-feira. Claro que perpassava por tudo um certo travo e o fel que um dia escorreu do Gólgota, mas a meninada conseguia banhar de lúdico o cenário de tormenta. E a data ainda não tinha sido invadida ainda pelos coelhinhos  e pelo chocolate e perdido seu clima sagrado.

                            As escolas feriavam por uma semana. Íamos para fazendas, com uma corriola de primos e amigos. O jogo da peteca era, então, o oficial.   O caju era  passado , de mão em mão, numa grande roda,   no terreiro das casas. A Semana Santa trazia consigo, também,  as chuvas tão escassas aqui pelo Nordeste. E, junto delas, as primícias que brotam da terra: o milho, a canjica, a pamonha. Os açudes cheios viravam, rápido, as piscinas olímpicas dos guris. Bodoques e baladeiras à mão, eles voltavam à condição natural de caçadores e coletores. À noite, à beira das fogueiras, retornavam aos ritos ancestrais, ouvindo histórias que se debulhavam ao crepitar do milho verde que assava sob o calor das brasas.

                            O que a meninada nem pressentia é que junto ardia , também, uma outra fogueira bem maior e que , pouco a pouco, iria estendendo suas chamas ao derredor.  De repente, lamberia sua infância, incineraria personagens queridos como seus avós, tios e pais; faria em cinzas a roda de peteca, o cheiro adocicado do milho que escapava dos caldeirões. Restariam apenas cinzas esparsas de lembranças e o fel que passou a ser cada vez mais presente nas sextas-feiras. 

                            Talvez a chama da vida se resuma nisso: o sonho, o sacrifício e a remota possibilidade de ressureição.

Recife, 29/03/2024   

sexta-feira, 15 de março de 2024

Libélula

 

J. FLÁVIO VIEIRA

 

                          


     Ontem partiu Tia Lúcia, irmã de minha mãe. Restam apenas agora dois bruguelos da ninhada de dezenove filhos do  do meu avô materno. Minhas tias, Conceição, Luzanira , Lúcia e minha avó , Sinhá, conviveram comigo durante toda a infância e adolescência, morávamos em casas contíguas. Luzanira e Conceição eram doces e afáveis. Sinhá e Lúcia mais reservadas e casca grossa, mas , no fundo, eram uma trufa : duras na superfície mas moles no interior. Aliás uma característica de boa parte do Pinheiros, temperamento de faixada irascível, mas quebradas as primeiras camadas, são adocicados e palatáveis. Acho que puxei um pouco a elas neste ponto, alguns me acham antipático, chato e de poucas palavras. Mas, do outro lado, herdei a irreverência e o humor varzealegrense de meu pai , tios e avô paternos. Colocadas as duas extremidades na balança , acho que os pratos ficam no meio e, na maior parte das vezes, é possível me suportar.

                    Hoje, na angústia do velório, sempre opressivo mesmo com a certeza de que a tia vivera nove décadas, pus-me a pensar.  Pareceu-me sempre feliz.  Solteira, sem filhos , lembrei que ela aprendeu a conviver com seus próprios conflitos. Só os últimos meses lhe pesaram, uma dolorosa via crucis até a despedida. Percebo, sempre, como a morte e seu séquito me atormentam. Acredito que uma parte dessa convivência conflituosa com a velha da foiçona , vem desde a minha infância. Morava a pouco metros do cemitério e convivi desde pequenino com os enterros, as velas, as coroas, os choros e os velórios. Depois, formei-me em Medicina  e minha função, desde o princípio,  era lutar contra a Caetana. Sempre que perdia a batalha, caía sobre mim toda a certeza avassaladora da impotência. Ainda estudante, dava plantão em Recife num Hospital Psiquiátrico. Um colega, com formação psicanalítica, um dia me confessou que eu, um agnóstico, desses que não acreditam em céu e inferno, em reencarnação, devia ter uma convivência muito difícil com a ideia de Morte. E ele tinha lá suas razões.

                   Diante da partida de familiares e amigos bate-me sempre a iniquidade da existência. Uma viagem curta, com muitos acidentes e catabis, tão veloz que sequer temos tempo de curtir a paisagem e, de repente... o abismo !  E aí, como Vinícius, vem sempre aquela inevitável pergunta ao Criador: Se foi pra desfazer, meu Chapa,  por que é que fez ?

                   De qualquer maneira vale o escrito na lousa, mesmo que o giz já tenha vindo junto com o apagador. Escrevemos nossa trajetória na superfície das águas. Existimos apenas para aqueles que naquele breve espaço de tempo, entre o abrir e fechar irremediável das águas,  conseguiram ler nossa mensagem. Somos apenas libélulas tocando a  lâmina líquida dos rios: não esculpimos sua face, não chegamos às profundezas, não mudamos o seu curso. Só libélulas.  Valeu pelo voo rasante !

 

Crato, 15/03/24

sexta-feira, 8 de março de 2024

Um pé de toré - A vida como ela é !

 S.O.S - Museus do Crato



J. Flávio Vieira

 

                               Nestes dias desmoronou uma parede lateral da Casa de Câmara & Cadeia  aqui de Crato. Uma tragédia que vinha se anunciando há anos. O prédio histórico de 1877, especialíssimo na sua arquitetura, é um dos mais preciosos bens imateriais do Cariri. Ali funcionou a Câmara de Vereadores, a Prefeitura de Crato, junto com a Cadeia: as antigas gerações já percebiam que existe uma tênue linha separando as duas atividades. Há dezoito anos, na gestão de Samuel Araripe, parte do teto ruiu. Foi necessário desativar o Museu de Artes Vicente Leite que funcionava no andar superior. Ele dava nome a um dos mais importantes artistas plásticos do Ceará, conhecido em todo Brasil e que nos deixou, prematuramente, no início dos anos 1940. O Museu foi inaugurado há 50 anos e tem um acervo de valor incalculável. No andar de baixo funcionava o Museu Histórico J. de Figueiredo Filho, recentemente também desativado. Com as chuvas desse ano, por fim, veio o golpe de misericórdia: o prédio histórico, caída uma parede de sustentação da arcada superior,  ameaça desabar. Cresceu um pé de Toré no teto, rachou o muro e houve infiltração de água da chuva. Um Toré na cumeeira ? Pois é , meus amigos, para vocês terem uma ideia do estado de conservação do edifício da Câmara & Cadeia !

                   Durante as quatro gestões subsequentes à tragédia original, o projeto de reforma se arrastou ad eternum. Só na última, oito licitações foram realizadas, sem sucesso. A verba destinada à obra é muito reduzida (em torno de R$ 1.000.000)  e as construtoras, aparentemente, não se sentem incentivadas. Ontem, a tragédia maior que se anunciava, aconteceu: corremos o risco de ver por terra um dos últimos remanescentes dos gloriosos tempos da Vila de Frei Carlos.

                   A repercussão no meio da classe pensante de Crato foi imediata. Filhos próximos e distantes sentiram-se angustiados e desapontados: uma fatia importante do cenário de suas vidas estava sendo apagada. Muitos sabiam da importância dos Museus ( Histórico e de Artes Plásticas) nas suas formações cultural e humana. Sediando uma Universidade , que inclusive tem cursos de História e Artes Visuais, a presença de um Museu é preponderante.

                   O Instituto Cultural do Cariri  sente-se no cerne da questão. Vicente Leite é um dos nossos patronos. Bruno Pedrosa  , o principal Mecenas do Museu, é um dos queridos sócios do nosso Instituto e , morando na Itália, tem derramado em Asolo sua indignação. Sinhá D´Amora, outra benfeitora do Vicente Leite, com vários quadros gentilmente doados, é parte integrante do nosso colegiado.  Edilma Saraiva, restauradora, faz parte do nosso ICC.  J. de Figueiredo Filho, que começou em sua casa o acervo precioso do Museu Histórico,  foi presidente do nosso sodalício por vinte anos. Vamos cobrar das autoridades competentes medidas emergenciais para tirar o prédio histórico do risco de desabamento.  Essa é uma  das nossas maiores bandeiras. Não colocaremos tranquilos o rosto no travesseiro até que medidas urgentes sejam tomadas, a reforma seja empreendida e os dois museus , por fim, um dia usurpados do nosso convívio, sejam devolvidos à sociedade cratense.  Não dá para imaginar que o nosso destino depende de um pé de Toré. Queremos , novamente, poder pronunciar, com doçura, a marca  que foi  criada entusiasticamente por nossos antecessores: Crato, Capital da Cultura !

Crato, 07/03/2024