quinta-feira, 27 de julho de 2023

O meio da Rua e a Rua do Meio

 

            “Um  morava na Rua do Meio.
O outro no meio da rua”

Jessier Quirino

 

J. Flávio Vieira

                               Estive em São Paulo, recentemente. Sampa une duas qualidades díspares para um interiorano: ótima para se visitar e tenebrosa para se fixar definitivamente. Lá é fácil de perceber o poder da grana que no dizer de Caetano “ergue e destrói coisas belas”. O nordestino , rápido, vê-se imerso numa vida quase de videogame, com as pessoas tendo que vencer, às carreiras, vários obstáculos, no dia a dia, só que no caso do Super Mário Paulistano, infelizmente, os jogadores só têm uma vida. Imergi nos museus , nos Teatros, nos Shows  e  nas Exposições, como faço anualmente e naquela gastronomia vigorosa e  eclética da São São Paulo do nosso Tom Zé. Toda grande cidade brasileira é uma Vienamey: uma mistura de Viena com Niamey, a capital da africana Níger. Em geral o centro das grandes capitais faz parte do anverso da moeda, puxando para fabulosa Viena e, na periferia ou na marginália, existe uma imensa Niamey, onde as pessoas sobrevivem basicamente de algum manjar que por acaso caia dos céus. Estas duas extremidades, no entanto, frequentemente se tocam e as faíscas , então, são inevitáveis. De um lado os que passam fome e do outro os que frequentam os SPA´s. Ali os que correm da polícia , do outro lado os que malham nas esteiras das academias. Este ano , mais que nunca, feriu-me os olhos a quantidade de pessoas em situação de rua, no Centro da maior capital brasileira. É gritante e estarrecedor. Parte pela ideia típica do amadorismo dos  políticos brasileiros, de dissolver a Cracolândia que é comparável a fazer disseminar um câncer, na tentativa de curá-lo. Mas , principalmente, pela miséria absoluta de grande parte da população brasileira, órfã de governo e de cidadania. Até o ano passado estimava-se em quase 35.000 as pessoas em situação de rua em Sampa, hoje, certamente, este número quase que dobrou. Segundo o IPEA, no Brasil, ano passado, 282.000 pessoas estavam em situação de rua, um aumento de 38%, comparando-se a 2019. Há uma Juazeiro do Norte, hoje, que tem a rua como único teto. Desde 2011, o aumento da população vulnerável foi de 211%, a população brasileira, no período cresceu apenas 11%. Mais da metade deste “rueiros” vive na região Sudeste, a mais rica do Brasil.

                        Claro que a miséria brasileira tem raízes seculares, mas é gritante e escandalosa a piora no último governo, de completa insensibilidade social. Só no Centro de São Paulo existem mais de 30.000 imóveis vazios. E as queixas do resto da população são enormes: atrapalha o comércio, afasta os turistas, aumentam os assaltos...Ninguém se preocupa com o grave problema humanitário.  Ouvindo garçons, taxistas, seguranças, as soluções apontadas não seriam diferentes das apresentadas por Eichmann e Hitler. Interná-los a força e tratá-los à revelia ( pergunta-se e depois de tratados, para onde iriam? Voltam para as ruas, novamente?); invadir as ruas e prendê-los; deportá-los para outros estados; fazer um grande muro e trancá-los lá, num novo Campo de Concentração (certamente, depois, viriam os fornos). Ninguém toca nas raízes profundas do problema, uma desigualdade social escandalosa que perdura por mais de cinco séculos. Recentemente, o ministro Alexandre de Morais deu prazo de cento e vinte dias para o governo federal apresentar um diagnóstico do problema e um Plano Nacional para a População em Situação de Rua. Certamente, agora, virão algumas medidas emergenciais para minorar esse novo holocausto. Uma solução mais duradoura e definitiva, no entanto, para a Vienamey parece longe e inalcançável. Precisaria quebrarem-se todas as correntes e chicotes  dos pelourinhos espalhados pelo Brasil que não se esfacelaram com a Lei Áurea , mas apenas se mimetizaram em novas ambições, sujeições  e relações de trabalho.  Haverá um meio para resolver a equação da rua do meio e do meio da rua?

Crato, 27/07/23

sexta-feira, 7 de julho de 2023

O Ofídico Ofício de Zé Celso

 

Zé Celso Martinez recolheu-se ao camarim, ontem. Era daquelas figuras que nascem com uma predestinação natural. Veio com scrip pronto e personagem definido para uma atuação gloriosa de mais oitenta anos. Vítima de um incêndio, tudo poderia ter acontecido, inclusive , por autocombustão por conta do seu incessante fogo criativo. Zé era um Vesúvio em eterna erupção. Buscou uma linguagem moderna nas suas produções, que fugisse do classicismo dos palcos europeus. Envolveu a plateia como parte integrante da sua trupe. Tornou o teatro mais sensorial e escandalizou a sociedade bolorenta e empalhada do Brasil, mostrando que não há imoralidade na Arte (o imoral estava justamente naquilo que a Sociedade havia transformado o mundo). Zé criou direções coletivas nos seus espetáculos e abriu a possibilidade larga de improvisações para os autores. Insurgia-se contra aquilo que chamava de Ditadura da Classe Média e do teatro que se reagia na tentativa inglória de conscientizar o inconcientizável. Para ele aqueles “devoradores de novelas e sabonetes” só degelariam na base da porrada. A primeira sede do Oficina, já  profissionalizado, foi no Bixiga.  Durante a Ditadura Militar as perseguições se seguiram, com a prisão e tortura de Zé Celso, invasão de peças como “Roda Viva” e agressões de atores e, depois,  um incêndio criminoso que destruiu a sede em 1966. O Teatro Oficina que criou, uma das companhias permanentes mais longevas do Brasil, com mais de 60 anos, ganhou uma outra sede definitiva em 1992, com um projeto inovador de Lina Bo Bardi, depois tombado pelo IPHAN  em 1910, defronte ao Viaduto Júlio Mesquita em São Paulo.   Ao Oficina devemos algumas das mais inovadoras montagens do Teatro brasileiro como “O Rei da Vela”,  “Roda Viva” e “Os Sertões” ,  uma adaptação da obra de Euclides da Cunha, uma overdose cênica de 27 horas. Lembro que uma das críticas que se fazia à nossa “Terrível Peleja de Zé de Matos” é que tinha duração de mais de duas horas ! Em 2015, o The Guardian elegeu o Oficina  como o Melhor Projeto Arquitetônico  de Teatro  do mundo.

                        Zé Celso vinha travando uma luta renhida contra o Grupo Sílvio Santos há mais de quarenta anos. Sílvio, proprietário de um terreno vizinho ao Oficina, queria construir três prédios de cem metros de altura o que desfiguraria, completamente, o projeto original de Bo Bardi. Ele tem grandes vidraças abertas ao terreno em volta, com árvores que compõem o cenário orgânico e natural do teatro, com seu palco inovador, móvel, de galerias laterais em feitio de andaimes. A guerra tem se arrastado com vitórias em batalhas forenses de lado a lado. No fundo, Zé Celso sabia bem, a grande contenda se faz entre duas dimensões da vida. Uma que se prende nos grilhões do Código de Barras e uma outra perspectiva que, visionariamente, sabe  existir  vida e um mundo mais belo e solidário para lá dos horizontes dos QRCodes. Zé Celso, como um profeta, apontava para esse caminho, demonstrou em encenações veredas e trajetórias  mais generosas e altruísticas para a humanidade. Se pareceu impetuoso, intenso, libertino, violento ,algumas vezes,  é porque percebia que a sociedade estava em coma e não era possível acordá-la com beijos como  o príncipe da Bela Adormecida.  Zé Celso sabia que a função da Arte é estressar os confortados e confortar os estressados. Grande Zé !

 Crato, 07/07/2023