sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

O Camelo e a Agulha






Adélio Timbaúba  nasceu e cresceu em Matozinho. Filho de carpinteiro, aprendeu o ofício com  o pai : Seu Milão, criando-se entre tábuas, dobradiças, parafusos e polcas. Menino taludo, já ia substituindo, aos poucos, o pai que se viu quase que imobilizado  por uma congestão que lhe paralisou o lado direito e o deixou com a voz meio engrolada, como se vivesse, eternamente, comendo mingau de aveia Quaker.  Desarnado,  ainda adolescente, o garoto  já tomava conta da movelaria, recebendo encomendas de gamelas, baús, guarda-roupas, mesas e tamboretes. E foi nesta atividade que passou a sustentar os pais já velhinhos e , logo depois, a sua própria família. Adélio enrabichara-se de uma morena quartuda, de peitos estufados e insolentes como se recém calibrados a trinta libras na borracharia da esquina.  Em meio àqueles relevos e acidentes geográficos íngremes e perigosos da Luzia,  terminou fazendo derrapar os pneus do seu coração.  Os filhos se foram sucedendo, em escadinha, e, de repente, viu-se Timbaúba com um time de futebol de salão em casa. Os amigos resumiam fácil a vida do marceneiro:  De dia na Movelaria e de noite na Luzia !  
                                   Se os filhos multiplicavam-se a olhos vistos, a empresa do nosso carpinteiro não prosperava na mesma intensidade. É que  , de repente, começaram a surgir, no comércio local,  peças pré-fabricadas de plástico, de madeira prensada, a custo bem mais acessível. Tinham um certo frescor de novidade, de modernismo , o que acabava por torná-las mais palatáveis. Perdiam, porém, no quesito perenidade. As peças de Seu Milão e de Adélio passavam de avós para netos, serviam como itens de disputa em inventário. Mas quem mais se importava com perenidade ? As coisas todas passaram a ter a importância de uma garrafa pet, prontas a serem lançadas no monturo logo depois do primeiro uso. Em um determinado momento, Adélio viu-se apertado como pinto no ovo. Considerou, então, ter sido um milagre de Deus, quando Idelfonso Queiroga, o então  presidente da Câmara de Vereadores, o procurou para encomendar o mobiliário da nova sede do legislativo municipal.
                                   Era uma empreita de porte vultoso, naqueles dias bicudos: estantes, cadeiras para o plenário, mesas diversas, parlatório. Queiroga, falante como camelô de feira, informou que o projeto estava pronto e a verba disponível. Pediu, então, que Timbaúba apresentasse, o quanto antes, um orçamento detalhado. O certo é que nosso marceneiro, alegre como galo campina em apanha de arroz, providenciou tudo no fim de semana e na segunda feira procurou o presidente do sodalício matozense, ainda pela manhã. Demonstrou tudo , detalhadamente, orçando toda a obra em torno de vinte e cinco mil reais. Queiroga achou pouco a mão de obra de apenas dez mil reais e pediu , para a surpresa do carpinteiro , que a elevasse  para trinta mil.  Timbaúba quase viu as boticas de seus olhos saltarem das caixas. Logo depois, no entanto, o presidente informou que era preciso, também elevar a parte do material , que inclusive já estava previsto em folha, para cem mil. Explicou, então, a Adélio que aquela era a base das obras no estado e que não podiam fugir às regras estabelecidas por lei. Disse que não haveria problemas maiores e afirmou que bastava ele assinar uns papéis e recibos que tudo correria às mil maravilhas.
                                   O certo é que depois daquela obra, as coisas melhoraram para Adélio. Logo depois foi contratado como assessor político de Idelfonso. De repente, o carpinteiro tornou-se pessoa importante na cidade, com casa própria no centro, carro novo , os filhos riscavam a cidade montados em motos e  D. Luzia , teria ido à capital, e  já fizera umas reformas nos acidentes geográficos que começavam a sofrer erosões por conta da gravidade. Andava, ainda, com os vestidos e adereços das mais finas grifes.
                                   Os matozenses , diante de tão acintosa prosperidade, não conseguiam explicar como a carpintaria de Adélio virara mina de ouro. Pelo sim, pelo não, apresentavam teorias conspiratórias as mais diversas para tentar chegar perto dos segredos daquele fenômeno.
                                   Semana passada, os vereadores acordaram com a serenata  das sirenes  da polícia em suas portas. Sete foram levados em cana, sob acusação de desvios de dinheiro público. Segundo o processo, teria havido superfaturamento nas obras da nova sede da Câmara Municipal e os assessores dos vereadores eram obrigados a devolver metade dos salários para seus chefes, sob alegação de que estavam ajudando-os em futuras campanhas.  Queiroga e os demais vereadores, ouvidos, foram soltos no mesmo dia. Jogaram a culpa toda nos seus assessores que, segundo eles, formaram uma quadrilha para roubar as parcas posses do município. A defesa deles foi a mais veemente tese advocatícia já pronunciada em Matozinho:
                                   --- Seu juiz, fomos enganados ! Não compensa a gente confiar nas pessoas ! Desculpa, viu ?
                                   Os assessores estão presos e incomunicáveis. Adélio, diz-se que avisado por Queiroga, que soubera da operação  através de um juiz amigo, no dia anterior, fez um pernas-pra-que-te-quero fenomenal. Ninguém sabe por onde anda.
                                   Dez dias depois, o prefeito Sinderval Bandeira e o presidente da Câmara, Idelfonso Queiroga,  foram   agraciados, na capital, pelo Ministério Público, com o Prêmio Asa de Águia, pelo seu empenho no combate incessante à corrupção. Dizem os matozenses  que, no quintal da repartição, enquanto a solenidade transcorria com toda sua pompa, dois personagens conversavam e riam alegremente, trepado cada um na sua árvore . Um deles, de barbas longas, comia uma goiaba e falava de coisas celestiais; o outro, enquanto chupava uma laranja meio azeda, fazia caretas e dizia que o companheiro da outra galha se equivocara : é mais fácil uma agulha entrar no fundo de um camelo do que um rico entrar no céu !

Crato, 14/12/18    
                                  

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