sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Pirotecnias de Vaga-lumes



J. Flávio Vieira


                                  


Faz tempo que para pensar
 sobre Deus, não leio
 os teólogos, leio os poetas.”


                                               O Cariri amanheceu diferente, neste finalzinho de novembro. De repente, as fontes , estendendo-se em levadas serra abaixo,  começaram a entoar cânticos que pareciam  canção de ninar. Os piquizeiros vestiram vestidos de um verde esfuziante, no arisco e na chapada, como se preparando para um  precoce réveillon. Os ipês amarelos  apressaram-se em espalhar suas flores pelo chão , como que estendendo um tapete dourado para a chegada de um distante e  misterioso viandante. Rolinhas fogo-pagô, nas galhas dos candeeiros,  pareciam esforçar-se para deixar seu canto menos dolente e menos tristonho. O  Grangeiro, coleando as margens da serra, como uma cobra corredeira, juntou águas novas e translúcidas, colhidas de chuvas de caju, preparando-se ,religiosamente,  para uma cerimônia de lava-pé. Soldadinhos, saltitantes na mata ciliar, cantavam com patente de general. E as cigarras, trinando cantos de amor, buscavam atrair parceiros para seus voos nupciais, mas , percebia-se claramente, pela vertiginosidade de seus agudos,  chamavam a atenção para as bodas da terra e do céu. As formigas de roça traçavam retilíneas  e límpidas autopistas, atapetadas de pedacinhos de folhas,  sem ajuda de teodolitos, naquele dia, didaticamente, indicavam que o destino final mostrava-se um mero detalhe e o essencial era sempre a travessia. Vaga-lumes, de noitinha, acendiam seus pisca-piscas, nas moitas de mufumbo, antecipando árvores de natal. Tudo , de repente, embebera-se numa delicadeza leve, sutil, como se luvas de pelica protegessem mãos de crianças. De ríspido,  apenas um cavalo-do-cão que, vez por outra, fazia voos rasantes, com suas asas crispadas, trazendo um contraponto na balança da natureza.
                            Por que toda cumplicidade do tempo , do mundo e da vida ?  Qual a razão da epifania ?  A volta do Cristo, como profetizam os evangélicos ? O advento da Conspiração de Aquários como preveem os esotéricos ? O fim dos tempos como querem os milenaristas ?
                            Que nada ! Toda a criação está em festa porque hoje Abidoral Jamacaru faz 70 anos. Poeta, músico, professor,  compositor, ambientalista, ele é o Menestrel do Cariri. A natureza criou o  Vale para que Abidoral pudesse reinventá-lo. Nosso poeta ficou  nas mãos com a chama do fiat lux primal. Esse dia será comemorado como nosso menestrel sonha : com  voos rasantes de mangangás,   pífaros de pássaros, paradas militares de zabelês e embuás, malabarismos de beija-flores , retretas de sabiás e pirotecnias de vaga-lumes. A vida celebra a vida ! Parabéns Abidoral Jamacaru !

Crato, 28/11/2018             

                                              



sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Continência !


Astrolábio  Cafinfim  era uma das figuras mais populares de Matozinho . Desde novinho, todos notaram, rápido, ele viera com parafusos de menos ou, talvez, cabos e conexões em demasia. Crescendo, corria como cachorro, em tempos de lua nova e rangia os dentes,  nos quarto minguantes, crescentes e na lua cheia. Na escola, apesar da doidice, sempre fora um aluno bem acima da média. Num relance súbito, muitas vezes, resolvia intricados problemas matemáticos. Tempos por tempos, no entanto, começava a delirar, dizia-se uma reencarnação de Cristo, botava para fazer milagres a granel. Noutras, travestia-se de um lorde, envergava roupas militares e traçava planos mirabolantes para resolver a questão indígena no Brasil. Quando lhe perguntavam o nome, era enfático e rígido :
                   --- Marechal Rondon ! Continência, cabra !
                            Astrolábio , assim, transitava livremente pela vila, transformara-se quase numa preciosidade de Matozinho. Uma figura, como a lua, apresentando muitas fases, destoava do mesmismo da maioria das pessoas, sempre iguaizinhos, dentro da mesma caixa de sapatos. Cafinfim, por outro lado, tinha, como Pessoa, muitos heterônimos. E tinha tiradas de gênio, muitas e muitas vezes. Dias desses, pedreiros estavam cavando uma cacimba, próximo ao açude do Sabugo. O buracão já ia com mais de trinta metros de fundura. Os cacimbeiros pararam um pouco porque encontraram um grande cano de uma adutora que passava justamente no caminho da escavação cacimbal. Pois num é que Saturnino Codó, um magarefe da vila, passando por ali, caiu inadvertidamente, dentro do cacimbão ? Queda feia, braço quebrado, ferido, ficou morre não morre lá dentro. Não conseguiam tirá-lo, pois Codó não tinha como sustentar uma corda, devido à fratura. Todos imaginavam que morreria ali, sem socorro. Pois num é que Cafinfim matou a charada ! Pediu para um dos pedreiros descer no cacimbão, com uma marreta e quebrar o cano da adutora. Todos riram com a aparente solução  louca de Astrolábio. A água ia jorrar e afogaria os dois. Cafimfim, então, fechou o firo :
                   --- Deixem de ser aruás ! Joguem uma câmara de ar de caminhão para  Codó e o pedreiro. A água jorra, enche o buraco e eles sobem até a boca da cacimba !
                   Todos ficaram tontos com a solução que, rápido, trouxe nosso Codó de volta à superfície para pronto tratamento. Alguém, então, perguntou, meio confuso :
                   -- Oxe ! Cafinfim ! Como pode ? E tu num é doido não, é ?
                   -- Doido eu sou ! E não arredo pé disso ! Agora o que eu não sou é burro !
                   Astrolábio carregava satisfeito e orgulhoso este título honorífico de mais pirado de Matozinho. Imaginava, extrapolando o seu mundo, que talvez, em todo o universo não houvesse um outro biruta mais varrido do que ele. Semana passada, passando na praça, andava plantando bananeira. Explicava que para um mundão desse às avessas só dava para viver de ponta cabeça também. Ele parou defronte a uma televisão pública instalada pela prefeitura. Num jornal televisivo apareceu, de repente, um presidente recém eleito , de olhos esbugalhados, cuspindo brasa e tossindo lagarta de fogo, dizendo que ia transferir a embaixada brasileira de Telavive para Jerusalém , e cortaria relações diplomáticas com Cuba e Venezuela e nem interessava  que retaliação a china poderia tomar. Astrolábio, observando tudo de bunda canastra,   comentou , entredentes :
                   --- Meu Deus ! E eu pensando que era o mais doido deste mundo ! Já vi ! Esse aí caga rodando, viu ? Brigar cum bicho manso como  árabe ...  Catucar  marimbondo de chapéu feito  Chinês ... Sei , não ! E depois o doido  sou eu, é  ? Ainda bem que sou só doido ...   Continência !

Crato, 09/11/18


sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Via Pulveris






                                               A vida é um grande séquito fúnebre em que seguimos, cabisbaixos, à espera de inumar nossas paisagens interiores. Nosso corpo físico sobrevive a estas exéquias intermináveis, inconsolável muitas vezes, aliviado, outras tantas, enquanto aguarda a hora terrível em que saltará no abismo junto com a história.  O ávido Buraco Negro  está bem ali na nossa frente, esperando o momento único e inexorável em que tudo volta à essência energética original.
                                   Mas são muitos os velórios a seguir, precedendo este último e definitivo funeral. Antes, levaremos ao túmulo o menino que um dia fomos e que , aos poucos, viu-se travado e congelado pelas intempéries da vida. Junto com ele, enterramos um sem número de ilusões, de sonhos, de ambiguidades. Pegaremos ainda na alça do caixão dos nossos amores que carregavam consigo uma intangível aura de eternidade e que, sabe-se lá como, viram-se aos poucos corroídos pelos cupins do cotidiano. Acompanharemos, ainda , o féretro de muitos amigos, que impávidos e aparentemente inquebrantáveis, foram pouco a pouco, tombando às margens do caminho e, com eles, testemunhos vivos da nossa viagem,  vemos evaporar boa parte das folhas do nosso diário de bordo. Os nossos pais e avós, únicos advogados insubstituíveis no nosso percurso, partirão antes de nós e seremos nós os anfitriões em suas exéquias. O cenário da nossa existência será pouco a pouco substituído, mudado o figurino, alterado o script, até que chegue o momento único em que percebemos que já não temos o que fazer no palco e devemos sair de cena, sorrateiramente.
                                   Morrer será apenas o somatório das muitas mortes que irão acontecendo ao longo da nossa jornada. O desaparecimento físico configurará apenas o último ato de uma tragédia longa, em que, paulatinamente,  os personagens vão saindo de cena e, de repente, vê-se o ator demente no proscênio, sem maquiagem ou adereços, sem luz, sem texto, sem outros saltimbancos para contracenar e, mais: já sem plateia.  
                                   No fim, será o fim a última verdade. Os protagonistas da hora extrema silenciam: As velas apagam-se, as flores secam, as lágrimas estancam, as orações perdem sua magia, os epitáfios ficam pífios. Acalanto e incelença são duas partes de uma mesma canção, assim como a estrela e a cruz fazem parte de uma mesma constelação : a Via Pulveris.

Crato, 01/11/18