sexta-feira, 31 de maio de 2019

Matozinho Sonha com Dubai


A placa gigantesca , numa das ruas laterais da cidade, causou o maior buchicho em Matozinho.




Construção
Nova Sede da Prefeitura Municipal de Matozinho
Valor da Obra : R$ 12.000.000,00
Prazo de Entrega - 180 dias
Administração Sinderval Bandeira
“Matozinho : Ou vai ou Racha !”
 




                                   Vivia-se um ano pré-eleitoral e o nosso edil  apresentava, sem pejo, a obra como o ápice da sua gestão, já de olho esbugalhado para a reeleição. Como era de se esperar, nesta época, valia  a segunda Lei de Newton, com a ação contrapondo-se, em exata intensidade, à reação, em sentido contrário,  exercida pela língua do povaréu e os movimentos de oposição.  A grande isca de fofoca, no caso, mostrava-se no valor francamente superfaturado da obra, até porque o projeto apresentado não era nenhum Rockefeller Center, não.  O arquiteto “Nicolau Empena Prédio” desenhara um edificiozinho de dois andares , tipo caixão das almas, coisa de uns 400 m2 de área, sem muitos novidades e riquifefes. Com a verba destinada, comentava-se pelas esquinas, daria para reconstruir as torres gêmeas depois que os doidos de Bin Laden jogaram os aviões pro riba. O pior de tudo , vociferavam os opositores, é que Sinderval Bandalheira como era conhecido, fizera uma primeira licitação, cujo ganhador, dizia-se,  apresentara um valor bem menor. Estranhamente, porém, de repente, o prefeito  anulou o processo, sob justificativa de que não tinha sido lícito , prometendo uma nova chamada. Neste intervalo, no entanto, colocou o município em estado de emergência, segundo ele, por conta de chuvas abundantes e extravasamento do Rio Paranaporã . Alegava prejuízos relevantes da população. Por incrível e inexplicável que possa parecer, tinha sido um ano de seca, mas , mesmo assim,  o juiz de Matozinho, Dr. Zaqueu Chinchorro , prontamente acatou o pedido de emergência e, consequentemente, a licitação viu-se, sem maiores trâmites,  dispensada.  
                                    Se até aqui o processo já parecesse para lá de estapafúrdio, uma outra extravagância veio se juntar à sequência de coisas inusitadas. O construtor escolhido foi Hiroshi Katê, um  japonês que tinha vindo  morar em Matozinho há uns cinco anos. Até aí tudo bem, conhecia-se Hiroshi como um trabalhador incansável, direito, cumpridor de prazos e sempre cobrando preços módicos e razoáveis. O grande problema é que Hiroshi tinha sido exatamente o vencedor da primeira licitação  e, dizia-se na cidade, por um preço bem abaixo do valor agora apresentado na famosa placa. Que mistério poderia ter se interposto entre o preço da licitação e o valor apresentado, após estado de emergência municipal ?
                                   Negociações realizadas nas brenhas da noite costumam não deixar marcas e rastros. Sinderval sempre se pautara pelo cuidado excessivo com as negociatas e os vazamentos eventuais. O caso da construção da nova prefeitura poderia, simplesmente, ter se prendido ao mero bate-boca de canto de rua. Uma fato, no entanto, terminou por fugir ao controle. Otacílio Ganso, contador,  um dos membros da famosa câmara de licitação da cidade, foi flagrado em falcatruas e, Sinderval, o demitiu, não era homem de aceitar, placidamente, concorrência. No primeiro porre pós-demissional, Ganso deu com as línguas nos dentes. E assim os matozenses conseguiram deslindar todos os pontos obscuros da querela.
                                   Após a primeira licitação, Sinderval chamou, um por um , os três candidatos à construção da sede. Ouviu-os separadamente : Hiroshi, Mestre Chico dos Alisares e Pedro Mala Velha. O primeiro foi o Hiroshi. Sinderval estirou numa mesa larga o projeto de “Empena Prédio” e o perguntou: Qual o preço para construir a futura prefeitura de Matozinho ? Hiroshi examinou cuidadosamente a planta, fez alguns cálculos no caderno e deu seu preço:
                                   --- Prefeito, dá para fazer tudo por três milhões de reais.
                                   ---Três milhões, como assim ? Como você chegou a este número ?
                                   Hiroshi não titubeou:
                                   --- Um milhão de mão de obra, um milhão de material de construção e o outro milhão para a firma !
                                   Sinderval anotou tudo e chamou Mestre Chico dos Alisares que era tido por super meticuloso e , também, tinha fama da careiro. Chico examinou detidamente o papelório e deu seu preço.
                                   --- Sinderval, dá para fazer tudo por seis milhões. Dois milhões da mão de obra, dois milhões para compra de todo material e os outros dois destinados  à empresa que eu represento.
                                   Por fim, Sindé Bandalheira, após agradecer ao Chico e despedir-se dele,  pediu que entrasse no gabinete  o último candidato: “Mala Velha” . O homem tinha uma fama das mais enlameadas da vila. Abandonava obras, usava material de péssima qualidade, construía prédios sonrisal para várias prefeituras. Pedro, apesar de tudo, sabia-se bem porque,  era um dos construtores mais procurados   pelas prefeituras da região.
                                   Após Sinderval utilizar a mesma metodologia e apresentar a planta baixa a “Mala Velha”, este nem se deu ao trabalho de examinar o projeto.  Virou-se e deu seu preço:
                                   --- Prefeito, dá para fazer a obra por 12 milhões de reais !
                                   Sinderval sorriu amarelo e explicou que estava ouvindo um verdadeiro absurdo. Aquele preço ultrapassava entre 2 a 4 vezes o valor de mercado. Como ele chegara naquela doideira absoluta ? Ele jamais ganharia uma licitação. Mala Velha, então, disse que nem carecia licitação. Didaticamente fez o rateio que terminou por explicar os meandros da transação, a partir daquela data.
                                   --- São 12 milhões, prefeito ! Três  pra mim, três para o prefeito, três para o juiz que vai aceitar o estado de emergência de Matozinho e os outros três para a gente pagar ao japonês que é quem vai construir o diabo desse prédio !
                                  
Crato, 31/05/19

sexta-feira, 24 de maio de 2019

Condomínio Pindorama


                O certo é que o Condomínio Pindorama , que por muitos e muitos anos vivera a paz dos cemitérios, de repente, começou  apresentar constantes conflitos entre os moradores. Nem existira antes uma catástrofe maior, um tsunami mais chamativo, a tensão se foi armando, insidiosamente, ligada a medidas tomadas pelo então síndico do Pindorama. Outras causas certamente haveriam de ter contribuído. Condomínio de classe média, viu-se , pouco a pouco, mesclado com muitas outras esferas sociais: novos ricos metidos a besta; pobres novos, inconformados com a queda livre social; remediados inconformados com a impossibilidade de ascensão. Providências adotadas por Xilderico, o síndico em exercício, ajudaram a acender o estopim do dissabor. Permitiu que vendedores ambulantes fizessem ponto na proximidade do prédio; liberou, em portaria, a piscina para os familiares dos funcionários e regularizou a situação trabalhista dos empregados, muitos deles trabalhando na total informalidade. Xilderico, além de tudo, acabou com a exclusividade  dos elevadores sociais aos condôminos, agora o elevador de serviços deixou de ser o único veículo de ascensão permitido aos vigias e serviçais. Ainda no primeiro ano do mandato, o síndico passou a sofrer represárias e agressões verbais por parte dos moradores, culminando com uma reunião tensa do condomínio, em que foi achincalhado, pautado como irresponsável e incapaz e acabou sendo ameaçado e obrigado a solicitar sua renúncia, sob pena de risco de vida. Pentou o síndico até recorrer à justiça e embargar o processo do suicídio forçado, mas havia um juiz entre os moradores e o atemorizou , dizendo que  não teria nenhuma possibilidade legal, pois já falara com outros colegas e , em que vara o processo entrasse, seria, incontinenti, engavetado.
  
                                   A saída forçada de Xilderico foi aprovada pela maioria dos presentes àquela fatídica reunião onde, também, se deliberou a abertura do processo eleitoral para o novo síndico. Dois candidatos rapidamente polarizaram as preferências do eleitorado: o professor aposentado Bonifácio Valverde e o policial reformado  Cupertino  Caraminhola. Bonifácio, professor de filosofia por muitos e muitos anos, na cidade, sempre se mostrara calmo, tranquilo , tendo uma convivência doce com todos aqueles que dele se aproximavam. Candidatara-se pelo simples fato de que, agora, de chuteiras dependuradas , tinha tempo suficiente e precisa preencher o vácuo que o abandono da profissão lhe deixara. Já o Cupertino  carregava uma folha corrida mais complicada, policial, envolvera-se em esquemas de tráfico de drogas e, em fins de semana de folga, comentava-se , aceitava encomendas de pistolagem. Andara também meio pinéu, com internamentos em hospícios, quando cismou um dia que era Adolf Hitler.   Como era de se imaginar, a campanha eleitoral mostrou-se quentíssima, com agressões e sopapos de lado a lado. Cupertino montou uma rede de fofoqueiros que espalhava boatos por todo prédio: Bonifácio era comunista! Bonifácio desviara dinheiro da escola! Bonifácio queria liberar os apartamentos do prédio para abrigar famílias de imigrantes... A estratégia terminou por criar uma atmosfera de pânico e, o inimaginável aconteceu: por pequena margem de votos, Caraminhola elegeu-se o novo Síndico do Pindorama.
                                   Despreparado, sem nunca ter administrado sequer uma barraca de feira, Cupertino arvorou-se de Rei do Pindorama. Andava , para cima e para baixo, com uma pistola no cós.  Demitiu todos os funcionários e contratou novos, a maior parte da sua família e, cada um com um 38 na cintura, em nome da necessidade de defesa em tempos de franca violência.  Tinham ordem expressa de atirar em caso de invasão de suspeitos. Inventou uma taxa especial de condomínio, sob pretexto de os mais pobres usarem mais os serviços, onde os mais ricos pagavam menos que os desafortunados. Acabou com a formalidade do emprego no condomínio, excetuando-se, claro, os empregados que eram seus parentes e estes, mesmo assim,  tinham que devolver uma parte dos salários para os bolsos de Caraminhola. Com menos de dois meses, já se comentava, a boca miúda, que a verba arrecadada , mensalmente,  estava sendo desviada. Flagraram-se atrasos nas contas de água e gás, coisa que , antigamente, nunca tinha acontecido. Rápido, algumas medidas suas começaram a preocupar mesmo seus mais renitentes correligionários.
                                    Sob pretexto de economia, tomou medidas esdrúxulas. Terceirizou a piscina e a limpeza do prédio , entregando a amigos seus. Vendeu uma parte do terreno do condomínio, sem combinação prévia,  informando que havia prejuízo e precisava o caixa se capitalizar.  Semana passada, então, aconteceu uma catástrofe previsível. Meninos jogavam futebol nos arredores e, num chutão, a bola caiu dentro do playground do Pindorama. Dois meninotes tentaram saltar o muro para resgatar a bola e reiniciar o jogo. Os seguranças de Cupertino, sob ordens expressas, abriram fogo contra os invasores e os dois garotos passaram por cirurgia complicada e estão à beira da morte, recuperando-se numa UTI. Presos os agressores, sob influência policial de Caraminhola, estão respondendo em liberdade.
                                   O descontentamento tem se alastrado, mesmo no meio daqueles antigos cabos eleitorais. Semana passada, em reunião condominial, depois de apertado, Cupertino afirmou que o condomínio está falido e que só tem uma solução, implodir o prédio. Alguns poucos saíram ao pátio para protestar, a maioria, no entanto, aceitou piamente a prestação de contas do síndico e está placidamente sentada nas salas de estar de seus apartamentos, esperando que Caraminhola acenda o estopim e ponha o edifício abaixo. Quem melhor o definiu foi o velho Ganderino Vilas Boas, morador no andar térreo, que suportará todo o  peso do cimento armado implodido:
                                    --- Que ele era doido, todo mundo sabia ! A gente só num imaginava que o homem cagava, plantando bananeira !
                                     Deus acima de tudo, escombros em cima de todos !


Crato, 24/05/2019