sexta-feira, 26 de abril de 2019

Fintas


                Em Matozinho  uma das figuras mais detestadas era, sem nenhuma dúvida,  o tal do cobrador de impostos da prefeitura. No fundo, ninguém em sã consciência deleita-se em pagar tributos, sempre se tem a clara sensação de que se está trabalhando de meia com o governo: ele divide a renda e aos simples mortais cabe o trabalho duro e os riscos inevitáveis da empreitada. Por outro lado, o matuto manja rápido a treta que lhe é armada e sabe perfeitamente que a possibilidade de retorno do investimento tributário que lhe arrancam é exatamente zero. As casas comerciais montadas nas estreitas ruas da vila não tinham muito como se safar do achaque mensal e da sangria contínua. Viravam-se como podiam na sonegação nossa de todo dia, vezes subestimando as vendas, não emitindo notas fiscais, outras subornando um ou outro tributarista mais escorregadio e sabichão.
                                               A grande Feira de Matozinho acontecia às quintas. Era um dia de festa, feriado municipal. No campo, ninguém trabalhava, todo mundo vinha para a vila sob o pretexto de comprar os mantimentos da semana. Junto, os homens invadiam os bares e a famosa rua do “Caneco Amassado”, qu afinal ninguém é de ferro.  O comércio abria normalmente, mas as ruas faziam-se os grandes protagonistas do dia :  apinhavam-se de ambulantes  com suas barracas, e de camelôs de voz sinuosa e tonitruante, divulgando as mais variadas pomadas e unguentos.  Como num shopping, havia áreas específicas para legumes, carnes,  confecções, bebidas, salão de beleza, utensílios domésticos, ferramentas de trabalho e até uma praça de alimentação.  Como era de se esperar, neste dia especial, os fiscais da prefeitura vinham como enxame de oropa , em busca de recolher os impostos, que ali ainda chamavam de Finta,  deste comércio vário e eventual.  Os ambulantes, afeitos ao achaque semanal, defendiam-se como podiam, sabiam que era bem mais fácil sonegar as vendas procedidas de forma esporádica e sem controle de estoque. O embate era sempre no cálculo da quantidade comercializada que, no final, terminava por aumentar ou diminuir o total do imposto a ser recolhido.
                                               Semana passada, Tito Coletor, um dos mais intransigentes e ferozes cobradores de impostos de Matozinho, acercou-se , na feira, da barraca de Quinco Magarefe, de talonário em punho, pronto a cobrar a finta devida,  para os cofres públicos ou, melhor, para os bolsos do prefeito Sinderval Bandeira. Olhou de relance a carne de porco  exposta no primeiro balcão e perguntou com cara sisuda de quem esperava de antemão que seria ludibriado.
                                   --- Boa tarde, Quinco ! Quantos porquinhos matou nessa semana ?
                                   O açougueiro, sem encompridar conversa, com cara de comércio ruim, pôs água na fervura:
                                   --- Comércio ruim danado, Tito ! Matei só um porquinho. Mais , é prejuízo certo.
                                   Tito, experiente, macaco velho, correu os olhos pelos cantos mais recônditos do balcão e contou, rapidamente, seis mocotós, meio escondidos em meio ao pernil.
                                   --- Eita, Quinco ! Só um porquinho ? Tô vendo ali seis mocotós naquele cantinho !
                                   O magarefe não perdeu a pose:
                                   --- Pois é, Tito ! Veja como são as coisas! Era um leitãozinho trucado, desses 4X4 , com tração nas quatro patas !
                                   O coletor, acostumado aos desdobros dos feirantes, não se embananou. Viu, no outro balcão do lado, uma dianteira enorme que parecia de um boi grande. Voltou ao interrogatório para poder fechar o imposto :
                                   --- E boi , só foi esse mesmo ou matou mais ?
                                   Quinco, mais uma vez, deu sua queda de asa:
                                   --- Num foi boi não, homem de Deus ! Mandei matar uma cabrinha grande e trouxe para vender a carne.
                                   Tito, meio impaciente, correu os olhos e viu num balaio , embaixo da mesa, um úbere enorme de vaca, coisa de fazer render uns oito litros de leite coado ao dia. Concluiu ,rapidamente,  que devia ter sido uma vaca holandesa velha  que o magarefe teria sacrificado e trazido para venda na feira. Botou o homem contra a parede:
                                   --- Cabra, Quinco ? Cabra? Desse tamanho a dianteira ? Tu tá doido ? E esse úbere desse tamanho ? Que diabo de cabra leiteira danada, foi essa ? Nannn !
                                   Nosso magarefe, mais uma vez não perdeu a pose. Encheu os olhos d´água, fitou o cobrador com cara de cachorro vendo frango assando na brasa e deu sua versão:
                                   --- Nem queria falar nessa tragédia, Tito ! Até já tinha me esquecido e agora vem você colocar o dedo na ferida. Manhãzinha cedo,  pedi pros meus ajudantes matarem o porco trucado e a cabra maior que eles encontrassem no chiqueiro. Parece que eu estava doido ! Esqueci da minha cabrinha de estimação e quando cheguei para arrumar as coisas para vir para feira, minha relíquia , Santa Inês, PO, tinha sido sacrificada ! Ela dava seis litros de leite todo o dia !
                                   Entre soluços , terminou por completar a história:
                                   --- Que vou fazer eu da vida, Tito,  agora que perdi minha cabrinha leiteira,  a minha Jojo Todinho ?

Crato, 26/04/2019

segunda-feira, 22 de abril de 2019


Carta do Dr. José Newton Alves de Souza 


Salvador, 18 de Março de 2018



Prezado José Flávio Vieira, historiador das coisas regionais cuja produção se tem revelado de apreciável valor, como o atesta o seu extraordinário estudo sobre a medicina no Cariri cearense, que tive a alegria de ler, na íntegra, no livro que tão gentilmente me enviou: o Dormindo à Borda do Abismo.

Li da primeira à última página o seu discurso de saudação de Huberto Cabral.

Considero de real valor ações universitárias focalizadas em realidades culturais de efetiva importância.

Da primeira à última linha meus olhos perceberam, de logo, o alto teor de sua pesquisa. Não é somente um documento formal, mas um estudo de elevada qualidade especifica que honraria qualquer Universidade. Feliz o Crato que continua a contar com intelectuais de tanto valor, entre os quais seu nome é um dos mais brilhantes.

Huberto Cabral mereceu a homenagem pelo o que fez na sua área, que se pode entender como objeto formalizado em honra universitária que vai além da atividade estritamente formal.

O que Humberto fez como jornalista e entrevistador constitui, sem dúvida, um objeto a ser, como foi, merecedor de um título que agora lhe foi outorgado como uma homenagem.

Que seu discurso, que sua cultura e talento concretizaram numa peça que, novamente, honraria qualquer Universidade ou instituições outras, caracterizadas pela efetiva cultura.

Aceite, querido amigo, um forte abraço, que representa minha estima e minha admiração pelo seu valor intelectual e profissional.

Muitas coisas poderia ainda dizer, oriundas da minha admiração, referente a você como um intelectual produtor de frutos, particularmente, os focados em temas históricos.


José Newton Alves de Sousa



segunda-feira, 15 de abril de 2019

Semeador de horizontes, descortinador de futuros


Nesse último dia onze de abril, comemora-se o centenário do professor José do Vale Arraes Feitosa. As gerações mais novas, ávidas e prenhes de presente,  talvez nem venham a se sensibilizar com as cinzas de um passado, mesmo que dourado e glorioso. O professor Zé do Vale foi um ícone da educação caririense entre os anos 1950-1970. Nascido nas vastidões áridas dos Inhamuns , veio bater nos pés de serra do Crato, empanturrando-se dos ensinamentos do Seminário São José. Aqui casou por duas vezes, teve  filhos, investiu-se das nobres funções  de educador e administrador escolar, formando inúmeras gerações de jovens no Colégio Diocesano,  Estadual Wilson Gonçalves e no Colégio Agrícola, hoje IFCE e , por fim, na “extrema curva do caminho extremo”, escolheu esta cidade como sua derradeira morada. Neste sábado, familiares, colegas, ex-alunos, amigos reúnem-se para comemorar, com vasta e diversificada programação,   os cem anos de um dos mais importantes educadores que já perlustraram o sul cearense.
                                      O mestre carregava consigo qualidades  humanas e científicas difíceis de se reunir em um só vivente. De origem humilde, conseguia enxergar as dificuldades quase que intransponíveis que se antepõem diante dos alunos mais pobres. Percebia que careciam de tolerância extrema, de cuidados especiais e paciência redobrada para conseguirem se desvencilhar da areia movediça social em que tinham, secularmente, sido  atirados. Desdobrava-se , por sua vez, em transpor os próprios obstáculos da Escola Pública, cuja incúria e crônica falta recursos não existiam por mero acaso, mas como bem definiu Darcy Ribeiro, eram sempre um tenebroso e multi secular projeto governamental. Zé do Vale conseguia ter autoridade, sem autoritarismo nenhum, era doce e carinhoso em todas suas ações, talvez, por isso mesmo, fosse sempre profundamente admirado e querido por todos seus alunos. Sempre é bom lembrar que o ápice da sua atividade educacional transcorreu em plena Ditadura Militar de 1964, quando estudantes e líderes políticos de oposição eram caçados literalmente no país e trucidados em praça pública ou nos porões do DOPS. O professor manteve-se impávido nas suas funções, fugindo do autoritarismo então imposto de goela abaixo, ciente de que a dialética, o conflito de díspares pensamentos e ideias perfazem , sempre, a essência da liberdade e da Democracia.
                            No dia de hoje, assim, não se celebra apenas o centenário de um Educador pleno e completo, um semeador de horizontes , um descortinador de futuros. Concelebramos a existência de toda uma geração de educadores: Vieirinha, Luiz de Borba Maranhão, Padres Ágio e  Davi Moreira, Sílmia Sobreira, Maria dos Remédios,  Alderico e Agnelo Damasceno, Adalgisa Gomes, Prof. Felix, Ivone Pequeno e muitos e muitos outros. Todos eles sabiam-se transformadores de realidades, catapultadores de    habilidades, formadores e moldadores de caráteres,  muito mais que meros explanadores de matérias e disciplinas. Toda essa geração de profissionais entendia a capacidade única e redentora da escola pública de qualidade e sabiam-na com instrumento único de dirimir seculares desigualdades sociais; de fazer com que a escravidão fosse definitivamente apagada das nossas relações humanas, bem além da Lei Áurea; de construir uma sociedade banhada em ideais de fraternidade , um Brasil  de cidadãos e não de párias e de bramas. Hoje, reverenciamos esse sonho, num momento crítico de nossa história , quando vozes tenebrosas afiam lâminas, engatilham coldres,  preparando-se para novas temporadas de caças. Quando celebramos Zé do Vale e toda essa plêiade de educadores caririenses , enaltecemos suas memórias, mas principalmente festejamos a vida, a esperança, uma luz que mesmo hoje bruxuleante tem o poder de incandescer em feitio de estrela candente  e de sol abrasador .

Crato, 12/04/19