sexta-feira, 26 de maio de 2017

Bummm !


Eita , que este  mundo em que vivemos, hoje,  não é para amadores !  Trump estrompa os Estados Unidos , Kim Jong-un assombra na Coréia do Norte, brincando com seus mísseis. Só nos últimos dias,  tivemos um atentado  em Manchester, na Inglaterra, com mais de vinte crianças trucidadas por um terrorista islâmico suicida; no Brasil manifestações generalizadas contra um presidente  pego com a mão na botija em esquemas de corrupção , esperando o último empurrãozinho para ser defenestrado;  e um outro atentado em São Paulo, patrocinado pelo estado,  contra  toxicodependentes de rua que , ao invés de tratamento adequado e acolhimento, recebem cassetetes e repressão policial. A sociedade moderna está contaminada com uma explícita e intragável sanha de preconceitos de toda espécie. A nossa classe política encontra-se eviscerada, excrementos  à mostra. As redes sociais, a caixa de ressonância destes tempos sombrios, destila veneno contra nordestinos, judeus, homossexuais, imigrantes, negros.  Sentimo-nos como se  o planeta fosse um grande paiol de pólvora, com vinte doidos dentro,  fumando charuto, enquanto, acendem uma fogueira para comemorar o São João. Bumm !
                                   A cena mais patética destes tempos tenebrosos, não aconteceu em Brasília, até porque não temos mais governo . Ruiram as últimas decrépitas paredes da nossa República.  Restou apenas uma quadrilha de facínoras , encastelada  e dividindo seu butim. Para mim , a invasão policialesca da Crocolândia em São Paulo  foi a mais patognomônica ação dessa era sombria em que vivemos. Como sempre, a elite política e econômica do país, nega-se a encarar nossas mazelas de frente. Procuramos soluções superficiais , na tentativa de solucionar a complexidade dos nossos problemas. E foi , assim, historicamente, sempre ! Dizimou-se o Arraial de Canudos, trucidando um bando de esfarrapados famintos, intencionalmente, para que se não enfrentassem as perversas  causas sociais do fenômeno.  Bombardeou-se o “Cadeirão da Santa Cruz do Deserto”, sob pretexto de dispersar fanáticos religiosos, temendo a mesma elite, na verdade,  os naturais laivos socialistas do sonho do Beato Zé Lourenço. No Sudeste,  houve inúmeras denúncias anteriores de higienismo do estado, quando se recolhiam mendigos e moradores de rua, soltando-os em cidades mais distantes, ou no mar,  numa reedição da stultífera navis medieval. A medida tomada pelo almofadinha prefeito de São Paulo, assim, tem respaldo histórico. Talvez seja por isso mesmo que ele tenha a mania de se travestir de Gari : pretende varrer aquilo que considera a  sujeira humana, da cidade. Para ele, pobres , famintos, viciados não fazem parte do gênero humano: são lixo.
                                   A invasão policial e violenta da Cracolândia, com a expulsão dos toxidependentes, a destruição de prédios tombados, alguns com famílias dentro que terminaram feridas, teve repercussão internacional. Entidades  psiquiátricas e de defesa dos direitos elementares da cidadania se puseram frontalmente contra. A medida, além de violenta e higienista, beira às cenas de Campos de Concentração na II Guerra. Expulsaram-se os toxicômanos , simplesmente, sem nenhum projeto atrelado de reabilitação . Alguns foram internados contra a vontade, inclusive medida ilegal sustada logo depois pela justiça. Na inglória tentativa de se “limpar” a paisagem urbana do Centro de Sampa, criaram-se muitas e muitas outras Cracolândias. Dória jogou inseticida em algumas formigas que perambulavam por fora do formigueiro e imaginou que , assim, acabaria com a saúva no milharal. Colocou um dique para impedir o fluxo do rio e nem imagina que,  represada a água, agora a enchente virá com muito mais força.

                                   Precisamos enfrentar os nossos problemas na sua raiz se  queremos tê-los solucionados. Já que Dória , o Super-Gari, investiu-se da missão de limpar e higienizar o país, bem que poderia começar pela classe política que hoje perfaz a maior fossa séptica do Brasil, a começar por aqueles do seu partido. Dificilmente Dória dirigirá seu trator nessa direção , simplesmente porque não tem ideias suicidas. Sempre é mais fácil enxotar maltrapilhos e viciados. Mas já que deu a ideia, bem que o povo pode inspirar-se nele e partir para a limpeza geral do aterro sanitário que é a política partidária brasileira. Essa sim a maior produtora de vandalismo na nação. Os confrontos de Brasília, na última segunda-feira,  já foram um bom começo !  Esse é o higienismo que necessitamos !

26/05/17

sexta-feira, 12 de maio de 2017

Panelada e Caititu



J. Flávio Vieira

                               A segurança de Matozinho  sempre foi entregue a três ou quatro samangos que corriam o risco eterno de morrer de enfado ou de preguiça. Tanto assim que Severo  , o mais tranquilo guarda local, era um dos mais procurados para indicar pules no jogo do bicho, tanto vivia a dormir e sonhar pelos cantos da delegacia. A cadeia local vivia entregue às moscas e o escrivão, Toinho do BO, já até desaprendera  a escrever. As embuanças  resolviam-se na rua : bebedeiras, briga de marido e mulher, tapas no pé-do-ouvido e muxoxos. Raramente as lambedeiras faziam bainha em bucho de gente.  Matozinho, assim, não podia ter queixas da sua polícia municipal.
                        A coisa pesava, no entanto, quando, periodicamente, principalmente em tempos de eleição, a Polícia Militar do estado vinha mostrar serviço na cidade. Os milicos chegavam, então, enfatiotados, com ar de superioridade, humilhavam os guardas locais e sojigavam o povo, a toda hora, dando geral, buscando armas, colocando sob suspeita  tudo quanto era de vivente. Nesta ocasiões, de preferência, prendiam logo os dois mais conhecidos malacas da Vila : “Panelada” e “Caititu”. Os dois  possuíam uma extensa Folha Corrida preenchida de falcatruas,  como  pequenos furtos, negócios enrolados, compra e venda de cheques sem fundo, receptação de objetos afanados, contratação de pistoleiros e coiteiros,   estelionatos de pequena monta. Os dois malandros viviam destes rolos , mas tinham uma profissão oficial que lhes envolvia numa certa aura de honestidade. “Panelada” dizia-se mecânico numa pequena oficina na periferia da vila,   e  “Caititu” exercia a especializadíssima profissão de coveiro.
                        Pois, naqueles dias, a Polícia Militar entrou com estardalhaço em Matozinho. Vinha investigar o roubo reiterado de cargas de caminhão. Dirigiram-se diretamente ao Dr. Olímpio Matagão, o juiz de direito em exercício,  naqueles cafundós do judas.  Olímpio sempre fora mais desmantelado que queda de helicóptero. Fazia acordos com rábulas por debaixo dos panos, vendia sentenças, sem pejo, como quem negocia  gimgibirra ou quebra-queixo em banca de feira. Contava-se dele que , um dia, tendo negociado com um matuto uma sentença a  favor, numa briga de terra, o babaquara invadiu uma audiência de Matagão e gritou , como se fora a coisa mais natural desse mundo :
                        --- Seu juiz, eu vim trazer o dinheiro que o senhor pediu pra julgar aquela questão a meu favor !
                        Matagão encolerizado, levantou-se , saiu empurrando o matuto à base de safanões, gritando-lhe impropérios , até jogá-lo atrás de uma porta,  e, enquanto metia-lhe a mão no bolso e pegava o maço,  lhe sussurrou :
                        --- Tá doido , Mané ! Isso se dá é detrás da porta e não na frente dessa ruma de fofoqueiro !
                        Matagão, de posse das informações da PM, já pensando em alguma ôia que pudesse vir do Sindicato dos Caminhoneiros , arrolou as figurinhas carimbadas de sempre , a fim de colher informações : “Panelada” e “Caititu”. O primeiro a ser ouvido : “Panelada”.
                        Olímpio, com ar sério e enérgico, começou o interrogatório e o jogo de caça ao rato :
---  “Panelada”, você conhece “Caititu”?
O malaca já providenciou o primeiro drible:
--- Conheço sim, seu juiz ! Mas caçaram tanto que quase num tem mais esse bicho aqui em Matozinho ! Tá em extinção !
Olímpio , exasperou-se :
--- Não se faça de engraçadinho não, seu moleque ! Você sabe de quem eu tô falando !Me fale dos caminhões !
“Panelada” providenciou o segundo traço :
---  Tem o Fênemê, o Chevrolet e o Ford ! O senhor tá querendo comprar um ?
Matagão, nervoso, voltou a atacar:
--- Quero saber, se você sabe quem está nas estradas tirando os carregos ?
--- Na de Bertioga, o terreiro de “Pai Catolé”. Na estrada de Serrinha,   pode procurar “Mãe Zulene de Iansã”.
                        Fulo da vida, Matagão mandou que levassem “Panelada”, que driblava melhor que Garrincha na direita,  e trouxessem  “Caititu” para o interrogatório. Quem sabe ele não resolveria cooperar? O homem chegou naquela tranquilidade típica dos inocentes.
Matagão, recompôs-se   e atacou :
--- “Caititu”, você conhece “Panelada”?
O malaca mostrou que não entregaria o jogo fácil:
--- Conheço, seu juiz ! Mas deus me livre de comer ! Fico logo impando !
Olímpio percebeu que estava diante de um outro Pelé  e interrogou novamente:
--- Você tá se fazendo de mal-entendido, seu malaca ! Diga logo onde esconde a carga roubada dos caminhões !
Caititu nem bateu a passarinha :
--- Sei disso não, seu doutor ! Carga ? Caminhão ? Eu sou coveiro, não vendo casa, não vendo óleo, não vendo leite... Nem sentença, seu juiz, nem sentença ...
Matagão entendeu a indireta e , fumaçando por todas as chaminés, ameaçou :
---- Venha ! Venha !Sabia que eu possa deixar você apodrecendo na cadeia, seu meliante ?
Caititu nem mudou o tom de voz e deixou claro a vantagem que levava sobre o juiz por ser coveiro :
--- O senhor pode me prender, seu doutor ! Fico lá um ano, dois, dez, mas um dia eu saio ! Agora se eu prender vocimicê, eu quero é ver ! O Senhor não sai de lá mais é nunca !

Crato, 12/05/2017


sexta-feira, 5 de maio de 2017

3 de Maio : Semente e Fruto


                                               Era um domingo na pacata Vila do Crato. Há exatos duzentos anos,  a vilazinha resumia-se a uma pequena praça central de onde saiam radialmente onze ruelas. No extremo sul cearense,  o Crato sempre teve uma ligação fortíssima com Pernambuco, mesmo depois da nossa emancipação daquele estado,  no finalzinho do Século XVIII. Boa parte da nossa colonização branca dali procedeu, de lá  também importamos a nossa mais preponderante cultura:  a cana de açúcar e as ideias iluministas viriam também a reboque. Naqueles idos, o Ceará vinha assoberbado de muitos problemas: uma seca que já se arrastava por mais de dois anos e  uma consequente carestia nos gêneros de primeira necessidade; o domínio português no comércio da Província revoltava os comerciantes nativos; por outro lado, após a chegada da família real,  o Sul do país começou a se tornar preponderante no Brasil, relegando o Nordeste a um plano inferior.
                                   Pois foi em meio a esse  cenário,  que naquela fatídica manhã de  3 de Maio de 1817 , um seminarista cratense do Seminário de Olinda, de 22 anos, envergando sua batina negra,  subiu ao altar da Igreja da Sé , após a missa dominical. Com voz forte e empostada leu um manifesto enviado de Recife em que proclama a Independência e a República no Brasil. Na plateia uma elite local constituída de proprietários rurais e comerciantes e muitos populares aplaudem freneticamente a iniciativa. A reviravolta política progride com o hasteamento da bandeira branca da república e a deposição imediata de toda a burocracia monárquica cratense. Novos serventuários seriam imediatamente eleitos , o Capitão-mor da Vila , Pereira Filgueiras, representante maior da monarquia na região,  num primeiro momento, pareceu aderir ao movimento libertário e seria içado a “Comandante das Tropas” revolucionárias. Dois dias depois conseguiriam a adesão de Jardim, uma das mais importantes vilas caririenses na época.
                                   O sonho pioneiro e premonitório da República do Crato durou, exatamente, oito dias. O governo central retomou as rédeas do poder político com a ajuda das elites comerciais e feudais num Ceará de forte viés lusitano. A bandeira da República foi defenestrada e rasgada. Os revoltosos foram detidos entre eles:  José Martiniano ( o seminarista revolucionário ), seus irmãos Tristão e Pe José Carlos. Junto ,  a primeira heroína e presa política brasileira , a matrona dos Alencares : D. Bárbara. Eles permaneceriam detidos, precariamente,  em prisões pútridas e fétidas em Fortaleza,  Recife e Salvador. Por um mero acaso, escapariam da pena de morte e  seriam liberados, quatro anos depois, por conta de ordens da Corte, após uma Anistia Geral que se seguiu à  Revolução Liberal do Porto.
                                   Na última quarta feira, dois séculos depois, um ator subiu ao altar da Sé e refez o ato e o discurso históricos. A pequena plateia , após a missa, deve ter se perguntado, já sem a emoção passada:  que  legado deixou a fugaz República do Crato ?  Aparentemente, resumiu-se tudo a um gesto tresloucado e inglório. A partir daquele momento,  começamos a computar baixas. O Nordeste foi, pouco a pouco, perdendo sua força política e econômica no cenário brasileiro, vendo a gangorra guinar para  o sul e sudeste . O interior do Ceará, então o apogeu da província,  foi paulatinamente  percebendo  sua influência esvair-se para Capital. E o Crato , depois do segundo quartel dos Novecentos, observaria, atônito, seu poderio mercantil e político obnubilar-se no Cariri. O movimento seminal encetado em Pernambuco, no entanto, de tão curta sobrevivência, fincou ideias iluministas que redundariam logo depois na Independência do Brasil, embora o sonho republicano ainda tivesse hibernado por mais de setenta anos.
                                   Acredito que o mais importante testamento deixado pelos revolucionários de 1817 tenha sido a coragem e a determinação de lutar contra as forças opressoras, mesmo colocando o pescoço no laço da forca. No fundo, eles não titubearam em plantar uma árvore que daria frutos para serem saboreados por futuras gerações. Hoje , quando novamente a Democracia é colocada em cheque; quando a Escravidão tende a reaparecer, no baile,  fantasiada de reforma trabalhista; quando o entreguismo governamental põe em risco a Independência conquistada em 1822;   quando a miséria e a fome reaparecem como plataforma de governo; quando os verbos administrar e afanar já são sinônimos; o ideário e a coragem de Bárbara, José Martiniano, Pe Carlos José e Tristão , mais que nunca parecem exemplares e atuais. O Altar da Pátria aguarda ansioso um outro três de maio.


Crato, 05/05/17