sexta-feira, 27 de maio de 2022

Dr. Raimundo Vieira - 100 Anos

 

“O herói é o homem que faz o que pode.”
Romain Rolland

 

                               No último dia 17 de maio, a nossa família  celebrou o centenário do Dr. Raimundo Vieira,  médico que , a partir de 1963, se radicou em Iguatu, aqui no Ceará e ali fez uma profícua carreira, atendendo incontáveis gerações. Formado em Salvador, em 1952, Dr. Raimundo teve uma breve passagem por Minas Gerais, onde clinicou na cidade de Rio  Pardo, onde, inclusive, foi prefeito. Casado com uma colega de turma, a Dra. Antonia Araruna, também caririense, o casal terminou por voltar ao Ceará, onde, em Iguatu, fez toda sua vida profissional.  Toinha, gineco-obstetra como o marido, era de uma fineza de trato inigualável, amada e querida por toda a população, quis o destino chamá-la prematuramente, legando à posteridade dois filhos: Ítalo e Márcio. Ante o baque inesperado, Dr. Raimundo precisou refazer os estilhaços da vida feliz que lhe restara. Anos depois, encontrou Francisquinha, uma professora dedicada que lhe trouxe o equilíbrio necessário para refazer a estrada que lhe aparecia tão nebulosa e sem perspectivas. Deste segundo casamento nasceu Márcia, uma menininha alegre e  sapeca que se tornaria uma das mais importantes engenheiras do Ceará.

                        Dr. Raimundo teve toda uma vida dedicada ao trabalho. Até próximo à sua partida, aos 96 anos, ainda clinicava e exercia funções burocráticas nas Secretarias de Saúde. Foi o mais longevo dos filhos do casal Vicente Vieira & Senhorinha, nascido ali na Lagoa dos Órfãos, um pequeno sítio próximo a Várzea Alegre. Mantinha uma vida quase monástica e sacerdotal, dividida entre as atividades médicas e a Agropecuária, um amor que herdara dos seus descendentes espalhados pelas cercanias do Riacho do Machado.  De origem humilde, filho de pequenos lavradores, teve que ralhar muito para conseguir formar-se em Medicina na longínqua Bahia. A família toda deve, certamente, à visão de futuro de seu Vicente Vieira, semianalfabeto, em fazer com que os rebentos arrebentassem as amarras estreitas da lavoura e partissem para o estudo, para a Ciência, desbravando um mundo que até então não lhes era acessível. José, o mais velho, precisou ficar com o pai para tocar os trabalhos e, depois, fez-se comerciante no ramo das livrarias; Vieirinha se tornou professor renomado no Cariri; Antonio fez-se padre e, depois, escritor e deputado federal;  Eunice , Laís e Balbina professoras.

                        Dr. Raimundo nunca abandonou suas origens. Isto, por si só, dá um testemunho de sua grandeza. Amparou, profissionalmente, toda sua imensa família, cuidando da saúde de todos e acompanhando as muitas e muitas gerações. Seus imóveis em Fortaleza tornaram-se Repúblicas de amigos e parentes que precisavam ir à capital a fim de completar seus estudos. Adquiriu, pouco a pouco, dos herdeiros, as terras da Lagoa dos Órfãos, que guardava quase como um relicário. Aos poucos, os herdeiros foram novamente se achegando e ele acolheu, novamente os que necessitavam, sem quaisquer resquícios de donatário ou proprietário. Para ele as afinidades de sangue eram bem mais importantes que as cláusulas de inventários e de partições.

                        Quis esse texto simples, como o nosso hoje centenário tio Raimundo. Um texto, como ele: mais de substantivos que de adjetivos. O tio faz parte daqueles heróis anônimos que não figuram nas estátuas de bronze, nos louros e nos poemas épicos. Pai exemplar e amoroso; profissional dedicado, um missionário; médico com o ingrediente básico da Medicina: a capacidade de ver a angústia e sofrimento do outro que precisam ser lenidos. Toda uma vida dedicada ao bem comum. Seus feitos, como os dos verdadeiros heróis, não estarão descritos nos livros e nas epopeias sujeitos aos carunchos do tempo, Dr. Raimundo os escreveu na alma e no coração das pessoas. Sua lembrança hoje, cem anos depois, nos cai no espírito  ainda como um unguento, como um bálsamo!

 

Crato, 27/05/2022      

sexta-feira, 6 de maio de 2022

O Breve sonho de Bárbara

 





 

J. Flávio Vieira

                                               Nesta semana,  comemoramos os 205 anos da Revolução de 1817. Aqui no Cariri, em pleno início do Século XIX, durante oito dias, o Crato se tornou a mais importante cidade do interior do Brasil, quando, após a homilia do padre Vicente José Pereira, na Sé Catedral, o diácono José Martiniano de Alencar, prenhe das ideias revolucionárias de Pernambuco, deflagrada dois meses antes, declarou a Independência do Brasil , cinco anos antes de ela realmente acontecer e o estabelecimento do regime republicano, um sonho que só se consolidaria mais de sete décadas depois.  Num pioneirismo que acompanha o Crato em toda história,  temos o protagonismo de uma mulher na Revolução , D. Bárbara de Alencar, a primeira presa política do país e, também, sua primeira heroína.

                                    O que faz a breve  Revolução de 1817, tão especial ? Aquela que teve a duração de apenas uma semana no Cariri e um mês e meio no Nordeste , até ser totalmente sufocada ? Como a maior parte dos levantes brasileiros, os mesmos desvios seriam reiteradamente cometidos. O movimento foi desencadeado, também,  pelas elites brasileiras e, como sempre, o povaréu entrou apenas como coadjuvante e bucha de canhão. Havia , como mola propulsora, como sempre alertava o professor Alderico Damasceno, fortes razões econômicas na insatisfação, principalmente no aumento de impostos intensificados pela gastança da família real  recém chegada no Brasil. Na carta de reivindicações não existiam temas sociais: não se tocava na desigualdade, na escravidão, na miséria, na perseguição aos índios.  Na hora do vamos ver, aconteceria, também,  a debandada geral, e mais do que Pedro a Jesus, negaram muitas e muitas vezes a participação. Alguns poucos terminaram por pagar o pato pela ousadia.

                                    O grande diferencial da Revolução de 1817 é bem visível a quem queria ver. O protagonismo pioneiro de D. Bárbara, a sublevação de várias colônias ( Pernambuco, Ceará, rio Grande do Norte, Paraíba) com instalação de governos provisórios. Sonhou com a Independência que viria, por inércia, cinco anos depois e, primitivamente, já lutava pela queda do regime monárquico absolutista, uma luta que já se estendia desde a Revolução Francesa  (1789-1799). A Inconfidência Mineira de  1789, por incrível que possa parecer, tem uma relevância enorme nos livros de História, aconteceu no coração financeiro do Brasil à época, mas é bom lembrar que não passou de reuniões e projetos. Claro que tem o nome indiscutível de Tiradentes que, em meio aos conjurados da elite intelectual de Vila Rica, era  o único mais humilde e desamparado e terminou por, sozinho, ser levado à forca.  A Revolução de 1817, na banda pobre  do  Brasil- o Nordeste, ficou esquecida nas margens dos livros de História. Conflagrou várias colônias, instalou governos provisórios, sonhou com a República e, na hora do debacle, vieram as masmorras inóspitas e terríveis e a chacina da cúpula do movimento no Recife.

                                    Num tempo onde o calar e o delatar se tornaram quase que um modus operandi do viver, na modernidade, onde muitas das mesmas deformidades do passado ( miséria, fome, desemprego, desigualdade social) permanecem vivas como no Século XIX, sempre é salutar lembrar a história de homens e mulheres que lutaram por um país melhor e igualitário. Por tudo isso, a Revolução de 1817 continua sendo a mais linda, mais breve e arrebatadora das Revoluções brasileiras.  A inutilidade pensada por Câmara Cascudo estava , certamente, na espera dos frutos imediatos que, com galhos decepados tão rápido, não brolharam. Mas, ao redor da árvore, ficaram sementes muitas que floresceriam depois e outras tantas que aguardam um pouco de adubo, um pouco de sereno para rebentarem e repovoarem o mundo.

Crato, 06/05/2022