sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Taqui procêis !

 

 


                                    A Troça Carnavalesca Mista “Tá ´Qui Pro´cêis !”,  há trinta e cinco anos desfila nos carnavais de Olinda. Traz no estandarte  um grande “Cotoco” que simboliza aquele gesto quase tribal que todos nós já estampamos ( externa ou intimamente)  em inúmeras situações nesta vida,  com santos de menos e FDP de mais. Os pernambucanos de origem ou adotivos , como eu, andam meio desesperados e de língua de papagaio depois que a Covid 19 levou o Carnaval 2020 para o respirador. Estamos todos escarmuçando,  esperando o chamado de Momo em fevereiro próximo,  isso se a pandemia não resolver vir para festinha de Variant. Pois bem, o “Taqui Procêis !” já conseguiu , gratuitamente, seu mascote para o Carnaval 2021:  o simulacro de ministro ou sinistro da Doença Queiroga ou Quidroga como já o chamam alguns. O Brasil levou uma vultosa comissão para Nova York com fins de ciceronear o presidente da nossa  republiqueta bananosa  que faria uma live, diretamente da Nações Unidas, direcionada aos 22% de ruminantes que ainda lhe dão apoio.  Hospedaram-se todos em hotel estrelados ao máximo,  pois quem atira com pólvora alheia não toma chegada. Na live , como bom ficcionista,  ele descreveu um Shangri-lá de que, infelizmente não deu o endereço para a gente se mudar para lá,  e, como bom charlatão, continuou a prescrever meizinhas que têm um efeito pior do que água do pote para a Covid. E lá estava ele, como único chefe de uma nação que não se vacinou. Terminada sua fala , a organização teve que dar um banho de álcool no púlpito e trocar o microfone que deve ter sido levado para o autoclave. À noite, a comitiva viu-se recepcionada por uma trupe de brasileiros em protesto, foi quando o Queiroga, revoltado ( imaginem um protesto contra um governo ótimo como o da Besta Fera ?) , cumprimentou a turba com dois fabulosos “Taqui Procêis !”

                                    A repercussão em todo mundo foi imensa, o sinistro teve até que pegar Covid para atrasar sua volta ao país. Alguns criticaram a falta de controle, uma vez que os protestos são um apanágio das Democracias e um direito do cidadão que é quem  paga a conta das viagens. Outros lembraram a liturgia do cargo, naquele momento não era o Queiroga ( ele  se alterna entre capacho e jagunço do presidente),  que dava o cotoco, mas o Ministro da Doença do Brasil, de quem se exige ( seja lá quem esteja de plantão  ocupando o cargo) um mínimo de postura e honradez. Todas estas críticas são perfeitamente cabíveis em se tratando de um governo normal. Mas não é, infelizmente, disso que se trata. Estamos diante de déspotas que, a todo instante, ameaçam o regime democrático e que se põem em incessante luta contra todo marco civilizatório. Pregam, abertamente,  a ditadura; o fechamento do Congresso e do Supremo; agressões à imprensa; o  armamento da  população e o preparo da   guerra civil; o confronto com a Ciência; o Terraplanismo; o Charlatanismo; a mentira;  o extermínio de inimigos;  a destruição da natureza; o racismo , a xenofobia, o genocídio e o apagamento de qualquer traço de Cultura. No meio dessas labaredas infernais,  o cotoco do sinistro pode ser considerado apena uma fagulha,  um afago, um abença-mãe.

                                    No Carnaval de 2022,  a Troça “Taqui Procêis” significará bem mais daquilo que sempre representou. O Taqui procêis pode ser considerado um slogan do atual governo, poderia até ser estampado como sua logomarca . Estão reclamando do preço do arroz, da gasolina, do gás,  do óleo, da carne ?  Do desemprego ? Da Inflação ? Da fome ?  Da falta de vacina que não paga propina ? Do salário de miséria ? Da compra superfaturada do Centrão ? Das Rachadinhas ? Do desmatamento ? Dos incêndios nos museus e na Cinemateca ? Vocês querem é água, é ? Azeite,  senhora  Vó !

Taqui procêêêêiiiiiissss !

 

Crato, 24 de Setembro de 2021

sexta-feira, 17 de setembro de 2021

O Anjo, o Mármore, o Cinzel

 



 

“Eu vi o anjo no mármore e esculpi até que o libertei.”
Michelangelo

 

                                               Vá lá uma notícia boa, em meio a tanto choro e ranger de dentes ! Até o próximo dia 30 de setembro acontece em Crato o Festival Sérvulo Esmeraldo 91. Promovido pelo Instituto Sérvulo Esmeraldo,  o Festival, agora na sua segunda edição,  tem se tornado uma grande festa da Arte no Cariri, envolvendo oficinas, webinários, palestras e uma monumental exposição com réplicas  das esculturas públicas e urbanas de Sérvulo, exposta no Largo da RFFSA e que estampa o expressivo nome: “O Crato no Mundo”.

                                    O largo da antiga estação de trem de Crato, inaugurada em 1926, não se escolheu por mero acaso para a Exposição temporária das obras do nosso artista. Ali, em 1954, um rapazinho de vinte e sete anos, pegou os trilhos e ganhou o mundo. Fortaleza, São Paulo, Paris... E ele mesmo dizia, referindo-se à cidade que mais amou na vida: do Crato saí um artista formado, nas outras cidades apenas apurei a técnica e o conhecimento. Na verdade, andando por Seca & Meca, Sérvulo nunca, artisticamente, se afastou um milímetro sequer da sua cidade natal: as curvas da sua arte são as da Chapada do Araripe, o traço da sua pintura se arrasta, serra abaixo, como o rio Itaytera. De todos os nossos artistas plásticos, Sérvulo foi o mais cratense . Aqui ele fez a sua primeira exposição no início dos anos 50 e , no Crato, também, ele escolheu para fazer a última delas, seu canto dos cisnes, em 2016.  O pintor pernambucano Cícero Dias, que fez um percurso parecido ao de Sérvulo, radicando-se em Paris, tinha uma frase famosa que, inclusive, depois, lhe serviu de epitáfio: “Eu conheci o mundo, ele começava no Recife”. O nosso Sérvulo Esmeraldo poderia  utilizar a mesma frase, trocando apenas o nome da sua cidade querida: “Eu conheci o mundo, ele começava no Crato”.

                                    Artisticamente, o mais bairrista dos nossos artistas carregava consigo a grande hiperatividade dos grandes mestres. Começou como gravurista e pintor, fugindo aos poucos do figurativo. Enveredou pelos movimentos de vanguarda europeus, abraçando a Arte Cinética, os Excitáveis, e um  geometrismo próprio e pessoal.  Aos poucos, a escultura se foi tornando preponderante no seu caminho e, de volta ao Brasil, nos anos 80, desenvolveu aquilo que pode ser considerado o apogeu da sua obra: as monumentais esculturas públicas urbanas. Sérvulo fez de Fortaleza um museu vivo a céu aberto, com incontáveis esculturas vultosas espalhadas por toda a cidade. São obras de encher a vista e que, rapidamente, se foram tornando parte íntima da paisagem urbana, como a Femme Bateau, o Interceptor Oceânico, as folhas que se desfolham do Jornal o povo, a do Banco do Nordeste, a sucessão de losangos da UFCE, os cones cinéticos defronte à Catedral de Fortaleza.

                                    A paixão desenfreada pelo Crato, mantida quase como obsessão por  tantos e tantos anos, não lhe foi correspondida. Algumas obras doadas por ele como “A Semente” para a entrada da  Expocrato, as Pirâmides, no alto do Seminário, estão dilapidadas e em processo de recuperação. Aqui, também, ao contrário do que acontece no mundo, Sérvulo é um ilustre desconhecido. Se até os nossos artistas mais tradicionais não conseguem profetizar na sua terra, imaginem os percalços de um vanguardista que, fisicamente, teve que levantar voo do seu ninho há quase 70 anos !

                                    O Festival Sérvulo Esmeraldo traz o menino de volta à sua terra. Há pouco ele desembarcou de volta na estação. Como no retorno do filho pródigo, esse é o momento do reencontro , de colocar as notícias em dia, de beijar os amigos e familiares e, principalmente, de conhecer e abraçar as novas gerações que foram brotando durante a ausência. Nada está perdido, depois de um longo e tenebroso inverno. Desfaçamos as teias de aranha do tempo, passemos o espanador nos bolores do guarda-roupas. Vamos refazer o álbum de fotografias, retocar algumas fotos desgastadas pelo tempo. No meio da pedra bruta que se tornou nossa cidade há um anjo residindo lá dentro, Sérvulo volta com o seu cinzel para libertá-lo.

 

Crato, 17/09/2021

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Vida !

 


“E se me dessem - um dia - uma outra oportunidade,
eu nem olhava o relógio.
seguia sempre, sempre em frente.

E iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas.”
                                                                                       
Mário Quintana

 

 

                                    D. Celina Teles hoje completa cem anos. O centenário é o sonho de consumo de muitos nessa terra. Vislumbramos a longevidade ( no fundo quase com temperos de imortalidade) sempre com os olhos fitos nas nossas possibilidades e limitações atuais. Atingiríamos, assim, um século de existência lépidos e lúcidos com aquela vitalidade juvenil que explodia , como fogos de artifícios, na nossa adolescência. O tempo, claro, na sua inexorabilidade, cobra-nos a penosa conta por desafiá-lo e, tantas e tantas vezes, o que resta com o passar dos anos é um mero simulacro daquilo que um dia fomos.

                            Talvez o que importe mesmo seja tudo aquilo que desfrutamos no  convívio diário com nossos semelhantes. O amor que destilamos na primavera, o gozo que desfrutamos no verão, a paz que colhemos no outono. Quando o inverno chegar com seu gelo e suas trovoadas teremos tempo de colher, pacientemente, todas as boas lembranças que fomos semeando ao longo do caminho.

                            D. Celina faz cem anos ! Uma existência simples e radiante. Professora de primeiras letras formou muitas e muitas gerações de crianças a quem entregou, pacientemente, a chave do conhecimento e para quem ensinou como destravar as janelas do mundo. Casou com o amor de sua vida. Um homem compenetrado, sério, honesto, simples:  um artista na música, no desenho e, principalmente,  nas artes de viver, de conviver com seus semelhantes, de desfrutar todos os instantes apoteóticos da vida. Luiz Morais tinha uma inata visão holística do universo. Um homem que provou que era possível entrar no lamaçal da política sem sequer manchar o seu límpido e imaculado terno de linho. D. Celina trouxe o contraponto imprescindível ao equilíbrio do lar: a determinação, a rigidez nos momentos que se fazia necessária, a educação dos sete filhos que foram brotando ao longo da existência. Todos condimentados, dia a dia, com o tempero agridoce imprescindível na formação das almas e dos corações. E a força gravitacional de D. Celina estendeu-se aos netos , bisnetos e trinetos que se foram, geração após geração, se acercando da casa da matriarca da família, como viandantes sôfregos que buscam a sombra benfazeja da grande árvore acolhedora.

                            Hoje, cem anos passados, o tempo lhe proporcionou o maior dos prêmios. A possibilidade de contemplar os galhos incontáveis do seu caule de onde brotam:  a ramagem vultosa, as flores perfumadas e os frutos que pendem dos galhos e espalharam-se ribanceira abaixo, para o enlevo dos pássaros e para  novas e opimas messes.

                            Cem anos depois, a professora Celina Teles nos deixa a maior de todas suas lições. Sem alardes publicitários foi, durante toda sua trajetória, debulhando a casca dourada das horas e espalhando pelo caminho. Aparentemente inúteis essas cascas adornam ainda hoje o colo de incontáveis companheiros de viagem, como joias áureas, faiscantes e reluzentes !  Essa é a maior das lições de nossa mestra : Vida !

 

Crato, 10 de Setembro de 2021