sexta-feira, 27 de março de 2009

Gêmeos

Os gêmeos parecem estar definitivamente na mídia. Têm se tornado o assunto da atualidade. Primeiro os de Pernambuco , fruto do estupro de uma adolescente , que terminaram numa polêmica mundial depois da autorização de abortamento por parte da justiça brasileira e a interferência desastrada de D. José Cardoso , Arcebispo de Olinda e Recife. Recentemente outros gêmeos , igualmente, tomaram de assalto a imprensa mundial. Em São Paulo um casal de lésbicas pretende registrar gêmeos no nome das duas mães. Explique-se : Munira Khalil El Ourra não vai dar à luz mas é mãe de duas crianças que devem nascer até o início de maio próximo. As crianças se desenvolvem na barriga da sua parceira Adriana Tito Maciel, mas ela também é mãe. Como isso é possível ? Através de métodos de fertilidade in vitro foram retirados em laboratório óvulos de Munira, que foram fertilizados com sêmen recolhido em um Banco de Sêmen e, depois, implantados no útero de Adriana. A rigor, biologicamente, as duas são mães dos gêmeos. É amigos -- apertem aí os cintos ! -- a outra notícia de gemelaridade vem da Espanha. Esta talvez até mais estarrecedora. Trata-se de Ruben Noé de 25 anos. Ele é um transexual, nascido com o nome de Estefânia Corondonado. Noé ou Estefânia nasceu com órgãos masculinos e femininos e ainda os mantém como no nascimento. Criado em um orfanato, namora atualmente a espanhola Esperanza Ruiz. Noé resolveu engravidar e, como tem útero, o fez através de inseminação artificial e espera gêmeos para setembro. Pensa em se casar com Esperanza e registar os meninos no nome de ambos. Depois do parto pretende fazer a cirurgia para ablação definitiva dos seus órgãos femininos e usar hormônios masculinos para recuperar a antiga forma de varão. O caso de Noé assemelha-se ao do transexual americano Thomas Beatie que teve uma filha no ano passado e encontra-se novamente grávido.
Talvez estes gêmeos não se tornem tão famosos como alguns dos seus antecessores : Rômulo e Remo , Cosme e Damião, ou os mais recentes de Angelina Jolie e os de Fátima Bernardes. Mas existem alguns sinais que eles vêm anunciar um novo tempo. Primeiro acordamos para o fato da complexidade da família no mundo atual. Longe vai aquele tempo da célula familiar rígida e constituída por um pai, uma mãe e muitos filhos. Hoje a organização da família é muito mais complicada. Envolve filhos de diferentes casamentos, pais, padrastos, mães, madrastas, sogros e sogras vários, avós e avôs tortos e de linha direta, cunhados e cunhadas múltiplos. Não bastasse isso cada dia se torna mais freqüente o casamento ( ainda não legalizado , por enquanto) de pessoas do mesmo sexo, envolvendo filhos adotados ou, no caso de Noé-Esperanza e Munira-Adriana, filhos biológicos. E todos temos que nos preparar para essas mudanças inevitáveis. É preciso se despir dos antigos e arraigados preconceitos para não ser atropelados por eles. A sociedade precisa se adequar aos novos tempos , nas suas leis, nos seus códigos, nas suas ações cotidianas. Imaginem Munira e Adriana buscando registrar os filhos no nome de duas mães , será permitido? E se mais adiante, resolvem se separar, quem deterá a guarda dos filhos ? E se por acaso o dono do sêmen utilizado na fertilização resolver reivindicar o direito de pai, como se resolverá essa pendenga ? No caso de Noé, ele é mãe e pai do filho ao mesmo tempo, como será feito o registro dos seus gêmeos ?
Uma outra realidade bem clara nos bate à porta. O Século XX com um impulso fenomenal nos rumos do conhecimento humano e da Ciência tornou obsoletos todos os Códigos de Ética . Vivemos um vazio deontológico. Os Códigos da Bioética, do Bio-direito, da Moral e dos Costumes, os Códigos religiosos mais que quaisquer outros, não conseguem acompanhar a avassaladora realidade dos novos tempos. Descriminalização das Drogas, Fertilidade In Vitro, Clonagem, Transgênicos, Direitos de Minorias, Desospitalização dos pacientes psiquiátricos, Eutanásia, Aborto, Pesquisa –tratamento com Células Troco, Manipulação genética de embriões, Eugenia, controle de Armamento Nuclear, são apenas alguns pequenos desafios do último quartel de Século. Os desafios são tão grandes que ninguém se atém mais a questões que nos parecem menores. Quem , neste mundo de meu Deus, além do papa, proíbe o uso de camisinhas aos filhos? Quem, fora os Testemunhas de Jeová, se preocupa com as transfusões de sangue ? Quem ,além dos rabinos, discute a circuncisão no nascimento ou a ingesta de carne suina? Quem considera pecado, hoje, fora do dogmatismo da igreja, o uso da pílula ou da laqueadura de trompa ou da vasectomia ? Se repararmos bem, todos os códigos já não respondem a nossas questões básicas, se é que um dia já responderam. Hoje é impossível tentar encontrar em qualquer código uma resposta definitiva para os desafios da modernidade, como se se tratasse de uma receita de bolo.
Mais que nunca precisamos nos afastar do relativismo da ética e buscar uma visão mais universal e, antes de tudo, estabelecer um vai-e-vem reflexivo com toda a sociedade. Se eu me prendo ao meu relativismo sou obrigado a aceitar o relativismo do outro e o relativismo na ética é um pântano, entrando nele, nunca mais se consegue escapar da sua areia movediça. Claro que qualquer comunidade pode estabelecer suas regras de conduta internas, desde que em comum acordo com todos seus membros. Ninguém, no entanto, tem o direito sagrado de criticar regras estabelecidas por outros povos, usando critérios histórico-culturais diferentes. E, antes de tudo, ninguém tem o direito de interferir no estado, seja de que maneira for, no sentido de empurrar de goela abaixo seu código pessoal para outras pessoas que não fazem parte da mesma comunidade.
Talvez os gêmeos que ultimamente têm nos despertado para os terríveis desafios éticos dos novos tempos queiram nos dizer bem mais. A humanidade toda está grávida de uma nova verdade e esta prenhez, amigos, é gemelar, de quíntuplos, sêxtuplos, ou infinítoplos e os gêmeos, possivelmente, não são univitelinos. Os novos rebentos, as nova verdades, não serão únicas e indissolúveis e terão a carinha do pai : este tempo amorfo e eternamente mutável.

27/03/09

sexta-feira, 20 de março de 2009

Desmantelos

O que existe mais nesse mundão de meu Deus --- e o Brasil talvez mereça entrar no Guiness , neste item específico --- é cabra desmantelado. Nossa mitologia nordestina está eivada deles : Cancão de Fogo, Pedro Malasartes, João Grilo e até “Camões”, um sujeito da rede rasgada, como se diz por aqui, e que nada tem a ver com o nosso poeta clássico. No Crato tivemos um desses célebres traquinas : o Padre Verdeixas ( 1803-1872) , além de outros tantos como Zé de Matos, Zé Bedeu, Jotinha, Chico Soares, Melito, Luiz Sarmento , conhecidos sátiros e boêmios desta Vila de Frei Carlos. Foram eles que emprenharam de irreverência a história desta cidade e que terminaram por lhes insuflar vida. Como se repetindo o Gênesis , houvessem soprado cuidadosamente no primitivo boneco de barro que esta pequena cidade representava. Basta observar cuidadosamente a nossa língua caririense para perceber como temos expressões típicas para caracterizar este chamado “desmantelo” . Ele é da “ paia voou”, “ da rede rasgada” ; “é carga torta”, “ mais desmantelado do que vôo de anum”; “do que rastro de carroça”, “mais desmantelado do que galope de cururu”.
O desmantelamento caracterizado tão bem nessas expressões traz consigo várias possibilidades de interpretação. No geral são aplicadas àquelas pessoas que fogem das regras gerais pré-estabelecidas pela sociedade, pelo senso comum. No fundo, as tradicionais regras e etiquetas firmadas no nosso convívio criaram-se para padronizarem-se comportamentos e condutas. No fundo, pretendemos que todos ajam seguindo uma receita de bolo. Isso pode, aquilo não é permitido. Qualquer cristão que por acaso fuja a esta padronização corre o risco imediato de entrar na lista dos “desmantelados”. Nesta lista, geralmente, encontram-se as figuras mais interessantes e são justamente elas que conseguiram mudar os rumos do universo. O bando dá uma sensação de segurança, mas uma manada não pensa, apenas segue adiante, com toda a tropa , olhos no chão, sem prestar muita atenção na estrada e no destino. Para transformar o planeta precisa-se da contestação, daqueles que escaparam do bando perigosamente e, assim, conseguem ver múltiplos ângulos e facetas dos desafios que dia a dia nos batem à porta. Mário Benedetti , poeta uruguaio, definiu muito bem esta revolução em um de seus poemas : “ Só quando transgrido alguma ordem / o mundo se torna respirável”.
Os mais viajados devem lembrar-se de uma outra típica expressão caririense para o alegado desmantelo: “Mais desmantelado que o PTB de nova Olinda”. Ainda morando em Recife, mostrava-me curioso com a origem desta expressão. Sei perfeitamente que estes ditos vão entrando no cotiadiano do nosso linguajar, se vão tornando quase que automáticos e vão-se perdendo , na poeira do tempo, os rastros de sua origem. Um dia perguntei a Elói Teles, que fora filiado ao partido ainda nos idos dos anos 50, de onde diabos tinha surgido esta frase. Ele me elucidou através de uma história muito verossímil.
No início dos anos 60, o PTB estava em pleno topo, com João Goulart na presidência. O PTB de Crato havia agendado uma convenção do partido em Nova Olinda , no início de julho. Partiu de Crato a cúpula do partido encabeçada pelo saudoso Dr. Ferreira de Assis. Ao chegarem a Nova Olinda estranharam a calmaria na cidade: imaginavam uma recepção mais festiva com fogos e banda cabaçal. Dirigiram-se à sede do trabalhismo local e a encontraram de portas cerradas. Que poderia ter acontecido ? Resolveram , como derradeira opção, procurar a residência do presidente local do PTB. Em lá chegando, perguntaram pelo mais alto potentado do partido. A esposa informou que João tinha ido para a roça, não lembrara a convenção. Dr. Ferreira, então, solicitou-lhe a chave da sede e a pediu para ir até ao roçado avisar que a cúpula do PTB o estava esperando lá. Voltaram , então, à sede , na perspectiva de tentar organizar uma reunião com quórum mínimo , de última hora. Ao abrirem, no entanto, a sede , desvaneceram-se todas suas esperanças. João havia emprestado o pequeno auditório para uma quadrilha de São Pedro. O ambiente estava imundo, com uma quantidade imensa de bandeirolas cruzando diagonalmente a sala. Na parede, uma blasfêmia política : o venerado retrato de Getúlio Vargas encontrava-se de cabeça para baixo. João chegou depois de uma hora, totalmente embriagado e entrou com voz engrolada gritando :
--- Viva o papa Getúlio Varga !
A direção regional do PTB, cabisbaixa, deu meia volta e retornou caladinha danada, sem que ninguém na cidade percebesse o mico que haviam pago. Na estrada, por fim, longe dos olhos dos adversários, alguém comentou a frase que se perpetuaria na história do Cariri:
--- Mas menino ! Que bichim mais desmantelado esse PTB de Nova Olinda !
E eu vou terminando por aqui esta croniqueta de sábado que já vai ficando tão desmantelada quanto o partido da nossa vizinha cidade.

20/03/09

sexta-feira, 13 de março de 2009

Lampião em Matozinho

Os acontecimentos mais épicos da história de Matozinho dizem respeito à guerra instaurada quando da passagem do Bando de Lampião por ali no início de 1938. Nesta época a Vila ainda era um pequeno arruado em torno do Rio Paranaporã. A História Oficial de Matozinho, narrada de boca em boca, conta da resistência heróica do seu povo contra os cangaceiros do famigerado facínora, no que ficou conhecido como “Fogo do Sabugo”. Reza a história que a cabruera ia em direção à Bahia quando resolveu passar em Matozinho no sentido de conseguir víveres e , também, se reabastecer nos saques para enfrentar os sertões e os macacos. Ao passarem em Bertioga, no entanto, tamanha havia sido a baderna e a carnificina que um dos sobreviventes escapou. Chegando esbaforido e assustado à Matozinho, avisou do perigo iminente. Matozinho, então, se armou e entrincheirou esperando Lampião com unhas e dentes. Quando tiveram a vila cercada pelo bando, três dias depois, estavam preparados e resistiram bravamente por mais de uma semana. No final haviam sido abatidos mais de dez matozenses e Virgulino , botou o rabinho entre as pernas e fez bunda de ema depois de perder dois cangaceiros : “Suvela” e “Currupio”.
Uma comunidade não existe sem sua mitologia. É ela quem dá a cola necessária para manter a união da tribo, para lastrear seu passado. O “Fogo do Sabugo” fazia-se as Termópilas de Matozinho. Lembravam de seus heróis todos os dias: O Coronel Serapião Candeia que comandara a resistência - o Leônidas tupiniquim-- e “Zeca do Ané de Couro”, um feitor de sela e arreios que matara “Suvela” e “Currupio”, numa luta corpo a corpo, mas terminara morto por “Corisco”. Estes personagens , ícones de Matozinho, incensavam-se como deuses da braveza do seu povo. Contava-se ainda a versão que , depois daquela derrota frente aos matozenses, Lampião e o Bando saíram de crista baixa e, por isso mesmo, terminaram tendo a lamparina apagada, logo depois, em Angicos. A valentia de Matozinho contribuíra , assim, decisivamente, para o fim do ciclo do cangaço no Nordeste. Pouco importava que a história escrita simplesmente ignorasse aqueles feitos e nem sequer mencionasse os nomes de Suvela e Currupio, os mitos se movem e voam independentemente da nossa vontade, fazem parte de uma outra dimensão da nossa vida , a interface onírica.
Com o passar dos anos, os últimos remanescentes do “Fogo do Sabugo” foram pouco a pouco sendo dizimados por um outro cangaceiro bem mais impiedoso: o Coronel Tempo. À medida que as testemunhas oculares do episódio começaram a ser abatidos sistematicamente, a história , claro, tomou matizes novos e nuances mais heróicas e dramáticas se foram acrescentando. A ficção carece sempre se mostrar mais real que a própria realidade. Dias atrás, chegou a Matozinho a notícia mais palpitante dos últimos meses. Santino Parabelum, o último dos sobreviventes do cerco, iria visitar Matozinho. Desde o acontecido, nos idos de 1938, partira para São Paulo e lá se estabelecera e criara os filhos e netos. O velho provara ser um guerreiro: resistira ao outro cerco terrível , o de São Paulo e estava vivinho da silva e lúcido, trepado no alto dos seus 93 anos. A vila se engalanou para receber seu soldado de Pompéia. Quando a sopa parou na Praça da Matriz, Santino pulou de dentro lépido e esquipando. A Cabaçal de Mestre Ambrósio atacou um velho coco chamado de “embuá”. Mais de três dúzias de fogos riscaram os céus. A festa se estendeu por mais de cinco dias e “Parabelum” agüentou firme este outro cerco, já tantos anos depois.
Passados os dias, Matozinho começou a querer reabastecer seu caldeirão de mitos e procurou Santino , pedindo mais detalhes sobre a época histórica do “Fogo do Sabugo”. O velho pareceu não entender o assunto e pediu que lhe traduzissem melhor. O Prefeito Sindé Bandeira o lembrou : queriam saber mais da guerra de 38, quando Matozinho enfrentou Lampião e seus cabras e os tangeu para Angicos. Parabelum, então, trouxe uma versão bem menos heróica. O Bando nem sequer tinha chegado à vila. O único contato do Capitão e seus comparsas , havia sido com dois habitantes dali e nem um tiro se disparara: Serapião Candeia e Zeca do Ané de Couro. Santino, então, trocou o “Fogo” em miúdos:
O Cel Serapião estava na sua fazenda, no fim do dia, junto com muitos moradores. Já soubera do zum-zum-zum : a possível passagem dos facínoras por ali. Lampião os viu de longe e deixou o bando todo escondido. Veio só, devagarzinho, disfarçado. Quando chegou defronte da casa, como uma pessoa comum, deu com Serapião cagando uma goma danada:
--- Se esse Virgulino cair na besteira de vir aqui por Matozinho, minha gente, vou dar tanto sabacu nele, que o homem vai chegar na Bahia sem lamparina, sem pavio e sem querosene.
Neste momento, virou-se e deu com a figura estranha, montada no cavalo e perguntou, com cara feia:
--- Quem é o Senhor? Se apresente, cabra, se num quer apanhar.
Nisto viu a tropa de cangaceiros chegar junto do Capitão e ele responder:
--- Sou Lampião, cabra. E você quem diabo é ?
Serapião molhou as calças imediatamente e respondeu com voz trêmula e gaguejante:
---- Eu sou... eu sou... o finado Serapião...
Já Zeca do Ané de Couro, continuou Santino, para uma platéia pasma , encontrava-se sentado na frente de sua casa costurando um gibão e nem percebeu a chegada do bando de cangaceiros, com o Capitão à frente. Só asuntou quando sentiu uma dor terrível no pé direito. O cavalão de Virgulino esbarrara à sua frente e pisara justamente em cima do seu pé. Instintivamente, com a dor, Zeca levantou a cabeça e foi soltando o palavrão:
---- Filho da pu...
Só não completou o impropério porque deu com a cara de Lampião que o fitava com aquela cara de quem amola a faca antes da capação. Santino então completou:
---- Filho da pu...: puxa, Capitão, seja bem vindo a Matozinho! Capitãozinho, o senhor podia me fazer um favor? Será que o senhor poderia pedir ao seu cavalinho para tirar o pezinho dele de cima da minha pata ?
Depois do relato de Santino, a vila começou a se penalizar , estranhamente com ele:
--- Meu Deus, vejam como é a vida ! Um homem valente daqueles e , de repente, pegou a dizer arizia, ficou gagá, gagá !

13/03/09

sábado, 7 de março de 2009

Gesta

Era uma terra diferente, de hábitos e costumes excêntricos. Desde tempos imemoriais alguns homens olhavam exclusivamente para o chão e outros tinham, eternamente, os olhos fixos no firmamento. Talvez, por isto mesmo, os telúricos e os celestes, naquele país, se compreendessem tão mal. Aqueles viviam absortos demais com as pendências terrestres e os celestes, fixos no céu , sonhando com outros mundos e outras galáxias, não tinham tempo suficiente para cuidar das questões mais concretas e mais rasteiras. Os corpos se tocavam, utilizando uma linguagem Braille, mas as almas, sobrevoando planetas tão díspares, jamais se encontravam. O convívio dos seres telúricos e celestes previa-se conflituoso. Em verdade como que se mostravam habitantes de dois planetas distintos.O estado guerra era inevitável. Mais afeitos à vida concreta , com os pés fincados no chão, os telúricos tomaram conta do país. Ocuparam todos os espaços possíveis e até inimagináveis, usufruíam das benesses do solo e viviam zombando dos seres celestes: de olhos distantes, sonhando com estrelas inalcançáveis. Com o tempo, os celestes se organizaram , buscando lutar por uma nesga da terra tomada pelos telúricos . Para tanto começaram a usar espelhos , em feitio de retrovisores, buscando obter uma visão limitada do chão. Forçaram tanto os pescoços que um dia passaram a ter a visão da terra que lhes faltava e, assim, empreenderam uma luta titânica em busca do tempo perdido. Passaram a ocupar lotes e mais lotes, vilas, campos e montanhas. Só um dia perceberam, depois de muitos anos e muitas batalhas vencidas, que haviam perdido a visão privilegiada do céu e que já não podiam contemplar os astros , o relâmpago, a lua e as estrelas riscantes . Haviam perdido o bem maior dos celestes: a capacidade de voar nas asas do sonho.
Engraçado é que mesmo com esta mudança de hábito dos celestes, os conflitos com os telúricos não diminuíram . As almas não comungaram no mesmo altar. É que agora eles todos eram parecidos demais: olhos fitos no chão, os mesmos rasteiros objetivos a alcançar. Diz a lenda que ,numa manhã azul, um meteoro gigante caiu no país, dizimando toda a população, sem que ninguém ao menos, hipnotizado pelo chão, tenha percebido a catástrofe previsível.
Veio-me à mente esta parábola no Dia Internacional da Mulher. Como o menino que deixa o pastel para degustar por último na festinha de aniversário, assim o fez o criador.Depois de tantos e tantos borrões, debuxou sua obra prima. Deu-lhe asas e a fez celeste, abriu-lhe todas as comportas da sensibilidade para que pudesse ler todos os mistérios da criação no mais minúsculo dicionário das coisas pequeninas e mais simples. Dotou-a ainda da capacidade única de gestar, de continuar toda a obra do gênesis, dia após dia.Desconfio que foi a mulher e não o homem que o Criador fez à sua imagem e semelhança. Esta sensibilidade à flor da pele permitiu à mulher direcionar todos os rumos da humanidade, sem que aparecesse nos livros de história, trabalhando na coxia, nos bastidores, penetrando, sorrateiramente, nas clareiras mais inacessíveis do espírito humano.Não traçaram a história do mundo os grandes guerreiros, os estadistas habilidosos. Há uma pena mágica e matriarcal que escreveu cada página da história, sem que ninguém sequer se apercebesse.É que a mulher tem o segredo do cofre do coração onde ficam depositados as grandes aspirações , as tempestuosas pulsões e os espinhos do desejo.
Um dia a mulher , senhora dos céus, inebriou-se com a beleza concreta e fugaz da terra.Como os outros seres celestes, vendo os homens proprietários de tantos castelos de areia, quis , também, construir os seus. Imaginou que possuía o sagrado direito de trilhar o mesmo caminho do homem, enganosamente atapetado de flores. Sequer perguntou aonde aquele caminho ia dar, se findava em luz ou treva. Assoberbada pelas tarefas domésticas, pela agora irregular criação dos filhos, buscou a dignidade de um trabalho que ajudasse no sustento da casa e que não a deixasse na rua da amargura se o casamento um dia arrefecesse. Caiu no redemoinho do mercado de trabalho e hoje já não acompanha o crescimento dos rebentos e, como todos os telúricos, tornou a mágica experiência da vida uma mera planilha contábil, uma tabela de Deve-Haver. Pés fincados no solo, afasta-se de relacionamentos mais duradouros, como o cão da cruz . Já não olha para o firmamento, pois o arco-iris dos telúricos brilha como um mero Código de Barras. Junta sua ilha de solidão ao arquipélago de todas as solidões. O caminho incerto é palmilhado , seguindo os passos dos homens, aportando de quando em vez na ilha do enfarte, na montanha da ansiedade, no abismo da depressão: únicos pontos turísticos desta viagem do não sei-de-onde para não-sei-prá-onde.
Perdoe-me, a mulher, estas elocubrações numa data tão festiva.Não pretendo turvar de pessimismo as comemorações deste dia , com aquilo que pode parecer um machismo disfarçado. O homem ,com o corpo lambuzado de chão, já não tem futuro. Vocês representam o ponto ômega da criação, são mais verdadeiras, mais destemidas. A sensibilidade de todas vocês mostra-se como a única esperança deste mundo, a possibilidade derradeira de refazer o gênesis separando a luz , da treva , a vida do caos.Fitem o céu ! O Dia de vocês é também o dia de todo o planeta.

08/03/09

sexta-feira, 6 de março de 2009

Drogas fumadas e vividas



“Droga é o que se vive e não o que se fuma”
( De um Grafitti em um muro de Sobral)

Mês passado o ministro da Saúde José Gomes Temporão teve a coragem de pôr em pauta um assunto polêmico que periodicamente assalta os salões midiáticos: A Descriminalização das Drogas no Brasil. A questão atinente à dependência química recurrentemente nos bate à porta : ela é um problemática mundial que se tem avolumado ano após ano e, até o momento, não se tem um caminho claro para contornar este obstáculo. Talvez, por isso mesmo, neguim apresenta em toda rodinha de bar uma solução fantástica e infalível : “ se eu fosse o Presidente da República, já tinha resolvido esse problema, eu fazia assim e assado e num instante não tinha mais drogado no país”. Claro que abordagens tão superficiais servem para aquecer o papo entre uma cerveja e outra , mas estão longe de acrescentarem muito numa discussão tão complexa. Como hoje é sábado, dia de se colocar conversa prá fora, lá vou eu novamente pôr um pouco da minha farinha neste pirão.
É preciso antes de tudo se entender que o contato do homem com as drogas data de eras imemoriais. O Rig Veda, livro sagrado dos Hindus, faz relato do uso da maconha já 1000 anos antes de Cristo. Devem ter começado com rituais ainda nas cavernas. Assim há que se entender que é praticamente uma utopia imaginar que um dia acabaremos no planeta com esta relação tão antiga e tão íntima. Do ponto de vista econômico, por outro lado, a batalha é hercúlea : as drogas, mundialmente, são a terceira maior fonte de renda ilegal ( perdem apenas para venda de armas e a pirataria). A ONU avalia que as drogas movimentam , na terra, 400 bilhões de dólares por ano e, pasmem, tem cerca de 200 milhões de consumidores e 2,5 milhões de dependentes. No Brasil se calcula que só a Favela da Rocinha no Rio de Janeiro movimenta com drogas em torno de R$ 30 milhões todo santo mês. E existe, hoje, uma certeza absoluta em todos os países: a repressão simples e pura que se vem fazendo , ao tráfico,a tantos e tantos anos, tem sido totalmente inócua, quando não incentivadora mais e mais desta atividade. Entre 1990 e 1994 os EUA gastaram mais de U$ 4 bilhões na repressão interna e externa ao tráfico e o resultado foi hilário. Em 1990 estimou-se que foram traficadas para os Estados Unidos 400 toneladas de Cocaína e, em 1994, após todo o árduo trabalho repressivo, calculou-se o tráfico em 700 toneladas. Em 10 anos os EUA torraram mais de 100 bilhões de dólares na repressão às drogas.
Reflitamos um pouco sobre a questão. A primeira pergunta básica, talvez seja : por que os homens precisam das drogas e por que elas aumentaram tanto em todo mundo depois dos anos 60 ? Reparem bem, tornamos o mundo chato demais, nos últimos tempos. Desencadeamos uma competição desenfreada, uma espécie de Maratona para o Abismo. Os humanos já não são indivíduos, mas soldados : “Ao Vencedor as Batatas” . De tanto trabalhar para sobreviver, falta-nos tempo para viver. Em tempos passados, buscávamos, em meio à finitude temida, uma experiência de transcendência com as drogas. Já hoje, não dá para agüentar a existência sem anestesia: ou álcool, ou fumo, ou cola, ou lexotan, ou cocaína, ou maconha ou seitas religiosas. Como pregava Maiakóvsky : ou morre-se de ópio ou de tédio. Assim, antes de pensar em suspender a anestesia do paciente que sofre, devemos procurar descobrir a patologia que lhe causa o sofrimento e tratar. Ninguém tem o direito de arrancar a lata de cola do menino de rua que a usa para passar a fome e o frio, se não temos um mundo melhor e mais justo para lhe pôr nas mãos, no lugar da latinha. A segunda questão que precisa ser lembrada é que a droga se tem a porta do inferno aberta para todos que a consomem, para se chegar nele, antes se passa pelo paraíso. Ela tem junto de si essa perfeita duplicidade e não adianta pregar apenas o seu lado perverso para os usuários. Vamos passar todos por retrógrados e caretas. Um outro ponto importante: o fumo e o álcool são também drogas perigosas e lícitas. O fumo mata setenta e cinco vezes mais do que qualquer outra droga e o álcool vinte e cinco. Não é só a overdose de cocaína ou heroína que mata, embora ela tenha muito mais espaço no noticiário. O traficante da favela , sabe-se, é um bandido perigosíssimo, mas ele só existe porque do outro lado da cidade, encontra o bacana que paga fortunas pela droga ilícita.
O mundo todo tem visões diversas no que tange à legalidade do consumo. Alguns tipos, como a maconha, são legalizadas na Holanda, na Suécia, na Suíça, na Espanha e em 11 Estados dos EUA. A Turquia pune com prisão perpétua e pena de morte. No Brasil o consumidor é apenado de 6 meses a 1 ano de prisão e o traficante de 3 a 15 anos. A lei brasileira é muito rigorosa, por diversas razões. Primeiro o consumidor é visto como um criminoso e não como um doente que necessita de tratamento. Depois, todas as drogas são colocadas em um mesmo patamar de risco, o que é um verdadeiro absurdo. Tanto faz o tráfico de “Lança Perfume” ou o de Cocaína, a penalidade é a mesma. Isso leva a que o tráfico, extremamente organizado, opte por traficar drogas mais pesadas e mais rentáveis.
Pois bem, tenho uma opinião bem formada sobre a questão. Valho-me do utilitarista Stuart-Mill(1806-1873) que rezava só existir uma razão para o estado criar uma lei: a de evitar que uma pessoa prejudicasse terceiros. Assim sou a favor da total autonomia do homem. Qualquer um tem o sagrado direito de fazer o que quiser da sua vida, até mesmo tirá-la, segundo seus individuais princípios e valores. O estado não tem nada a ver com isso e só poderia intervir para evitar prejuízos de terceiros. Assim, penso, que ninguém pode ser tolhido na usa liberdade individual: se quiser usar qualquer tipo de droga, lhe é um direito inalienável. Para mim, a ação do estado está restrita a tratar e ajudar a todos aqueles que queiram sair do vicío ( aí , sim, a droga passa ser uma problemática social) e a educar toda a população mostrando os riscos e os malefícios da toxicomania. Resta , talvez, ainda, a mais grave das questões: a droga na infância e adolescência. Aí, sim, a venda tem que ser encarada como tráfico e a repressão precisa ser utilizada de forma ampla e concentrada, além de extensos projetos educativos de prevenção. Imagino que assim teríamos muito mais condições de fixar as ações do estado em educação e saúde , melhorando a prevenção e o tratamento com centros especializados e, antes de tudo, minorando uma dos fatores mais alimentadores do tráfico: as desigualdades sociais.
E antes de tudo , precisamos lutar conjuntamente por um mundo melhor e mais respirável, para que a verdadeira droga a ser combatida seja a que se vive e não aquela que se fuma.

05/03/09

quarta-feira, 4 de março de 2009

Passarim

Não carecia ciência de ornitólogo, quem dele se aproximasse perceberia imediatamente: não se tratava de um pássaro qualquer.Pequenino e sorrateiramente fosco, suas penas não se tingiam com o multicolorido dos sofreus, o bico minguado perdia facilmente, na força e na agudeza, para o da graúna, a cabeça não carregava cocares de galo campina e as asas, enganosamente, não tinham lá grande envergadura.Até uma das expressivas pupilas da ave parecia embaçada e imóvel e uma das patas( atingida por um dos bodoques do destino) já não conseguia agarrar o galho em feitio de visgo. Um pássaro não se faz de penas,de bicos, de asas e de cores ? O que havia de especial naquele ?Ah aquele pássaro era definitivamente único ! Não bastasse o canto mavioso que ecoava de dentro daquele peito frágil : Um canto que despertava a caatinga e fazia eclodir as flores do bugari! Um canto que, nascido em meio à fragilidade e à leveza , se amplificava , estranhamente, nos corações e mentes de todos aqueles a quem tocava ! Não bastasse tudo isso, aquele canto tinha o mágico poder de destruir as talas de todas as gaiolas do mundo.Quem o seu trinado tocasse, como num estralo de hipnotizador, despertaria para as injustiças e desigualdades da selva. Era como se musicalmente ensinasse : não importam as dimensões das asas, mas, sim, a ânsia de voar e que todos têm o direito divino de sorver das belezas da caatinga e do pomar; das lições da fome e da barriga cheia.
Era assim aquele pássaro. Os meninos logo aprenderam chamá-lo de Passarim .Nunca cobrou cachê quando seu canto embalava o mundo.Talvez , na sua profunda simplicidade, sentisse que o canto, em verdade, não lhe pertencia. A ave fazia-se, apenas, mero instrumento: quem dedilhava aquelas cordas e arrancava a música etérea eram as mãos de Deus.Possivelmente por isso mesmo, aos poucos, foi percebendo que sua música refletia-se nas serras, nas árvores, nos barrancos e escorria entre as águas dos rios e o fragor das cascatas : era já como se toda natureza cantasse!E já não se fazia necessários novos gorjeios, o mundo todo embebia-se de sua música que, como um eco, percorria campos e cidades.
Percebeu-se então, no enebriamento musical , que o mundo todo era sim uma grande gaiola e que o trinado do pássaro teve a força de destruir uma por uma as tariscas da imensa prisão. Já se podia ver a redoma do firmamento sem os limites das talas. O pássaro deu-se por satisfeito e voou em procura do infinito: morada de todos os pássaros e descanso de todos os poetas.O mundo nunca mais foi o mesmo depois que abriu os ouvidos e o coração para que por eles entrassem o doce , forte e libertador canto do PATATIVA.

04/03/09