sexta-feira, 20 de março de 2009

Desmantelos

O que existe mais nesse mundão de meu Deus --- e o Brasil talvez mereça entrar no Guiness , neste item específico --- é cabra desmantelado. Nossa mitologia nordestina está eivada deles : Cancão de Fogo, Pedro Malasartes, João Grilo e até “Camões”, um sujeito da rede rasgada, como se diz por aqui, e que nada tem a ver com o nosso poeta clássico. No Crato tivemos um desses célebres traquinas : o Padre Verdeixas ( 1803-1872) , além de outros tantos como Zé de Matos, Zé Bedeu, Jotinha, Chico Soares, Melito, Luiz Sarmento , conhecidos sátiros e boêmios desta Vila de Frei Carlos. Foram eles que emprenharam de irreverência a história desta cidade e que terminaram por lhes insuflar vida. Como se repetindo o Gênesis , houvessem soprado cuidadosamente no primitivo boneco de barro que esta pequena cidade representava. Basta observar cuidadosamente a nossa língua caririense para perceber como temos expressões típicas para caracterizar este chamado “desmantelo” . Ele é da “ paia voou”, “ da rede rasgada” ; “é carga torta”, “ mais desmantelado do que vôo de anum”; “do que rastro de carroça”, “mais desmantelado do que galope de cururu”.
O desmantelamento caracterizado tão bem nessas expressões traz consigo várias possibilidades de interpretação. No geral são aplicadas àquelas pessoas que fogem das regras gerais pré-estabelecidas pela sociedade, pelo senso comum. No fundo, as tradicionais regras e etiquetas firmadas no nosso convívio criaram-se para padronizarem-se comportamentos e condutas. No fundo, pretendemos que todos ajam seguindo uma receita de bolo. Isso pode, aquilo não é permitido. Qualquer cristão que por acaso fuja a esta padronização corre o risco imediato de entrar na lista dos “desmantelados”. Nesta lista, geralmente, encontram-se as figuras mais interessantes e são justamente elas que conseguiram mudar os rumos do universo. O bando dá uma sensação de segurança, mas uma manada não pensa, apenas segue adiante, com toda a tropa , olhos no chão, sem prestar muita atenção na estrada e no destino. Para transformar o planeta precisa-se da contestação, daqueles que escaparam do bando perigosamente e, assim, conseguem ver múltiplos ângulos e facetas dos desafios que dia a dia nos batem à porta. Mário Benedetti , poeta uruguaio, definiu muito bem esta revolução em um de seus poemas : “ Só quando transgrido alguma ordem / o mundo se torna respirável”.
Os mais viajados devem lembrar-se de uma outra típica expressão caririense para o alegado desmantelo: “Mais desmantelado que o PTB de nova Olinda”. Ainda morando em Recife, mostrava-me curioso com a origem desta expressão. Sei perfeitamente que estes ditos vão entrando no cotiadiano do nosso linguajar, se vão tornando quase que automáticos e vão-se perdendo , na poeira do tempo, os rastros de sua origem. Um dia perguntei a Elói Teles, que fora filiado ao partido ainda nos idos dos anos 50, de onde diabos tinha surgido esta frase. Ele me elucidou através de uma história muito verossímil.
No início dos anos 60, o PTB estava em pleno topo, com João Goulart na presidência. O PTB de Crato havia agendado uma convenção do partido em Nova Olinda , no início de julho. Partiu de Crato a cúpula do partido encabeçada pelo saudoso Dr. Ferreira de Assis. Ao chegarem a Nova Olinda estranharam a calmaria na cidade: imaginavam uma recepção mais festiva com fogos e banda cabaçal. Dirigiram-se à sede do trabalhismo local e a encontraram de portas cerradas. Que poderia ter acontecido ? Resolveram , como derradeira opção, procurar a residência do presidente local do PTB. Em lá chegando, perguntaram pelo mais alto potentado do partido. A esposa informou que João tinha ido para a roça, não lembrara a convenção. Dr. Ferreira, então, solicitou-lhe a chave da sede e a pediu para ir até ao roçado avisar que a cúpula do PTB o estava esperando lá. Voltaram , então, à sede , na perspectiva de tentar organizar uma reunião com quórum mínimo , de última hora. Ao abrirem, no entanto, a sede , desvaneceram-se todas suas esperanças. João havia emprestado o pequeno auditório para uma quadrilha de São Pedro. O ambiente estava imundo, com uma quantidade imensa de bandeirolas cruzando diagonalmente a sala. Na parede, uma blasfêmia política : o venerado retrato de Getúlio Vargas encontrava-se de cabeça para baixo. João chegou depois de uma hora, totalmente embriagado e entrou com voz engrolada gritando :
--- Viva o papa Getúlio Varga !
A direção regional do PTB, cabisbaixa, deu meia volta e retornou caladinha danada, sem que ninguém na cidade percebesse o mico que haviam pago. Na estrada, por fim, longe dos olhos dos adversários, alguém comentou a frase que se perpetuaria na história do Cariri:
--- Mas menino ! Que bichim mais desmantelado esse PTB de Nova Olinda !
E eu vou terminando por aqui esta croniqueta de sábado que já vai ficando tão desmantelada quanto o partido da nossa vizinha cidade.

20/03/09

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