sexta-feira, 13 de março de 2009

Lampião em Matozinho

Os acontecimentos mais épicos da história de Matozinho dizem respeito à guerra instaurada quando da passagem do Bando de Lampião por ali no início de 1938. Nesta época a Vila ainda era um pequeno arruado em torno do Rio Paranaporã. A História Oficial de Matozinho, narrada de boca em boca, conta da resistência heróica do seu povo contra os cangaceiros do famigerado facínora, no que ficou conhecido como “Fogo do Sabugo”. Reza a história que a cabruera ia em direção à Bahia quando resolveu passar em Matozinho no sentido de conseguir víveres e , também, se reabastecer nos saques para enfrentar os sertões e os macacos. Ao passarem em Bertioga, no entanto, tamanha havia sido a baderna e a carnificina que um dos sobreviventes escapou. Chegando esbaforido e assustado à Matozinho, avisou do perigo iminente. Matozinho, então, se armou e entrincheirou esperando Lampião com unhas e dentes. Quando tiveram a vila cercada pelo bando, três dias depois, estavam preparados e resistiram bravamente por mais de uma semana. No final haviam sido abatidos mais de dez matozenses e Virgulino , botou o rabinho entre as pernas e fez bunda de ema depois de perder dois cangaceiros : “Suvela” e “Currupio”.
Uma comunidade não existe sem sua mitologia. É ela quem dá a cola necessária para manter a união da tribo, para lastrear seu passado. O “Fogo do Sabugo” fazia-se as Termópilas de Matozinho. Lembravam de seus heróis todos os dias: O Coronel Serapião Candeia que comandara a resistência - o Leônidas tupiniquim-- e “Zeca do Ané de Couro”, um feitor de sela e arreios que matara “Suvela” e “Currupio”, numa luta corpo a corpo, mas terminara morto por “Corisco”. Estes personagens , ícones de Matozinho, incensavam-se como deuses da braveza do seu povo. Contava-se ainda a versão que , depois daquela derrota frente aos matozenses, Lampião e o Bando saíram de crista baixa e, por isso mesmo, terminaram tendo a lamparina apagada, logo depois, em Angicos. A valentia de Matozinho contribuíra , assim, decisivamente, para o fim do ciclo do cangaço no Nordeste. Pouco importava que a história escrita simplesmente ignorasse aqueles feitos e nem sequer mencionasse os nomes de Suvela e Currupio, os mitos se movem e voam independentemente da nossa vontade, fazem parte de uma outra dimensão da nossa vida , a interface onírica.
Com o passar dos anos, os últimos remanescentes do “Fogo do Sabugo” foram pouco a pouco sendo dizimados por um outro cangaceiro bem mais impiedoso: o Coronel Tempo. À medida que as testemunhas oculares do episódio começaram a ser abatidos sistematicamente, a história , claro, tomou matizes novos e nuances mais heróicas e dramáticas se foram acrescentando. A ficção carece sempre se mostrar mais real que a própria realidade. Dias atrás, chegou a Matozinho a notícia mais palpitante dos últimos meses. Santino Parabelum, o último dos sobreviventes do cerco, iria visitar Matozinho. Desde o acontecido, nos idos de 1938, partira para São Paulo e lá se estabelecera e criara os filhos e netos. O velho provara ser um guerreiro: resistira ao outro cerco terrível , o de São Paulo e estava vivinho da silva e lúcido, trepado no alto dos seus 93 anos. A vila se engalanou para receber seu soldado de Pompéia. Quando a sopa parou na Praça da Matriz, Santino pulou de dentro lépido e esquipando. A Cabaçal de Mestre Ambrósio atacou um velho coco chamado de “embuá”. Mais de três dúzias de fogos riscaram os céus. A festa se estendeu por mais de cinco dias e “Parabelum” agüentou firme este outro cerco, já tantos anos depois.
Passados os dias, Matozinho começou a querer reabastecer seu caldeirão de mitos e procurou Santino , pedindo mais detalhes sobre a época histórica do “Fogo do Sabugo”. O velho pareceu não entender o assunto e pediu que lhe traduzissem melhor. O Prefeito Sindé Bandeira o lembrou : queriam saber mais da guerra de 38, quando Matozinho enfrentou Lampião e seus cabras e os tangeu para Angicos. Parabelum, então, trouxe uma versão bem menos heróica. O Bando nem sequer tinha chegado à vila. O único contato do Capitão e seus comparsas , havia sido com dois habitantes dali e nem um tiro se disparara: Serapião Candeia e Zeca do Ané de Couro. Santino, então, trocou o “Fogo” em miúdos:
O Cel Serapião estava na sua fazenda, no fim do dia, junto com muitos moradores. Já soubera do zum-zum-zum : a possível passagem dos facínoras por ali. Lampião os viu de longe e deixou o bando todo escondido. Veio só, devagarzinho, disfarçado. Quando chegou defronte da casa, como uma pessoa comum, deu com Serapião cagando uma goma danada:
--- Se esse Virgulino cair na besteira de vir aqui por Matozinho, minha gente, vou dar tanto sabacu nele, que o homem vai chegar na Bahia sem lamparina, sem pavio e sem querosene.
Neste momento, virou-se e deu com a figura estranha, montada no cavalo e perguntou, com cara feia:
--- Quem é o Senhor? Se apresente, cabra, se num quer apanhar.
Nisto viu a tropa de cangaceiros chegar junto do Capitão e ele responder:
--- Sou Lampião, cabra. E você quem diabo é ?
Serapião molhou as calças imediatamente e respondeu com voz trêmula e gaguejante:
---- Eu sou... eu sou... o finado Serapião...
Já Zeca do Ané de Couro, continuou Santino, para uma platéia pasma , encontrava-se sentado na frente de sua casa costurando um gibão e nem percebeu a chegada do bando de cangaceiros, com o Capitão à frente. Só asuntou quando sentiu uma dor terrível no pé direito. O cavalão de Virgulino esbarrara à sua frente e pisara justamente em cima do seu pé. Instintivamente, com a dor, Zeca levantou a cabeça e foi soltando o palavrão:
---- Filho da pu...
Só não completou o impropério porque deu com a cara de Lampião que o fitava com aquela cara de quem amola a faca antes da capação. Santino então completou:
---- Filho da pu...: puxa, Capitão, seja bem vindo a Matozinho! Capitãozinho, o senhor podia me fazer um favor? Será que o senhor poderia pedir ao seu cavalinho para tirar o pezinho dele de cima da minha pata ?
Depois do relato de Santino, a vila começou a se penalizar , estranhamente com ele:
--- Meu Deus, vejam como é a vida ! Um homem valente daqueles e , de repente, pegou a dizer arizia, ficou gagá, gagá !

13/03/09

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