quinta-feira, 25 de junho de 2009

Onça Maracajá

Foi pego de surpresa, no contrapé. Paulino nunca imaginou. Voltando da selva inóspita da rua, chegara a casa incólume desta vez. Escapara do trânsito caótico, do tombadinha, do descuidista, das armadilhas espalhadas no escritório pelos colegas de trabalho, da facada inevitável do guarda de trânsito. Mal abriu a porta do lar-doce-lar, a onça maracajá , de bote pronto, o atacou. O ataque feroz prescindiu de script, de legenda. Só depois de muita tapa no terreiro dos olhos, de muita unhada e mordida, de muito: “o que é diabo é isso, meu amor”; “tá doida, enlouqueceu?” , é que conseguiu alguma vaga explicação. A mulher, travestida de puma, na ponta dos cascos, arrepiada como se incorporasse uma entidade maligna, lhe apontava uma plaquinha, erguida entre os dedos da mão direita, como se lhe lascasse um cartão vermelho. Sem parar de bater, se debatendo como menino frente a agulha de injeção, aos gritos, interrogava:
--- Seu nojento, seu traidor, diga logo quem é a sirigaita, o que é que isso significa, o que é , hein ? Pensa que eu sou besta? Tenho cara de abestada?
Só com dificuldade , ante tanto pinote e saracoteio, conseguiu distinguir um envelope de “camisinha” , na mão da esposa. Meio contrafeito, como menino flagrado roubando bom-bom, resolveu partir para o ataque.
--- Você surtou, Gesivalda ? Pirou de vez? Bem que eu desconfiava que isso um dia ia acontecer: você num pára de ouvir música sertaneja! E eu lá sei donde diabos você tirou isso! Eu é que pergunto: que gracinha é essa? Tá de namoradinho novo, é ? Anda me chifrando por aí, enquanto tou me matando no escritório?
Ante o contra ataque inesperado, as forças da esposa redobraram e o arranca-rabo tomou proporções inesperadas:
--- O quê, seu filho da puta? Lave essa língua antes de falar comigo, seu nojento! Bem que você merecia era ponta mesmo prá tomar jeito de gente, seu corno! Como você explica essa “camisinha” aqui que nossa empregada , a Gumercinda, encontrou no seu bolso e jogou com uns papéis em cima da nossa cama, hein? Ela mandou a calça prá lavadeira, mas quem devia ter ido era você, lavar esses “pussuídos” cheio de doença do mundo, na lavagem a seco!
Paulino sequer teve tempo de armar alguma defesa de última hora: Gesivalda , antes de qualquer julgamento, já lhe foi aplicando a pena e ele sabia que aquilo era apenas o início. A partir dali : tome cara feia, tome greve , podia preparar uns dez litros de saliva para contornar superficialmente o problema. Prestes a entrar de férias, percebeu que estava perdido: o raro descanso anual tinha ido prá cucuia, não fosse um fato totalmente inesperado. No meio da confusão, entra na sala o filho adolescente do casal, Daniel e toma a imediata defesa do pai. Meninão criado com pizza , sanduba e fermento , tornara-se um varapau e matou a charada num instante:
--- Mamãe, pare de acusar o pai! A senhora não tem razão! Ontem eu usei a calça dele para ir àquele som na casa de Nicolau e , claro, levei uma “camisinha” para qualquer urgência. Essa aí é minha, sua engraçadinha, e eu quero de volta imediatamente !



Paulino respirou aliviado , fechou o cenho, partiu para o quarto e não quis mais conversa. Indignou-se com tanta injustiça. Arrumou-se e saiu. Aproveitou a oportunidade para uma farrinha com os amigos, em represária às acusações infundadas. Gesivalda, com consciência pesada, ficou tristonha pelos cantos, arrependida do papelão. Não se perdoava. Devia ter investigado mais, estava casada há mais de vinte anos e não tinha tanto o que reclamar. Viveram outras crises previsíveis, mas nada que saculejasse demais o relacionamento. Tinham dois filhos, o Daniel de quinze anos e a Amanda de treze. O casamento, ultimamente, andava meio arrefecido, como todo que se encaminhasse para as bodas de prata. Ela chegara nas margens terríveis da menopausa e isso lhe trouxera alguma insegurança, desconfiança a mais e talvez aquilo explicasse um pouco aquele destempero . Resolveu dar o braço a torcer e , no outro dia, pediu desculpas ao marido. Paulino , ainda chateado, perdoou a mulher com alguma frieza, percebia que o ocorrido lhe contabilizava alguns álibis futuros .
A paz aos pouco foi retornando à casa . Notou-se, visivelmente, uma maior aproximação de Daniel e Paulino. Pareciam parceiros e camaradas da mesma galera. Gesivalda andou meio cabreira porque desconfiou, pelos sinais exteriores, que a mesada do filho havia aumentado consideravelmente. Já havia transcorrido mais de uma quinzena do ataque da felina, quando a mãe percebeu uma conversa meio sussurrada entre pai e filho. Aproximou-se, sem que eles percebessem e , por trás da porta, pegou o restinho da conversa. A pulga voltou para trás da sua orelha novamente. Não quis acreditar , mas ,ao que parece , Daniel estava explicando ao pai que ia sair à noite com uma gatinha e pedia ao velho uma das suas “camisinhas” emprestadas. Quis armar ,mais uma vez o velho barraco. Temeu, no entanto, uma “rata” igual à anterior e preferiu juntar provas, antes de abrir novamente o processo. Pensou, pensou e chegou à conclusão que seria importante ouvir a única testemunha ocular do caso : a Gumercinda.
Até então havia poupado a doméstica. Era um assunto interno , que necessitava de sigilo e não queria que vazasse. As novas evidências, no entanto, não lhe deram outras opções. A curiosidade falou mais alto que a discrição. Procurou a empregada e foi direto ao assunto:
--- Gumercinda, lembra daquela calça que estava em cima da minha cama, naquele dia que você encontrou a camisinha? Quem vestiu a calça no dia anterior, o Daniel ou o Paulino ?
Gumercinda não hesitou em nenhum momento :
--- A calça, patroa, foi o Daniel que usou. Estava toda suja, acho que ele tinha ido pra uma festa.
Gesivalda respirou um pouco aliviada e juntou :
--- Então aquela camisinha, você encontrou no bolso da calça dele, não foi ?
A resposta de Gumercinda não podia ser mais imprevisível:
--- Não, Dona Gesivalda, a camisinha tava era no vestido da Amanda!

25/06/09

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