sexta-feira, 5 de junho de 2009

Corisco


Apenas o destino final lhes era comum . Sentiam-se, certamente, realizados e felizes. Muitos retornavam a casa , outros saiam de férias : conheceriam novos povos, novos costumes, outras verdades. Beberiam um pouco de civilização nas águas do velho mundo. Se tantos deixavam as preocupações para trás, executivos vários carregavam consigo as atribulações inúmeras de suas atividades. Aqueles viajavam sozinhos , outros partiam com familiares, parentes, aderentes. Um maestro; um cirurgião plástico com a esposa psicóloga; um químico; vários empresários; muitos ativistas sociais; uma cantora promissora; professores; um geólogo; um oceonógrafo; veterinários; um casal em lua de mel; até mesmo uma arquiteta cratense com o filho e a nora embarcaram no mesmo trajeto. No outro extremo, pessoas se revoltaram no aeroporto, impedidos de viajar: alguns por conta de overbooking, um outro por problemas no passaporte. Duzentas e vinte e oito vidas levantaram vôo naquele domingo . Três horas depois, sem qualquer explicação plausível : esperanças despedaçadas, sonhos destruídos, projetos estilhaçados nas ondas bravias do atlântico. Do mar ao mar, fechou-se biblicamente o ciclo de tantas vidas. Passava-se a régua na contabilidade da vida, na visão realista de Bandeira: “Vida, vida, noves fora, zero !” E os que escaparam , dependeram de que? Do pai de todos os encontros e desencontros: o senhor acaso.
Aturdidos, pomo-nos a pensar na fragilidade da existência. E na grande tragédia desse mundo : construir é tão árduo e difícil; destruir não carece de motivos nem causas : basta um sopro. Para erguer um edifico levam-se , necessariamente, na melhor das hipóteses, meses e meses, para implodir são necessários apenas alguns segundos. Reparando direitinho, pouca coisa separa a tragédia do vôo 447, da tragicomédia de todos nós. Talvez apenas o número: a catástrofe por atacado. Todos os humanos, na verdade, fazem uma viagem muito parecida, embora não na mesma aeronave. O vôo é cego, no escuro, em meio à tormenta , à turbulência e o destino, amigos, é a colisão. Mais dia, menos dia, nosso aeroplano mergulhará no oceano dos tempos e não restará resquício, nem um vestígio do nosso plano de vôo. Nada sobrenadará: uma lembrança, uma memória, nada. E a ninguém interessará procurar a caixa preta E, se por acaso alguém tropeçar nela, como na lâmpada de Aladim, o que descobrirá? Desejos rotos, ilusões puídas, anseios pisoteados. Dados técnicos empilhados e empalhados : meros arremedo daquilo que um dia refulgiu e palpitou.
Contemplamos, atônitos, o universo com suas dimensões astronômicas. O que significa nossa passagem meteórica por aqui ? Como um corisco, riscamos os céus instantaneamente. Brilhamos fugazmente para algumas retinas atentas , para a maioria nossa trajetória será totalmente incógnita. E mais: nosso brilho dependerá da força com que ferirmos a pesada atmosfera deste mundo. E, como no meteoro, tanto mais cintilamos quanto mais nos dissipamos. Os mais espiritualizados acreditam que somos não meteoritos, mas cometas e que periodicamente retornamos para um novo resplandecer. O certo é que nossa momentânea fulguração não possui qualquer interferência na ordem imutável do universo. Etéreas, voláteis nossas efêmeras histórias escrevem-se na superfície do mar que se abre voluptuosamente para engolir nossa pequena aeronave.
De que adiantam vaidade, egoísmo, ganância, competição? A turbulência nos envolve, a colisão previsível nos aguarda. O que conta no final das contas ? A paisagem que possamos sorver da janela e a teia de laços fraternos que consigamos tecer com nossos outros companheiros de viagem e de infortúnio. Só.
05/06/09

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