quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Uma Rua chamada Saudade


“Marreco” contempla a rua modernosa com um mal disfarçado ar da mais tenra saudade. Ainda menino, no início dos dourados anos 50, açoitado pela seca, chegado do interior, encontrou na pequena viela seu mundo. Era apenas um pequeno quarteirão, imprensado entre a pomposa rua Mons Esmeraldo e a Almirante Alexandrino. Parecia até que uma autoridade eclesiástica e outra militar tentavam isolar a vielazinha do resto da cidade de Frei Carlos. Eram apenas 150 metros que se faziam, palmo a palmo, um templo aos deuses Baco e Dionísio. Cidade em plena emergência comercial e cultural, a partir da década de 40 , o início da Nélson Alencar começava numa fazendola de Pedro Felício, com currais para pecuária, ali nas proximidades da hoje Diretoria Estadual de Educação. Este pequeno trecho, tão grávido da história sentimental cratense, recebeu o batismo de todos seus súditos : Rua da Saudade! Pois a longa avenida dedicava seu primeiro quarteirão à boêmia, se estendendo até o Cemitério Municipal na outra extremidade. Vida e morte colocadas caprichosamente numa mesma reta, veredas de uma mesma travessia.
“Marreco” lembra ainda hoje como a vida palpitava naqueles velhos tempos. Quando a cidadezinha fechava suas portas e janelas à noite, a ruazinha travestia-se de Cinderela. Homens diurnos e sisudos esqueciam os livros de caixa e os balcões e se esbaldavam no álcool, na dança, nos prazeres da carne. Não carregavam consigo qualquer peso na consciência, o casamento mostrava-se, a maior parte das vezes, uma instituição burocrática, uma linha de montagem de filhos. O prazer era uma mercadoria exposta à venda nas prateleiras da ruazinha, igual às quinquilharias que negociavam durante o dia nos empórios e magazines. Periodicamente, o estoque de meninas se renovava e havia ampla divulgação no comércio local. Vindas de Fortaleza, Recife e da Bahia, traziam consigo o bouquet infalível da juventude. Ali também as moças perdidas, enxotadas de casa como animais, terminavam por se encontrar, por se estabelecerem na mais antiga de todas as profissões. Na esquina da Mons Esmeraldo, a rua começava, apoteoticamente, com o “Bar Tamandaré” de Geraldo Saldanha e no seu sobrado a mais famosa boate do Cariri, a de “Glorinha”. A partir daí as boates apinhavam todo quarteirão com nomes mais que famosos: a de Luiz Bitu, a de Antero, , a de Maria Augusta & Zé Alves, a de Dionísio Carcundinha, a de Expedito Sá, a de Pedro do Lameiro, a de Maria Alice, uma das mais formosas mulheres que já pisaram o solo caririense. Sem falar na de Odilon, pai de Expedito Magro, este que depois assumiu o nome artístico de Célio Silva e acabou se tornando um dos nossos maiores seresteiros. A Saudade tinha divertimento para tudo quanto era orçamento: os abastados procuravam as casas mais sofisticadas e os estudantes e o Zé povinho se aboletavam na chamada “Farinhada”. Bares especializavam-se ainda na jogatina e a mãe do grande Zé dos Prazeres , um dos nossos músicos mais famosos, vendia, pela manhã, na calçada, uma cabeça de porco com macaxeira para recobrar as forças desgastadas nas libações noturnas.
O tempo escoou-se no incessante tic-tac do relógio da Praça Francisco Sá. O Crato mudou, os costumes metamoforsearam-se. A cidade cresceu e, de repente, a ruazinha se tornou central . O que se fazia às escondidas começou a ter muitas testemunhas e, a cidade, terminou por engolir a ruazinha. Por outro lado a liberdade sexual das novas gerações tornou obsoleta a antiga atividade: o Bordel foi substituído pelo Motel.
“Marreco” conclui que no início dos anos 60, a juíza de Crato Auri Moura Costa fez um ultimato : em 24 horas a rua deveria ser evacuada. Claro que a exeqüibilidade de uma medida tão radical e abrupta seria muito difícil. A mais antiga das profissões tinha uma bagagem guerreira invejável. A partir daí, no entanto, a Rua da Saudade foi paulatinamente se esvaziando. As boates se foram transferindo para outra periferia, agora acima da Estação Ferroviária, que se passou a chamar de “Gesso”. Continuaram, no entanto, alguns estabelecimentos dedicados ao mesmo mister, até a semana passada, quando, definitivamente fechou a última boate da ruazinha, agora , adaptada aos novos tempos, dedicando-se, mais à venda de drogas baratas. Tomada por pequenas lojas comerciais a viela, no entanto, ainda mantém um certo ar retrô , um clima perceptivelmente urderground.
Havia um certo estigma premonitório no nome da ruazinha, lê-se nos olhos baços de “Marreco”. Templo de boêmios , de bêbados, de putas e poetas, conheceu mais que ninguém a alma desta cidade. Conviveu com suas pulsões mais profundas, com aquela argamassa de ambições, desejos, frustrações, desigualdades que cimenta todas nossas relações humanas. Assistiu a toda uma geração de cratenses desnudos de todos véus das convenções sociais. Fragilidades, fraquezas, perversões, defeitos expostos como uma carniça fervilhante. A extremidade que celebrava a vida esmaeceu pouco a pouco e a outra que apontava para a morte começou a ficar cada dia mais brilhante. Hoje, mais do que nunca, ela merece o nome de Rua da Saudade.

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