terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Avô Adotivo


Não sei a que atribuir aquela confiança cega que de repente se me depositaram. Pode ter sido estas mechas brancas que teimam em me tingir a barba, ao quebrar o cabo da desesperança dos cinqüenta. Ou as rugas que me vão mapeando o rosto, como troféus de muitas batalhas empreendidas e poucas ganhas. Talvez, até, este ar um pouco distante de quem procura o que não pode encontrar , de quem teme a estrada curta e imprevisível que se abre , morosamente, adiante. A placidez ,apenas aparente, dos desiludidos e desencantados.O certo é que a garotinha de uns cinco anos, interpelou-me enquanto fazia do encosto do bureau da sala de espera, um escorregador. Rostinho redondo, bochechinas salientes e olhos vivíssimos que saltavam da moldura de um cabelinho negro, curto e liso, cortado em pastinha. Fitou-me decidida ao me ver passar, exausto, depois de um longo dia de trabalho. Parou as atividades no playground em que transformara a sala de consultório e me chamou, como se fôssemos velhos e inseparáveis conhecidos:
--- Hei ! Hei ! Vem cá !
Mergulhado em preocupações mil, aquele fiapo de voz tocou meu coração, como se fora “A Primavera” de Vivaldi. A alegria e felicidade puras que brotavam como água cristalina da fonte da inocência. Aproximei-me desarmado como que tocado pela varinha de condão da fada madrinha. Desobedecer a um chamado destes, quem há-de ? Agachei-me um pouco, em reverência e , obedientemente, lhe fiz continência :
--- Olá ! Como você está?
A menininha sorriu-me , angelicalmente e me fez um convite totalmente inusitado:
--- O Senhor não quer ser meu avô, não ?
Hesitei, um tanto, ante um pedido tão carinhoso e estranhamente tão inesperado. Temendo ser pouco convincente, disse com voz titubeante que queria sim, que gostaria muito. A menininha pareceu contente e , por fim, explicou a necessidade da substituição necessária:
--- É que meu avô morreu e eu tou sem avô, ó !?
Já me recobrando da surpresa e buscando entender os ínvios caminhos do coração infantil, fui mais enfático. Conversei mais e disse que a partir daquela hora ela tinha um novo avô. A garotinha parece que havia encontrado uma Barbie perdida. Abraçou-me e voltou ao seu escorregador que , afinal, ninguém é de ferro.
Saí dali encantado com o convite. Afinal, hoje , avô é artigo de luxo. Com os jovens libertos e sem amarras, nascem filhos temporões que terminam por enfeitar a vida já um pouco ressequida de tantos avós. Não bastasse isto, com a doideira da vida moderna, com pais e mães numa corrida desenfreada em busca da sobrevivência,quem convive com os pirralhos ? Os avós ! Aí a convivência mostra-se sempre de mão dupla: eu te dou a segurança, a experiência e vocês me fornecem um pouquinho da preciosa seiva da vida. Nós lhes aplacamos os temores da floresta e vocês nos mostram onde ainda existem frutos deliciosos e sazonados. O avô é o pai domesticado: sem o grito, sem a palmatória, sem a cara emburrada. Tendo a visão privilegiada do rio da vida, ele entende que os acidentes são inevitáveis, que as águas muitas vezes se tornam turvas, que o fluxo vezes se mostra calmo, vezes tormentoso para quaisquer navegantes de primeira viagem. O tempo dá ao avô a prerrogativa da tolerância , com a pena pronta para a Hábeas Corpus , a alvará de soltura, a carta de alforria.
Despedi-me sob o peso da imensa responsabilidade que me acabava de ser conferida. Ser avô independe, geralmente, da nossa vontade e os netos, infelizmente, não têm o sagrado direito da escolha. Pois bem, a minha missão fazia-se bem mais árdua: a partir daquela data, a garotinha me havia eleito Avô Adotivo. Ela, mais que ninguém, demonstrava, claramente, a falta que lhe fazia aquela perda prematura. Sem maiores credenciais devo fazer tudo para não decepcioná-la. Mesmo sem estar perto, sem conhecer seus pais , sem sequer saber onde ela mora ; me acho no dever de fazer tudo ao meu alcance com o intuito de ela entender que a vida é apenas mais um capítulo de um Conto de Fadas. Apesar das bruxas, das maças envenenadas e das madrastas, sempre é possível encontrar um príncipe em cada esquina da existência e fazê-lo calçar o nosso sonho no sapatinho de cristal das nossas esperanças.
Antes de sair ainda ouvi a vozinha doce da minha neta mais nova :
--- Tchau, Vôiinho !

30/12/08

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