sexta-feira, 15 de abril de 2022

Por que me abandonastes ?

 



“Quem come do fruto do conhecimento,

é sempre expulso de algum paraíso.”

Melanie Klein

 

                               Estamos na Sexta-Feira Santa, um dos dias mais sombrios e opressivos para quem vive nessa  banda mais ocidental da Terra. Mesmo para os agnósticos e para os não cristãos, é impossível livrar-se daquele sentimento de culpa, quando contemplamos o Cristo no seu crucifixo. De alguma maneira nos bate a certeza de que cada um de nós foi responsável pelo crime perpetrado, dois milênios atrás, na Galileia. Esse parece-nos sempre um outro pecado original,  bem mais pungente do que aquele outro que nos foi atribuído por nossos ascendentes biológicos por  terem  degustado os frutos da árvore do bem e do mal, no paraíso. A transgressão do Éden , no fundo, fez com que nós pudéssemos andar com nossos próprios pés e, como um adolescente que saísse da casa dos pais, ganhamos o mundo com todos os encantos e riscos que essa atitude nos proporcionou.  O remorso e o pesar pelo delito do Gólgota nos ferem bem mais do que o do Gênesis. Qualquer um de nós percebe-se uma espécie de centurião,  eternamente oferecendo o fel e a coroa de espinhos ao Rei dos Judeus.

                        Acredito,  no entanto, que subsistem outras razões para um remorso tão duradouro e que ultrapassa em muito  as fronteiras da fé cristã. É que a saga do Calvário continuou a se repetir , em incontáveis outras apresentações, na história da humanidade. Mudam os atores e a relevância dos seus papéis, mas o roteiro não é tão diferente. Existe uma cruz fincada eternamente em algum morro, esperando por alguém que ouse pensar um caminho diferente daquele  traçado pelas forças políticas e econômicas vigentes. E é fácil lembrar de alguns dos crucificados: Antonio Conselheiro,  Che Guevara, Beato Zé Lourenço, Giordano Bruno, Miguel Servet, Nélson Mandela, Josué de Castro, Padre Antonio Henrique Pereira...  Nada mais arriscado do que sair do bando e mostrar  a possibilidade de outros caminhos , outras veredas, outros horizontes... A ovelha negra fica sempre mais visível e destacada para a sanha do leão.         

                        Nesta peça humana,  os personagens também se repetem com diferentes protagonismos e nuances. Há sempre um juiz parcial que joga para a plateia no feitio de Pilatos. A predileção por Barrabás  nas eleições populares continua bem presente. Existem sempre os discípulos mais queridos e fiéis mas que, na hora do aperto, não têm o pejo de negar o seu mestre por três ou muito mais vezes. A tortura, instrumento cruel e desigual  no jogo dos poderosos contra os indefesos, repete-se em novas chicotadas e coroas novas de espinhos. E os torturadores são até exaltados !  Os ladrões , nos novos palcos, já não são crucificados com os revolucionários, eles estão felizes e incólumes na plateia, batendo palmas e soltando balões. E os Judas, categoria fértil, se multiplicaram, estão presentes em muitos departamentos, em muitas esquinas, em muitas repartições e, por conta da inflação galopante, cobram caro. Saudades daqueles tempos dos trinta dinheiros ! Do outro lado , sempre é bom lembrar, existem ainda a misericórdia das Marias, a solidariedade dos Arimatéias, o desvelo dos Simões ! Mas, em toda etapa da nossa história , desde aquela Sexta Feira tenebrosa, sempre houve um novo Cristo, num novo Gólgota,  gritando desesperado, a todos pulmões :

                                   --- Pai, Pai, por que me abandonastes ?

                        O mais desapontador, no entanto, são  os destinos do sonho sonhado pelo revolucionário da vez, depois que seu corpo é levado à catacumba e, após algum tempo, com sorte,  ressuscita. O enlevo já não é o mesmo nas mãos de muitos novos discípulos; os livros sagrados perdem seu encanto original, têm interpretações enviesadas e esdrúxulas  e ganham ares de profano; os bezerros de ouro voltam a ser adorados em muitos altares;  a transgressão empanturra-se em vinhos de apatia e conformismo. E a humanidade continua , enfastiada, esperando por um sábado  sempre longínquo e inalcançável onde possa clamar:  Aleluia !

 

Crato, 15/04/2022

                       

3 comentários:

Batista de Lima disse...

Texto perfeito. Melhor texto produzido neste momento crucificado entre COVID e Ucrânia. Talvez a ovelha negra preferisse ser chamada de desgarrada. Parabéns.

jflavio disse...

Abraço, Batista e obrigado pelo retorno.

Unknown disse...

Infelizmente continuamos os mesmos. Os Santos de outrora, são mais reais, na nossa memória seletiva. Cronica bem realista! Muito bem, Dr. Jose Flavio.