sexta-feira, 25 de março de 2022

Matilhas

“Encheram a terra de fronteiras, carregaram o céu de bandeiras, mas só há duas nações 

– a dos vivos e a dos mortos.”

 Mia Couto  

 

 

Assistimos, novamente, a um filme cujo roteiro demonstra toda a nossa incapacidade como espécie inteligente e mestre dos destinos do planeta. O século passado, entre outras incontáveis escaramuças, nos legou duas grandes guerras mundiais, uma Europa e uma Ásia arrasadas e os terrores inimagináveis do Holocausto. Estima-se que quase cem milhões de vidas se perderam nos dois grandes conflitos, como se de repente metade da população brasileira evaporasse. Isso sem falar na Guerra do Golfo, da Chechênia, nas guerras da descolonização africana, na Guerra Fria, do Yom Kippur, na do Vietnam, a Civil Espanhola, a Sino-Japonesa, a Russo-Japonesa, dos Balcãs. E dos seguidos golpes de estado, mundo afora, patrocinados pelas grandes potências, sempre com profundos interesses políticos e econômicos sempre mal disfarçados. Durante todo o Século XX, pulularam os conflitos armados pela Terra, possivelmente não tivemos um instante só em que vidas inocentes não estivessem sido trucidadas em questões geopolíticas, religiosas, financeiras. E é sempre bom lembrar de duas bombas atômicas que fizeram com que sumissem do mapa, como por encanto, Hiroshima e Nagasaki. Estima-se que hoje existam dezenove mil armas nucleares no mundo, algumas com um poder destrutivo 700 vezes maior que a Little Boy, 90% delas nas mãos das duas maiores potências mundiais: Rússia e EUA. Apenas 10% delas já seriam suficientes para acabar com toda a vida no planeta. Agora, eclode, novamente, uma grande contenda entre Rússia e Ucrânia, pondo frontalmente, na torcida, num arranca-rabo de lado a lado, outras grandes potências mundiais: EUA, China, Reino Unido, Alemanha, França. Numa regra imutável desde que o Homo sapiens desceu da árvore, não há mocinhos neste filme, apenas bandidos e vítimas. Alguém já disse que as guerras são decididas por velhos que se odeiam e se conhecem muito bem para que jovens que nunca se viram, se trucidem nos campos de batalha. As cenas transmitidas seguidamente pela mídia ( que também tem partido e cria o clima para que a matança se justifique) são estarrecedoras e depõem completamente sobre a racionalidade que um dia quisemos que fosse um apanágio da nossa espécie. Civis trucidados, refugiados à mancheias atravessando, desesperados, as fronteiras em busca de sobrevivência. Uns atirando de bodoques e baladeiras contra tanques. Vilas, campos e cidades transformadas em escombros. E o risco sempre iminente do fósforo cair no rastilho de pólvora e a conflagração se alastrar, o que pode significar o fim da trajetória humana na Terra. Tanto avanço tecnológico, nos últimos anos ! Conseguimos chegar a lua e a outros planetas ! A Medicina evoluiu imensamente e vivemos cada vez mais e melhor ! A informação nos põe conectados em tempo real, quebraram-se todas as fronteiras geográficas e temporais ! O homem, no entanto, não conseguiu evoluir em humanidade. Não saímos ainda da selva, andamos em matilhas mas não perdemos o instinto sanguinário do lobo. Basta olhar ao redor, a desigualdade social, uns passando fome e outros fazendo dietas, uns tomando a quarta dose da vacina e outros implorando pela primeira, uns matando aos outros, friamente, por riqueza e território... Os chacais não agem tão diferentemente nas ravinas africanas... Um dia pensamos, ingenuamente, que os embates dos gladiadores no Coliseu seriam substituídos pelas pugnas no campo esportivo e que a guerra , uma triste lembrança de um passado sombrio da humanidade, seria transmutada em diplomacia. Ledo engano ! Continuamos em plena vigência, ainda, da cadeia alimentar primal ( predadores e predados) , há apenas uma Lei eterna e vigente ainda nas ruas e campos desse mundo: a do mais forte. E apenas duas nações preenchem as planícies do nosso planeta: a Nação Vivos e a Nação dos Mortos !  

Crato, 25/03/22

2 comentários:

Ronilda disse...

Texto primoroso! "O homem, no entanto, não conseguiu evoluir em humanidade" - Por isso, tudo isso de ruim que está acontecendo.

jflavio disse...

Abraço, Ronilda e grato pelo comentário