sexta-feira, 18 de março de 2022

Os Jardins suspensos da Babilônia

 


Duas sensações díspares tomaram conta de Giba quando envergou, por fim, a aposentadoria, meio precoce. Entrara num Banco  público, como escriturário,  numa época em que  bancário tinha alto status e gozava de salário diferenciado, carreira sólida e futuro garantido. A escolha profissional fugiu, de longe, como frequentemente acontece aos descamisados, a uma pretensa vocação de berço. Nascido pobre , no interior, sem possibilidades outras de seguir nos estudos, aquela se mostrou sua tábua de salvação.  Toda aquela  estabilidade , com dinheiro farto e regular,   tornava o emprego muito atrativo e os bancários grandes partidos para as mocinhas casadoiras nas pequenas localidades onde, em geral, iniciavam a vida. Além de tudo, imersos no sistema financeiro, sempre aparentavam , para os que estavam de fora,  que aquela montanha de dinheiro dormente nos cofres , não pertencia à instituição, mas a eles que, todo santo dia, folheavam notas e mais notas e as organizavam em montinhos atrelados a ligas elásticas. Giba até contava, sorrindo, que ainda menino sua mãe o levara a uma cigana que lhe fez um vaticínio mais que alentador:

                                    -- Esse menino vai passar a vida toda pegando em muito dinheiro, dona Sinhá !  

                                    A previsão se confirmou, anos depois, claro que sem as perspectivas alvissareiras que alimentaram sua infância e adolescência: virou Caixa de Banco.  Tinha as mãos cheias aquele dilúvio de notas que alguns associam, imediatamente à felicidade. Só havia um pequeno detalhe que lhe escapara do vaticínio original: não eram suas. Mas confortava-se com a certeza de que uma pequenina parcela, no finalzinho do mês, terminaria por molhar a sua conta. Casou cedo, com D. Hermelinda , a filha de um fazendeiro remediado de Campos Sales, onde assumiu, no verdor dos vinte anos, a função num Banco daquela cidade. Depois, ao sabor das ondas meio messiânicas do ofício, circulou por muitas outras cidades, levando a tiracolo D. Hermelinda, uma exemplar e irretocável gerente de uma empresa de dificílima administração chamada de Lar. E os filhos foram vindo, em carreirinha, cada um com uma nacionalidade  diferente :  Petrolina, Curaçá, Macaé e, o fim de rama, Cristênio ( nome e karma pomposo e heráldico que herdou do avô paterno) veio a furo em Maceió, a última parada do seu trem. Quando, por fim, Giba pendurou as chuteiras, o menino tinha lá seus doze anos e já apresentava os primeiros sinais da mordida de cachorro doido da idade: Papai é quadrado!  Mamãe só gosta das minhas irmãs ! Não tenho que dar satisfação a quem quer que seja ! Ninguém me entende nessa casa !

                        Conversa vai, conversa vem, terminamos por nos afastar do preâmbulo dessa história. Pois bem !  Dois sentimentos díspares caíram como um raio no toitiço de Giba quando, por fim, foi avisado, pelo Setor de Pessoal, da sua aposentadoria. Tinha , então, cinquenta e cinco anos. Bateu-lhe uma sensação imediata de alívio e da liberdade por fim conquistada. Como se tivesse pago uma pena de trinta e cinco anos e , naquele instante, lhe aviassem  o Alvará de Soltura. Nos primeiros dias, tomou-lhe aquela alegria de já não necessitar levantar às cinco da matina e partir, às carreiras,  para o Banco, amestrado pelo Relógio de Ponto. A cara de mandacaru do chefe do setor, também, aos poucos,  foi desaparecendo da paisagem.  Por uns meses Giba sentiu-se no melhor dos mundos. Aos poucos, no entanto, lhe foi assaltando o espírito um certo dissabor. Até dizem que o tempero da vida é agridoce ! A evolução do Homo eructus para o Homo laboris não pareceu ter lhe trazido maiores sobressaltos. A chegado, no entanto, ao Homo domesticus começou a lhe pesar. Não entendia nada de casa, era-lhe um ofício totalmente estranho e, como todos os outros, repletos dos seus próprios mistérios. Onde tentou ajudar, apenas atrapalhou os afazeres de D. Hermelinda que já adquirira a desenvoltura do voo em cruzeiro. Despencou-lhe , rápido, um certo banzo, voltou a fumar, precisou sair de casa para encontrar com outros soldados igualmente  reformados que preenchiam o vazio do copo da aposentadoria com destilados e conversa solta. As duas filhas já tinham casado e , assoberbadas, também, pela montanha russa da vida, apareciam meteoricamente nos natais, aniversários e nas doenças. Teve que dividir o bolo da solidão com a esposa e com Cristênio que já começara a trabalhar, espelhando-se no pai, num Banco privado. Depois de uns cinco anos de porteiras abertas, a carroça de  Giba começou a emperrar as válvulas, empenou o vilabrequim e teve que passar pela Retífica. Entendeu, rápido, que quase fizera o desejo soberbo da Previdência Social: deixar de receber a aposentadoria para a qual fizera poupança por quase quatro décadas e que o governo devolvia como se fosse um favor que lhe estivesse fazendo.

                        Cristênio , sentindo-se estribado com o salário do Banco, sem gastos maiores,  virou uma  cadela no cio. Vezes não dormia em casa, nos finais de semana desaparecia, no Carnaval só tirava a fantasia na quarta-feira de cinzas. Voltava com aquela cara de gato que passou a noite toda aos berros no telhado de casa.  Quando dava sinais de que iria desaparecer por mais tempo, a justificativa era sempre a mesma:

                        --- Pai, não se preocupe não, vou sair e não sei se venho dormir em casa...

                        --- Com quem meu filho ? --- Sempre perguntava, algo aflita,  uma desvelada Hermelinda .

                        --- Com o pessoal, mãe. Com o Pessoal ...

                        Depois de alguns meses, Cristênio avisou que resolvera , agora, morar em um outro bairro , em Chã de Bebedouro. Já estava crescido e queria a independência. Os pais , desta feita, ficaram mais preocupados. Moraria só ? Em que endereço ? Cristênio não encompridou conversa.

                        --- Pai, depois digo direitinho o endereço. Não se preocupem ! Vou morar com o Pessoal...

                        Passaram-se alguns meses, ele telefonava eventualmente para saber se estava tudo bem... Mas dava uma queda de asa danada quando os velhos pediam o novo endereço. Numa das conferência no Bar da Esquina,  Giba, através de um amigo do Banco, soube que  o filho estava, na verdade,  morando com a namorada que, por coincidência, era filha de um outro bancário. E mais: Giba descobriu que ia ser avô. Ao chegar em casa , ele contou a novidade a uma Hermelinda meio chorosa e revoltada. A estrada da vida, no entanto, trouxera não só a artrite e os cabelos brancos , mas também experiência. E foi assim que Giba profetizou:

                        --- Nada aconteceu de mais, Hermé ! Nada ! Fique tranquila ! Daqui um pouco o Pessoal vem morar bem pertinho daqui !

                        Nem a cigana da infância dele, teria tanto faro. Depois de uns três meses que a neta nasceu, Cristênio chegou em casa, sorridente e feliz e deu a boa notícia: Eles agora tinham uma neta e, o melhor de tudo, iam se mudar para um apartamento no mesmo prédio. Giba matou rápido a charada. Com os dois trabalhando, com salários de bancários agora dessalariados, o ponto de apoio dos avós era imprescindível, para os cuidados com o Pessoal. Todo santo dia, antes de partirem para a luta, Cristênio e a esposa deixavam o Pessoal com os avós. Giba , carinhosamente, sem que o filho nunca compreendesse, passou a chamar a menininha, a querida Pessoal,   de Pepê.  

                        Com os dias, aquilo que a princípio era um fardo, começou a encher de alegria a casa meio opaca dos avós. Pepê com sua graça e as surpresas quase que diárias no descobrimento do mundo à sua volta, transformou o Saara nos Jardins Suspensos da Babilônia.  E Pepê ficou ainda mais próxima quando, um ano depois, Cristênio e a esposa resolveram apartar os teréns. As novas gerações, pensou Hermelinda, entendem que o casamento é um eterno banquete de frutos do mar, vinhos e sobremesa de pudim de leite. Quando aparecem os primeiros sapos a degustar, resolvem imediatamente trocar de restaurante. Cristênio voltou para casa dos pais e , no acordo do divórcio, para satisfação dos avós, ficou com a guarda de Pepê.

                        Aos poucos, Cristênio colocou a espingarda soca-soca nas costas e partiu novamente para caça. Giba e Hermelinda começaram a notar a repetição da mesma trilha sonora. Desaparecia nos finais de semanas e feriados.

                        --- Mãe , vou acampar nesse final de semana e só volto na segunda. Vocês cuidam de Pepê ?

                        --- Cuidamos, filho ! Vai acampar com quem ?

                        --- Com a Turma, mãe ! Com a Turma !

                        Alguns meses depois, Cristênio avisou, novamente que iria se mudar para morar no Bairro de Santa Amélia ! Quis saber se eles poderiam cuidar por um tempo de Pepê que, nesse momento, já era, de longe, a figura mais importante da casa. Claro que podiam !

                        --- Filho, podemos sim, mas dê notícia ! Pepê tem todo nosso amor mas ninguém substitui pai e mãe ! Vai morar com quem ?

                        --- Vou morar com a Turma , mãe ! Não se preocupe ! Eu dou notícia !

                        Alguns meses depois, Giba soube, na ágora moderna, o Bar da Esquina,  que o filho estava atrás de alugar apartamento nos proximidades dali, de preferência no mesmo prédio dos pais. No dia seguinte, Hermelinda deu com o marido mostrando um quarto do apartamento que pretendia reformar a um mestre de obras que costumava fazer trabalhos para eles. Ela então quis saber que reforma era aquela de que não via qualquer necessidade, ainda mais levantando poeira para Pepê que era muito alérgica. Um Giba profético, nostradâmico, explicou tudo:

                        --- Filha, chamei o pedreiro para a gente ajeitar esse quarto pra Tutu !

 

Crato, 18/03/22

Um comentário:

Unknown disse...

Muito realista seu texto, Dr. Jose Flavio! É a realidade da nossa geraçao, Anos 60, 70, 80, ate os dias atuais.