sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Vestido de Estrelas para a Festa Solar

                                                                                                  J. Flávio Vieira 

Houve um tempo em que a retidão, a honestidade não se tinham como virtude ou qualidade. Eram, simplesmente, traços indissociáveis do caráter humano. Ai de quem se afastasse desse atributo mínimo esperado de qualquer pessoa que cruzasse nosso caminho ! Atirava-se, imediatamente, na lata de lixo da sociedade. E não havia maior agressão do que se imputar alguém a pecha de vigarista, de espertalhão, de velhaco. Era um imediato chamamento ao duelo, pendência a ser resolvida com facas e carabinas. Eram tempos em que Política e Polícia não eram palavras correlatas, mas apenas um mero jogo de poder e havia limites e fronteiras claras a serem transitadas. Ultrapassar trilhas previamente traçadas resultava em entrar em areia movediça e campos minados. A Escola e as Religiões nos tinham, previamente, estabelecido um caminho virtuoso e límpido a ser trilhado. As penalidades por quaisquer infrações resolver-se-iam nos tribunais terrestres e celestiais. Hoje, em tempos de vale-tudo, do quem for podre que se estilhasse, tudo isso ganha ares de retrô, valores para serem guardados em prateleiras de museus. Todo esse preâmbulo saltou da vitrine do antiquário para a estante da atualidade, agora, quando , no próximo dia três de novembro, comemoraremos uma efeméride singular: Dr. Aníbal Viana de Figueiredo celebra seu centenário de nascimento. As novas gerações, acostumadas com a liquidez baumanniana típica da modernidade, perdeu, completamente, a ligação com o passado e é preciso que reavivemos esse elo. Um edifício, por mais suntuoso que se apresente, não existe sem o seu alicerce, mesmo que misterioso escondido no seu quarto subterrâneo. Nascido em Crato, há exatos cem anos, o menino Aníbal descendia de uma família intrinsecamente ligada à História do Cariri. O pai, um dos boticários pioneiros da região, José Alves de Figueiredo, ligara-se às letras muito cedo, sendo editor do jornal “O Araripe” , na sua segunda versão e autor de Ana Mulata, um dos livros icônicos da literatura sul-cearense . Ele fora prefeito da cidade em 1926. J. de Figueiredo Filho, irmão de Aníbal, historiador, folclorista, fundador do Instituto Cultural do Cariri, uma das mentes mais brilhantes cearenses, no Século XX. O menino Aníbal nasceu em 1921. Iniciou seus primeiros estudos no Grupo Escolar Cratense e, depois, no Ginásio do Crato. Nos intervalos, ajudava o pai na Farmácia Central. Seguiu depois para Fortaleza onde se preparou para o vestibular no Liceu do Ceará. No início dos anos 40, ingressou no Curso de Odontologia e Farmácia da UFCE, formando-se em 1944. Simultaneamente enveredou no CPOR de Fortaleza, fazendo-se 2º Tenente, o que o propiciou a possibilidade de dirigir o Tiro de Guerra do Crato, por mais de quinze anos, depois do seu retorno. Em 1945 casou com D. Maria Eneida de Figueiredo, de onde brotaram os filhos: José Ricardo, Luiz Alberto, Magali, Aníbal Filho, Fátima, Emília e Tatiana. Todos formados nos mais sagrados princípios de probidade e honradez, fizeram-se uma projeção da sombra acolhedora dos pais. Hoje a árvore frondosa de Aníbal e Eneida já conta com muitos outros frutos: mais de duas dezenas de netos e uma outra de bisnetos. Dr. Aníbal trabalhou por mais de sessenta anos como dentista na nossa cidade, junto de uma benfazeja geração que incluía figuras mitológicas da Odontologia caririense como : José Nilo Alves , Oswaldo Pinheiro, Gutemberg Sobreira, Edício Abath e outros. Inserido na vida social da sua cidade natal, Aníbal foi rotariano ativo por mais de cinquenta anos e presidente do clube . Em 1963, fez-se vice-prefeito na administração de Pedro Felício Cavalcanti, uma mistura virtuosa de Ética, decência, lisura e retidão tomou conta do Palácio Alexandres Arraes. A Academia Cearense de Odontologia o fez sócio honorário em 1997, reconhecendo a travessia iluminada e gloriosa do nosso dentista. A vida curta de todos os viventes nesta terra assemelha-se a uma mera passagem de um cometa. Brilhamos mais ou menos no horizonte para a alegria e deslumbramento de alguns poucos expectadores e, depois, sumimos na vastidão do universo. Para sempre? Alguns até acreditam que, periodicamente, como o Halley, reaparecemos. A cauda luminosa da passagem do cometa Aníbal ainda refulge nas nossas retinas e orienta vidas. Sua lhaneza de trato; a dose perfeita entre ao labores da profissão e o degustar dos prazeres epicuristas da vida; seu humanismo; seu desprendimento ao saber que o valor monetário é mera parte do pagamento da terapêutica; a imunidade total frente ao poder que lhe foi posto às mãos na política; o amor incondicional pela sua cidade e pelos seus conterrâneos; o cuidado com sua ninhada que era similar ao que distribuía com todos os que o procuravam. Um dia de 2006, Dr. Aníbal deu por finda sua messe e deixou que sua missão continuasse , agora multiplicada, entre seus descendentes. Hoje, ele já não precisa usar o espelhinho, o fórceps e o boticão. A bata já lhe é inteiramente desnecessária: Dr. Aníbal agora traja-se de sol e veste-se de estrelas. 

Crato, 29/10/21