sexta-feira, 15 de outubro de 2021

A Peruca e a Auréola


J. Flávio Vieira

                                                Pedro Filismino  tinha uma pequena fazenda nos arredores de Matozinho,  onde mantinha um criatoriozinho de gado e de ovelhas. Vivera sempre nesta corda bamba , equilibrando-se em alguns raros invernos de pasto fácil e muitos e muitos  secos como língua de papagaio dos inhamuns. O exercício de sobrevivência era sempre aquele de comprar as cabeças em épocas de seca, quando estavam a preço de banana, engordá-las com suas roças de capim, matar a sede no açude da capivara , na sua propriedade, que aguentava até dois anos sem chover,  e sem que batesse a piaba. Depois,  as vendia pelo dobro ou triplo do preço. Pedro também era conhecido por sua carolice. Assistia a missas diariamente, contribuía assiduamente com as obras sociais do Pe. Arcelino e não havia quermesse em que o nosso Filismino lá não estivesse, ativo e presente,  arrematando galetos e ovelhas por preços proibitivos. Difícil entrar na igrejinha para não flagrar nosso agricultor ajoelhado em algum confessionário, pedindo perdão de suas falhas e deslizes.

                                    A imagem pública que se tinha do nosso Pedro era de um homem religioso , probo e temente a Deus. O povo de Matozinho, no entanto, era experiente e tinha uma sensibilidade aguçada para essas beatices estranhas e exageradas. Para ele não existia verdade maior do que aquele provérbio clássico:  Valentia, riqueza e santidade: a metade da metade !  Muitos começaram a checar as peregrinações do nosso Pedro para além das muralhas da igreja, após as overdoses de  Salve-Rainhas, de  Credos e Pai Nossos. Filismino, descobriram depois, saía da missa das seis num Jeep 51 que adquirira há muitos e muitos anos. Tomava o caminho da fazenda, mas, antes de chegar, trocava a roupa dentro do carro, colocava um capote grosso e uma peruca, montava num burrinho que já o esperava amarrado num angico e partia, sorrateiramente pra a Rua do Caneco Amassado, o famoso baixo meretrício da Vila de Matozinho. Chegava lá já à noite, com a peruca esquisita e o manto grosso e todos imaginavam que se tratasse de algum forasteiro.  Ele, segundo se levantou, era o parceiro favorito da mais importante meretriz da cidade: Bia Chuca-Chuca. De posse de um aparente anonimato, o cabeludo da peruca  estava solto para liberar suas fantasias.   

                                Imaginem a surpresa quando a revelação chegou na praça principal e o populacho desvendou os mistérios da beatice crônica   de Pedro: ele dividia seu tempo entre o sagrado e o profano. Pecava altas horas da noite, no outro dia pedia perdão na capela e, para todos os efeitos, a conta zerava diariamente. Sujava a alma na madrugada, limpava as nódoas de tardezinha. Filismino  vezes usava a auréola de santo, vezes a peruca libertina.

                                    O zum-zum correu a cidade acima da velocidade da luz. Dois dias depois,   a fofoca, para desespero de Felismino, já vinha em versos, recitados por todas as esquinas da Vila. Como sempre, não se sabia a autoria, alguns desconfiavam que, pelo jeitão do palavreado, parecia ter saído da lavra do Jojó Fubuia , o pinguço da vila e, também, seu poeta nas horas vagas e feitor anual do  testamento do Judas, que esse ano, com certeza legaria uma peruca nova para o nosso Pedro.

 

                                    O Véi Pedro Filismino

                                  Que danado esse menino !

                                   Se confessa todo dia !

                                    Depois que bota  a peruca,

                                     Se enrola com Chuca-Chuca,

                                   E é a maior putaria !

 

                                    Mas no outro dia, porém,

                                    Purinho como um nenen

                                    Vai da gandaia pra fé

                                    O homem é texto e panela:

                                    De tarde lá na capela

                                    De noite no cabaré !

 

Crato, 15/10/2021

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