sexta-feira, 16 de julho de 2021

Estrupício

 


J. FLÁVIO VIEIRA

 

                                               Umbilino  nascera ali naquele oco de mundo, umas duas léguas pra lá do Barreiro Grande. Acostumara-se àquela vidinha na serra, embalado por trinado de grilo à noite e despertares movidos a canto de galo. O sustento estava bem ali ao alcance da mão: o pequi que lhe caía oferecido no quintal, a mangaba que rolava solta e madura pelas trilhas , o araticum que se esparramava  à sua frente. Da Casa de Farinha próxima vinha a farinha e o beiju que negociara, em escambo, com a mandioca que plantava num rocinha pequena, dessas que anum tira dum voo. Uma rapadurazinha , por vezes, era importada de algum engenho do pé de serra. O mais Umbilino conseguia fácil, fácil, com sua  soca-soca afinada na mira de jacus e rolinhas  e o cachorro “Cruvina” , um perseguidor implacável de tatus, cutias e preás. Umbilino herdara aquelas artes dos avós, coletores e caçadores cariris,  que, um dia,  foram donos de todo aquele mundão a se perder de vista.

                                    Aquela vidinha mansa e modorrenta, nos últimos tempos, viu-se quebrada pelas fiscalizações do IBAMA. A Polícia Ambiental agora é que caçava os caçadores de serra adentro e Umbilino soubera de mais de um amigo e parente que terminaram enjaulados, como preá em fojo, por ser flagrado com espingarda e cachorro no meio do mato ou com o produto de alguma caça no embornal.  Já tinham lhe dito que, sendo morador da floresta, era-lhe dado o direito de caçar para sua sobrevivência, mas daí a provar que ali morava , sem ter comprovante de residência, era coisa pra mais de um mês de xilindró, assalto de advogado e cipoada no lombo pra ir tomando tento,  enquanto providenciava a documentação comprobatória. Os moradores da serra viviam nesse sobressalto, tranquilizava-os apenas a certeza de que os fiscais eram quatro gatos pingados e a probabilidade do flagrante delito raríssima. Mas, mesmo assim, andavam temerosos e relutantes como  pastor esperando CPI. Não bastasse a caipora e suas exigências tabagísticas, agora,  mais essa ! Naldo Caititu , caçador profissional, já lhe adiantara que de bicho de mato o único permitido matar era um tal de Lázaro. Tirante ele, o resto dá BO !

                                    Umbilino saiu de noitinha com Cruvina, atrás de pegar um tatu para o almoço do dia seguinte. Acreditou que naquele horário de sombras , com volta prevista para a madrugada amanhecente, estaria livre dos fiscais. Cruvina acuou um tatu e ele levou metade da noite cavando o buraco, a luz de lamparina, até pegar a caça. Imobilizou-a juntando , com um cordão, as duas abas da sua carapuça e o impedindo de botar a cabeça de fora. Voltava todo serelepe quando deu de cara com um teju, filosofando em cima de um tronco caído de árvore, quando os raios do sol  já lancetavam  a chapada. Mirou e, quando a espoleta voou, viu o lagarto se contorcendo, foi lá e o pegou, ainda baleado. Tomou o caminho de volta à casa, feliz e realizado. Tinha almoço e janta garantidos para os próximos dois dias. Cruvina, satisfeito, ia na frente como batedor, abanando o rabo. Esqueceu que alegria de pobre dura pouco, na próxima dobra da vereda, deu com três fiscais com roupa do ICMBIO que tinham vindo apagar um incêndio que iniciara na encosta , ainda na noite.

                                    Umbilino ainda tentou, mas não existia rota de fuga. Os homens o cercaram, imediatamente, certos do flagrante delito de crime ambiental. Uma espingarda, um cachorro, um bornal com munição, um tatu debaixo de um braço e um teju no outro. Umbilino percebeu que estava em maus lençóis.

                                    --- Você está preso, cabra ! Não sabe que é proibido caçar na FLONA ?

                                    --- Caçar, tá doido é seu guarda ? Eu não tô caçando, não !

                                    --- E essa espingarda e bornal  é pra quê ? Você foi convocado pra guerra , foi ?

                                    --- Oxe ! Tô levando pra um amigo meu ali no Barreiro Grande, Chico Kelé, ele pediu emprestado disse que alguém jurou ele de morte e me pediu a espingarda e a munição. Tô vendo a hora acontecer um estrupício !

                                    --- E o cachorro, tu usa pra quê, seu engraçadinho ?

                                    --- Cruvina ? Ah , seu guarda, é que eu tô com catarata, ando meio cego, e de manhãzinha é pior. Cruvina é meu guia !

                                    --- E esse Teju, debaixo do braço ? Não me diga que é de estimação !

                                    --- Vixe ! Parece que tu adivinha ! Ele só anda comigo. Vou botar aqui no chão pro senhor ver, quando a gente sair daqui ele vem atrás ! O bichinho é ensinado.

                                    Umbilino colocou o teju no chão e, o bicho solto, embora baleado, entrou na mata em desabalada carreira, jogando folha seca pra tudo quanto é lado.

                                    --- E o tatu ? Também é de estimação ? Quis saber o guarda.

                                    --- O pobrezinho tá morrendo de medo, o senhor não percebeu não ? Eu vinha andando despreocupado e Cruvina, ardiloso, acuou ele. Ele, com medo, correu e pulou nos meus braços o coitadinho !

                                    --- Foi,  é ?  E o teju ensinado , cadê ? Estuma ele ! Quero ver se ele volta !

                                    --- Teju, teju ? Que teju seu guarda ? Eu não vi nenhum teju por aqui não ! E nem adiantava chamar! O bicho é moco, né ?

 

Crato, 16/07/2021

                                   

                                      

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