sexta-feira, 2 de julho de 2021

Donas

 


 

                                    “Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: "Quem foi?..."

Morrer mais completamente ainda,
- Sem deixar sequer esse nome.”

Manuel Bandeira

 

 

                                    Num poema chamado de “Morte Absoluta”, nosso Manuel Bandeira sonhava com  a simples abdução da sua vida e da sua história, após a morte. Fácil conseguir esse intento pois nossa memória durará, de forma mais nítida e vívida , no máximo por duas gerações. No futuro, claro, nossos longínquos descendentes poderão escarafunchar os alfarrábios tentando ter um retrato do que fomos, mas , sem ter convivido conosco, terão, no máximo uma mera caricatura. Tive a rara felicidade de conhecer uma bisavó materna a quem chamávamos de Madrinha Dona. E contaram-me de uma outra paterna a quem, infelizmente, não tive o privilégio privar da sua presença: apenas li seu nome no papel e perguntei, como nosso Bandeira: “Quem foi?”

                            Uma característica unia minhas duas bisas: eram mulheres fortíssimas, de temperamento inflexível , irascíveis, não se curvavam a interesses e quereres de quem quer que fosse. Madrinha Dona, quando enviuvou, viu-se jogada à própria sorte , uma vez que foi esquecida , totalmente, pelo marido, no  testamento. Sabe-se lá porque, ele legou todos os bens à minha avó, filha única. Ela pobre e desamparada casou novamente e recomeçou a vida do primeiro degrau, trabalhando arduamente, com Tio Arthur que era parente próximo do ex e também dela. O novo marido era seu oposto: calmo, tranquilo, doce, queridíssimo de toda a família. A Madrinha era o motor da casa e da fazenda e tinha a todos, inclusive o marido, sob seu cutelo. Conheci-a , ainda menino, nos anos 60, quando íamos para Bocaina nos tempos de moagem e, nos fins de semana, para curtir uma novidade até então inédita: uma piscina que ela construíra perto da casa, acredito que a primeira que tive conhecimento ali no Belmonte. No testamento, bem diverso do que tinham feito com ela, dividiu salomonicamente suas terras com todos os sobrinhos. Ela sobreviveu à minha avó, falecida precocemente. Uma história de Madrinha Dona: Tio Artur era sociável e animado, ao contrário da esposa. Um dia chegou na Bocaina, um amigo dele, Júlio Macedo, irmão do Brigadeiro. Boêmio, trazia um violão e começou a toca e a beber. Era hora do almoço e Madrinha Dona ficou danada com a quebra de protocolo. Os amigos foram botando a conversa em dia, o tempo passando e ela, manteve-se firme, mas revoltada com a demorada visita e com o encompridamento da palestra puxada pelo marido. Quando de tardezinha Júlio se despediu, Artur , por fim, dirigiu-se à sala de jantar para o almoço. Aproximou-se de uma bacia para lavar as mãos e a tia, furiosa, derramou toda a água na cabeça dele que teve apenas uma leve reação: Dona ! Num precisava disso não !

                            Minha outra bisavó só conheci pelas histórias do meu pai e dos meus tios. Morava no Sítio Mocotó em Várzea Alegre e o nome já era quase uma ameaça: Balbina Raulina do Sacramento. Sistemática, acolhia todos que lhe visitavam com muita presteza, mas parecia , segundo me disseram, um policial da S.S. . Nunca beijou um neto. Tinha sempre, próximo de uma cadeira de balanço, onde gostava de se refestelar, uma cumbuca com incontáveis macaúbas maduras que oferecia aos netos que lhe procurassem. Mas nada de beijos e salamaleques. Papai desconfiava que nem mesmo o marido, o velho André, um dia tivera o privilégio  de ganhar um beijo dela, sisuda como era. Essa carícia, aliás, não era distribuída com fartura naquela geração. Pais, filhos, irmãos mantinham uma distância regulamentar, talvez temessem que carícias amofinassem as pessoas. Um dia um morador do Mocotó, compadre deles, chamado Josa, pediu emprestado o crucifixo de Balbina para uma Renovação na casa dele. Ela entregou a relíquia, mas com uma lista enorme de recomendações. Tivesse cuidado que aquilo era um objeto sagrado de muitas e muitas gerações, botasse num lugar iluminado, longe de meninos e sempre com uma vela acesa por perto e, terminado o ato litúrgico, devolvesse imediatamente. No outro dia, conforme combinado, o morador veio devolver o precioso crucifixo. O velho André avistou de longe o compadre na estrada se aproximando. Trazia o crucifixo agarrado na mão direita, sustentado pelas pernas e com o Cristo de cabeça para baixo e ainda suportando o balanço do braço. André percebendo que em pouco iniciaria a terceira guerra mundial gritou pra dentro de casa, cutucando a jaracuçu enrodilhada:

                            --- Balbina ! Vem ver compardre Josa trazendo teu crucifixo do jeitinho que se tira preá de fôjo !

 

Crato, 02/07/2021

 

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