sexta-feira, 9 de julho de 2021

CPI em Matozinho


 


                                                                     J. Flávio Vieira

 

                                               Em Matozinho, em tempos remotos , os prefeitos , de dois partidos principais e únicos que se iam alternando no poder, mantinham uma lisura financeira difícil de se imaginar nos dias de hoje. Uma das razões disso é que sobrenadava uma ética natural naquela geração, onde o mais desgraçado dos homens era tido como o velhaco, o larápio, o bate fofo. As campanhas, por mais ardentes e inflamadas que fossem, esbarravam em fofocas como: “Todo mundo sabe, o Coronel Filismino tem uma amante, na rua do Caneco Amassado”; “Pedro Cangati é fraco que só caldo de andu!” e potocas afins. Espalhar conversa que este ou aquele candidato era ladrão, metido em falcatruas ou que não pagava a gente vivo era motivo para duelo de trabuco no primeiro encontro entre as partes. Talvez , também, um outro motivo para o fastio dos edis por verbas públicas fosse a escassez delas: os municípios viviam praticamente da pouca arrecadação de impostos e havia notícias de que, algumas vezes, alguns tiveram que meter a mão no próprio bolso para saldar as dívidas da cidade.

                                    Ah !  Mas aqueles bons tempos passaram rápido na marcação do velho relógio da casa do Coronel Anfrízio Maia. Os últimos prefeitos de Matozinho perderam, totalmente, esse sobroço de misturar o dinheiro público com o privado.  Outras eras, outros costumes:  os políticos foram alisando a cara e engrossando o lombo e adjetivos como vigarista, gatuno, picareta e treteiro passaram a ser elogios. E os eleitores até sublimavam os pecadilhos: “Ele tá certo ! Tem que tirar o dele, só são quatro anos !” Anos se passavam e quem visitasse Matozinho, com intervalo de dois lustros, a única modificação que perceberia na cidade era uma ou outra casa que tinha ruído. As obras dos prefeitos ficavam sempre para o ano eleitoral e se resumiam a : inauguração de lombada, instalação de um orelhão, pintura de meio fio, uma demão de cal na fachada da prefeitura. Coincidentemente, se a vila ia caindo aos pedaços, os políticos, por outro lado, estranhamente, iam muito bem: casas novas, fazendas compradas, camionetes de duas cabines.

                                    Naquele ano, no entanto, crimes de peculato que eram sussurrados de língua em língua, na praça de Matozinho ,terminaram por ter uma grande repercussão em todo o estado. E as razões do vazamento do escândalo só depois se descobriram. Sinderval Bandalheira, prefeito em exercício da cidade, no seu quarto mandato, era adversário ferrenho do governador. Aquele era um ano eleitoral e o chefe do poder executivo do estado lançou um candidato próprio: Beroaldo Siriema ,  com o intuito de aniquilar, definitivamente, a reeleição de Sinderval. Providenciou, então, uma devassa nas contas do município, na certeza de que, armado o fojo, pegaria rápido um preá graúdo. E, como era de se esperar, a caçada não demorou muito. Os auditores descobriram o golpe que terminou famoso em todo o estado e que foi denominado de “O Escândalo do Vatapá”. Naquele ano específico, de janeiro até junho, Matozinho tinha adquirido, para merenda escolar, cinco mil litros de Azeite de Dendê.

                                    Quando a notícia explodiu na imprensa da capital, a Câmara de Matozinho, cutucada pelos poucos vereadores de oposição, resolveu abrir uma sindicância para esclarecer, definitivamente a denúncia e, claro, de quebra, arrochar os quibas de Sinderval. Antes de chegarem aos denunciados: o Secretário de Educação, Anacleto Analfa,  e o prefeito Bandalheira , os vereadores convocaram o professor de aritmética Cincinato Boca Mole para emitir um relatório preciso sobre o pretenso delito cometido pela administração local. Depois de uns quinze dias, documento pronto, marcou-se reunião da Câmara com  a presença do prefeito e do seu secretário, tendo sido combinado que, após a leitura seriam os dois sabatinados. Cincinato , solene, com a fala pastosa e cuspirenta que terminou por impingir-lhe o apelido de Boca Mole, foi didático e prolixo na sua apresentação:

                                    --- Depois de vasculhar os documentos e notas fiscais mais frias que bunda de anjo, fiz uns cálculos algébricos sobre a utilização dos cinco mil litros de azeite de dendê. Pelas minhas bausas, daria para fazer: cento e trinta latas de querosene de Vatapá, dois mil e quinhentos acarajé, oitocentos e trinta e cinco panela de caruru e , pelos menos, uns onze mil bolinhos de abará. Daria, ainda, para preparar moqueca de pelo menos umas cinco baleias cachalote. Visitei o Grupo Escolar de Matozinho e, conversando, com os vinte alunos da profa. Mundinha Azevedo, eles me informaram que o único peixe que tinham comido, até hoje,  era uma tal de sardinha com cuscuz. Revirei a despensa e encontrei lá umas cinco dúzias de azeite, perguntei às cozinheiras da escola o que era aquilo e elas me disseram que não sabiam direito, achavam que era óleo de freio.

                                    Interrogados, depois, Sinderval e Anacleto desconversaram, não se lembravam de nada e disseram que tinham comprado o dendê, parece,  pelo preço muito acessível, só cinquenta reais o vidrinho. Estavam bebendo uma lapada no Bar do Giba quando o vendedor, que não conheciam,  os procurou e propôs a venda  do azeite.

                                    Cincinato ouviu as perguntas dos vereadores  atentamente e acompanhou as respostas com a Boca mais rígida do que normalmente. Só no final dirigiu-se a Sinderval e Anacleto com uma última interrogação.

                                    --- O prefeito e o Secretário podem me dizer quantos sacos de sabugo, quantas litros de chá de olho de goiaba e quantas moitas de pião roxo vocês encomendaram  junto com  o pedido do azeite de dendê ?

                                    Sinderval e Anacleto confusos responderam quase em uníssono:

                                    --- Sabugo, óleo de goiaba, pião roxo ? Tá doido , é? Pra que encomendar isso, seu Cincinato ?

                                    --- Nada não, amigos ! É que estive pensando aqui: cinco mil litros de azeite de dendê  dá caganeira pra ganhar do Cólera! Nem no Planalto ! Fiofó de menino vai funcionar aqui de fazer bico como beiço de chumbeiro e tocar frevo como o trombone do maestro Chico Baião nas retretas do sábado de aleluia!

 

Crato, 09/07/2021

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