quinta-feira, 29 de junho de 2017

A Cólera que espuma



                                                                                                                             J. Flávio Vieira

                                               Raimundo Correia, um dos mais inspirados poetas  brasileiros, tem um soneto que reputo como um dos mais bonitos da língua portuguesa. Chama-se “Mal Secreto” e diz na suas duas quadras:
Se a cólera que espuma, a dor que mora
N’alma, e destrói cada ilusão que nasce,
Tudo o que punge, tudo o que devora
O coração, no rosto se estampasse;

Se se pudesse o espírito que chora
Ver através da máscara da face,
Quanta gente, talvez, que inveja agora
Nos causa, então piedade nos causasse!
                            Lembrei esse poema estes dias, quando o país atravessa uma fase extremamente sombria e careta.   Acredita-se que foi há seis mil anos  que os egípcios introduziram um novo método de identificar criminosos: tatuavam-nos  para evitar a fuga. Este costume expandiu-se para o Império Romano e,  no Século XIX, os americanos e britânicos procediam da mesma maneira com seus desertores afim de  facilitar o reconhecimento. Na II Grande Guerra, os nazistas utilizaram a moda milenar, marcando e numerando  os judeus , como se ferrassem um rebanho de gado. Este hábito, assim, sempre esteve intimamente associado ao que há de mais espúrio e deplorável na natureza humana.
                                   No início deste mês, dois tatuadores , em São Bernardo do Campo, Maicon Carvalho dos Reis, e seu vizinho, Ronildo Moreira de Araújo, foram presos em flagrante pela polícia civil, por um crime absolutamente insólito. Eles tatuaram um jovem de 17 anos, na testa, com os dizeres : “Eu sou ladrão e vacilão”. Os tatuadores acusaram o menor de roubo e, simplesmente, julgaram e estabeleceram  a pena. Como juízes reencarnados,  carregavam consigo , ao menos, seis mil anos de tradição neste tipo de tortura.  Não bastasse isso, cientes de que tinham sido absolutamente justos e não haviam cometido nenhum crime, divulgaram o ato, com fotos e detalhes,  sentindo-se heróis destemidos e audazes, na Ilíada dos novos tempos : As Redes Sociais.
                                   O jovem tatuado é usuário de drogas, o caso repercutiu mundo afora e os novos Taliões terminaram presos, respondendo a crime de tortura que , em caso de condenação,  pode resultar em pena de dois a oito anos de cadeia. Por incrível que possa parecer, muitos o comentários  na mídia, pareceram francamente  a favor da atitude tomada pelos tatuadores: eles têm seguidores ferrenhos dos seus métodos. Não nos causa espécie esta constatação quando vemos, todo santo dia, pessoas, das mais diversas classes sociais, defendendo a Tortura, a Pena de Morte, o Armamento da população Civil,  o Extermínio dos Índios e  Posseiros, a Ditadura, Corruptos e Corruptores. Este mesmo grupo, dizendo-se, em geral, religiosos e cristãos ( pasmem os pouco indignados de plantão !), posta-se francamente contra  os defensores dos Direitos Humanos  e das Causas Ambientais. Avançamos, imensamente, nos últimos séculos na área tecnológica, mas humanamente, mal descemos das árvores.
                                   Imaginem a barbárie, se ,de repente, todos passarem a se arvorar de juízes e policiais! Sei que essa ânsia salta fácil do cidadão comum quando percebe o total esfacelamento da justiça no país. Em quem diabos mais se pode confiar se até muitos integrantes da Suprema Corte do Brasil mostram-se parciais, volúveis, partidários e intensamente ligados aos ditames do Capital ? A pena egípcia executada contra o ladrão de bicicleta de São Bernardo, quatro milênios depois,  é muito pior do que a prisão. É uma penalidade eterna, impossível de reabilitação. O apenado carregará, para sempre, a pecha , no rosto, mesmo que um dia resolva mudar de vida, arranjar emprego,  seguir carreira religiosa. Não muito diferente da roupa amarela que os judeus eram obrigados a usar em tempos de Inquisição, ou da numerologia   nazista.
                                   O mais terrível em tudo isso é que os defensores do Tatoo, da Pena de Morte, do “Bandido bom é Bandido morto”, são extremamente seletivos na sua escolha. Os ladrões de bicicleta devem ir para o cadafalso e para os salões de tatuagem, mas os donos dos helicópteros de Cocaína, os carregadores de mala do Caixa 2, os estelionatários da alta política brasileira, estes não ! Precisam de justiça! São figuras acima de qualquer suspeita! Manda para o Supremo e pede para a Roleta viciada escolher o Relator! Pede vistas! Dá Habeas Corpus! Envia para prisão domiciliar porque precisam, coitadinhos, cuidar dos filhinhos deles !  E se for grandão mesmo, manda que ele escolha os juízes que o vão julgar e os promotores que o vão acusar!
                                   Já que, agora, voltamos aos tempos dos faraós, sabendo que não tem ninguém perfeito nesse mundo, eu pergunto aos defensores da tatuagem: no seu caso, amigo, qual seu pior  defeito ?  Qual você escolheria para que tatuassem na sua testa?  


Crato, 29 de Junho de 2017.

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