sexta-feira, 31 de julho de 2009

M.A.S.A.


Depois da primeira tentativa de chegar à lua, Juvenal fogueteiro literalmente criou asa. Não tinha conseguido o feito porque não pensara naquele pequeno detalhe: mandara o fogo em dia de lua minguante e o artefato desceu na pontinha da lua. Terminou escorregando e se lascando no chão. Depois do pouso da Apolo XI, no Mar da Tranquilidade, Juvenal ficou meio capiongo. Matozinho tinha perdido a corrida espacial, por um detalhe velho muito do besta! Ao invés de baixar a crista, o fogueteiro criou sustança nas canelas. Resolveu construir um foguetão e mandar para lua, agora num dia mais propício. Nessa data que corre lobisomem , ela fica mais perto da terra e o alvo, também, é mais fácil de acertar. Procurou o Coronel Serapião Garrido, militar reformado, e contou das suas pretensões. O coronel animou-se com a idéia: Matozinho ia passar quinau em outras cidades que se diziam muito mais desenvolvidas. Imaginou, por outro lado, que o feito lustraria seus brios de militar reformado e que nunca tinha disparado um tiro sequer em campo de batalha. Serapião impôs prontamente uma regra de difícil exeqüibilidade para o sucesso da missão:
--- Aceito o desafio de chefiar a missão, seu Juvenal, agora sob uma condição: o vôo vai ter que ser tripulado. Não adianta mandar só o foguete que ninguém vai acreditar que o bicho chegou na lua. Tem que ter uma prova! Não é possível que não se encontre um cabra macho para enfrentar o desafio aqui em Matozinho! Se eu fosse mais novo, já estava alistado!
Juvenal concordou com Garrido. Partiu para casa e começou a refazer os cálculos. Agora , com os novos planos, mudava totalmente a logística. O foguete tinha que ir e voltar com o astronauta e as provas do pouso lunar. Como conseguir o intento? Além de tudo, haveria necessidade de roupas e equipamentos especiais . Juvenal conseguiu um gibão, uma perneira , o peitoral e as botas de Antonio de Lausemiro um famoso vaqueiro de Bertioga. O velho Janjão tinha um motozão Índia e aceitou emprestar seu capacete para uma causa tão nobre. Cálculos feitos, projeto pronto, Juvenal seguiu para prefeitura e lá conseguiu convencer o prefeito Sindé Bandeira da importância do feito para a história de Matozinho. Sindé não mediu esforços:
--- Este é um dia histórico, Juvenal, para Matozinho e para o Brasil. Vamos entrar, definitivamente, na era espacial. Vou fundar a MASA – Matozinho Aeronautics and Space Administration. A prefeitura lhe vai dar todos os insumos necessários. Pode ocupar a área que era destinada ao Matadouro Público e que nunca foi terminado.
De posse da carta branca municipal, faltava a Juvenal apenas o detalhe mais crítico. O tripulante. Por mais que procurassem a coisa não estava fácil. A prefeitura prometeu recompensa, mas ninguém se atrevia a pegar no rabo do foguete. Mais uma vez Serapião, presidente nomeado da MASA, foi quem resolveu a pendência. Lembrou de um astronauta em potencial que dificilmente se negaria a encabeçar a missão: Tan-Tan. Ele era um doidinho que vivia nas ruas de Matozinho e que não tinha medo de nada. Montava em burro brabo, comia gafanhoto vivo , pegava cobra com a mão. Tan-Tan, convidado, aceitou de pronto a missão, exigiu como recompensa apenas um queijo de manteiga e uma lata de doce de leite.
A construção do foguete de Juvenal durou mais de três meses. Cortaram um imenso pé de braúna, esvaziaram o miolo do bicho e pegaram a socar pólvora. Gastaram mais de dez quilos só no foguete de ida. Pregado a ele, ao contrário, rabo com cabeça, ia o foguete de volta., Tan-Tan , após o passeio lunar, foi orientado a acender o bicho e voltar para terra de novo, com a prova da missão realizada: uma peça do arreio do cavalo de São Jorge !
No dia aprazado, um sábado de Lua Cheia, estrategicamente escolhido, toda Matozinho se espremia defronte do Matadouro Municipal que abrigava os dois foguetões amarrados um ao outro com cordas de agave e apontados para o firmamento. No meio, tinham ajustado um esqueleto de bicicleta, justamente onde Tan-Tan se acomodou , devidamente paramentado. Depois, os discursos de praxe:
--- Este é um pequeno vôo para Tan-Tan, mas um grande salto para Matozinho!
Já anoitecendo, quando a lua começou a vazar sangrando no horizonte, apontaram o foguete na direção do planeta e Juvenal acendeu o estopim. O foguete desapareceu numa imensa nuvem de fumaça, soltando fogo para tudo quanto é lado. Subiu fazendo pirueta, parecendo rabo de égua. Ouviam-se , em meio à fumaceira, os gritos e gargalhadas de Tan-Tan. O povo , temendo uma explosão, saiu correndo desesperado. Pelo chão ficou um sem número de objetos.
Passados os dias, Tan-Tan não retornou e não mandou notícia. Um mês depois , Juvenal e Garrido entraram vexados na prefeitura. Finalmente haviam tido os primeiros sinais de Tan-Tan na lua. Um foguete velho todo queimado havia sido encontrado por um caçador, na Serra da Jurumenha, junto com um chaveiro cheio de chaves. Juvenal explicou:
--- O foguete voltou. Achamos que Tan-Tan , aluado como era, se deslumbrou com a lua e resolveu ficar por lá. Mandou o foguete de volta apenas com a prova da sua chegada nos solo lunar!
O prefeito Sindé não entendeu:
--- Mas como, ele mandou algum arreio do cavalo de São Jorge ?
--- Não, mas mandou esse chaveiro cheio de chaves...
Sindé ,confuso, pergunta:
--- Mas o que é que diabos tem a ver chave com São Jorge, pelo amor de Deus?
Juvenal explicou:
--- Cavalo, que cavalo! O homem ta moderno,meu Senhor, foi do tempo de cavalo, São Jorge agora usa é Moto ! Ói as chaves dela aqui que Tan-Tan mandou!


31/07/09

sexta-feira, 24 de julho de 2009

O mar da intranquilidade

Os mais velhos ainda lembram. Teria sido aí pelos meados de 1969. Transformações importantes começaram a acontecer em Matozinho. A vilazinha, provinciana, ganhou ares modernosos. O certo é que tudo, a partir dali, parece ter mudado do aluá à Champanhe. Alguns atribuíram a nova era à chegada, coincidente, do primeiro gerador de energia elétrica, na cidade. Instalado na subida da Serra da Jurumenha, a Casa de Força, como passou a ser chamada, iluminava as ruas, com uma luzinha bruxuleante, do anoitecer até às vinte e uma horas. Depois disso, após três piscadelas seguidas de aviso, desligavam-se os motores até a noite seguinte. O gerador era puxado por uma imensa caldeira a vapor, dessas que depois se passaram a usar nos engenhos de rapadura da região. Os postes cortavam as ruas, arrastando fios de onde, periodicamente, brotavam luzes elétricas. Com exceção da casa do prefeito Sindé Bandeira, nenhuma outra residência, de início , teve o privilégio de se ver iluminada. O gerador mal conseguia levar energia às gambiarras oficiais. Eram freqüentes os black-outs , o povo já apelidara até a Casa de Força de : “o Vagalume de Sindé”.
Ninguém nunca imaginou, por outro lado, que aquela luz de pirilampo traria tantas mudanças de hábito no povo de Matozinho. As rodinhas de praça se prolongaram até mais tarde. Os namoros arrochados , agora sob holofotes, tiveram que afrouxar mais. Os bares e as boticas ampliaram seu horário de atendimento, menos por motivos comerciais e mais por razões puramente fofocais. As cadeiras agora , no anoitecer, saltavam das casas para as calçadas com muito mais ímpeto. Os seres noctívagos da Vila, acostumados a trabalhar sob a cumplicidade das sombras, começaram a ter que redobrar os cuidados e inventar caminhos novos, longe do foco denunciador dos postes.
A mais importante reviravolta em Matozinho, a princípio, não ficou bem visível aos olhos de seu povo : o rebaixamento da Lua a um astro menor . É isso mesmo, amigos, pouco a pouco , sem que ao menos se apercebesse, a lua se foi tornando mais e mais distante da Vila. Ofuscados pelas luzes dos postes, os matozenses perderam as fases do nosso satélite natural e a alternância do seu brilho. Ela deixou de ser a lua dos amantes. As amadas de Matozinho já não mais lhe faziam inveja e seus olhos já não carregavam o resplandecer dos raios lunares. Sem falar que , de repente, desapareceram os sacis, os lobisomens, os vampiros, os bichos papões, as almas penadas. Como uma catástrofe dessas pôde acontecer logo com Matozinho ?
Apesar da forte ligação da chegada da “Casa de Força” com esta comutação nos costumes, não havia consenso sobre a sua real importância . Uma outra ala lembrava um outro fato histórico. Neste mesmo período, não foi quando o homem pisou na lua pela primeira vez ? Desvirginada, ela teria perdido seu encanto, era agora uma fêmea como outra qualquer. Perdera o frescor das ninfetas, aquela sensualidade que brota da busca do aparentemente intocado e inatingível. Esta teoria era amplamente divulgada por Antonio das Calabaças, homem letrado, que lia jornais da capital e depois pousava de cientista, explicando como a Apolo XI, com seus astronautas desceram no “Mar da Tranqüilidade” e ficaram passeando na lua, “devagarzinho como quem toma chegada prá matar Nambu”.
Contrário veementemente a esta teoria estapafúrdia colocava-se , sempre, o Cel Serapião Garrido. Dizia não agüentar estes cabras que mentem mais do que cachorro de preá:
-- Onde já se viu um bando de mentiroso desses ! Se Deus quisesse que a gente fosse prá lua , tinha botado uma escadinha até lá, seus bando de incréu ! E me diga aí , quem diabos era doido de baixar lá pra ter que enfrentar o Dragão de São Jorge ? Eu só quero que um mentiroso desses venha contar essas potocas aqui na minha frente, preu lhe dar um corretivo com meu facão rabo de galo !
Jojó Fubuia, entre um gole e outro, concordava com o Coronel. Aquilo era impossível :
--- Meus amigos, isso de americano ter chegado na lua é pura mentira. Ora, se nem Juvenal Fogueteiro, que tem mais de trinta anos que faz fogo, chuvinha e pichite, conseguiu ! No ano passado, andou até perto, fez um foguetão com mais de cem polvarilho cheiinho de pólvora. Tocou fogo no rabo do bicho que se danou nos ares, em busca da lua. Pois num é que ele disse que o foguetão chegou lá, só que ele calculou mal, e o bicho quando baixou por lá era em lua minguante e o foguete escorregou na beradeinha da lua e lascou-se no chão. Se ele, acostumado a fazer rasga-lata num conseguiu, quanto mais americano!

24/07/09

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Os Espíritos de porco e os Porcos de espírito


Bem , amigos, tinha tentado , nas últimas semanas, correr de política como o cão da cruz. É que é difícil revolver uma fossa séptica, sem risco de se calabrear todinho. Mas... e tem lá jeito ? Recentemente surgiu a polêmica da mudança do Parque de Exposição. A cidade se dividiu entre os que acataram a troca do parque, que podem ser chamados de vanguardistas e os que são terminantemente contra a permuta, imputados já de saudosistas. Reacendeu até uma antiga picuinha entre Crato e Juazeiro que parecia vir em banho maria há muito tempo. Eximi-me de comentar o assunto por muitos dias e deixei a peteca correr de mão em mão. Entendi a polêmica como salutar e os contendores, de lado a lado, do mais fino jaez. Semana passada, na inauguração da Expocrato, no entanto, o nosso governador , sem ao menos saber da minha existência, -- no que, convenhamos, não perde nada -- , me lançou no olho do furacão. Entre tantas colocações de defesa da permuta , ele alcunhou os saudosistas de espíritos de porco. Não bastasse isso, ameaçou o município de Crato com a possibilidade de perda dos R$ 25.000.000,00 destinados à construção da nova sede, se a população decidisse pelo contrário.
Sabemos que político é assim mesmo : late nos primeiros anos de gestão e mia no período pré-eleitoral. Embora não tenha votado no nosso governador, o respeito pelo cargo que representa. Acredito, porém, que ele não foi feliz em algumas de suas posições. Muitos dos que se colocam contrários à permuta, não podem ser alcunhados de espíritos de porco, são cidadãos da mais alta qualificação . Podem ter posições passadistas, até retrógradas para alguns, mas merecem ser respeitados , (exatamente como respeito o mais importante administrador do meu estado) : pelo que representam, pela história, pela dedicação de toda uma vida à defesa do Crato. Sei que assim se posicionaram simplesmente porque têm mais cabelos brancos e mais lama nos sapatos. Já viram , por inúmeras vezes, em meio ao canto mavioso das sereias, o Crato ser passado para trás, vilipendiado, dilapidado e têm lá suas razões de manter sempre uma purga detrás da orelha. Agora mesmo, vemos o Hospital Regional de Juazeiro em franca construção, a CEASA de Barbalha iniciando e nem previsão temos do nosso prometido Centro de Convenções.
Gostaria, ainda , de lembrar um outro detalhe. A notícia inicialmente auspiciosa da mudança do parque pegou a população de surpresa. Em nenhum momento sondaram-se os anseios dos cratenses. A cidade desejaria a mudança ? E , antes de tudo, esta mudança era prioritária ? Pareceu que a decisão estava sendo jogada goela abaixo, de forma centralizada e a cidade, com toda uma história de lutas libertárias, nunca sorveu estes purgantes sem golfar. Agora, que somos ameaçados de perder os recursos, caso não aceitemos a prescrição, pergunto : Se a comunidade decidir que a mudança não é prioritária, porque simplesmente não acatar a suprema decisão do povo e empregar esta verba em áreas mais necessárias ? Por que tudo ou nada ? E mais, divulgou-se que a área atual do parque seria destinada ao Campus da URCA, mas quando? Com que projeto? Com que verba a se aplicar na ampla reforma ? Sabemos que a URCA anda com sérias dificuldades de custeio dos mais simples insumos.
Pessoalmente, quebradas todas as arestas existentes, nada tenho contra a transferência para um outro lugar mais apropriado. Entendo perfeitamente o crescimento da cidade nos últimos cinqüenta anos e os impasses que batem à porta da Engenharia Urbana. Espero, no entanto, que sejam respeitadas as opiniões em contrário e, imagino, devemos curvar-nos à vontade da maioria. Acredito que mais importante do que a questão simplória da localização do Parque , é a da utilidade prática da área que lhe é destinada. Os R$ 25.000.000,00 serão empregados num parque que funcionará apenas sete dias por ano ? Depois disso passamos a chave e esperamos 365 dias ? A maior festa do Cariri continuará a ignorar totalmente os artistas regionais ? Manteremos um palco caríssimo apenas para as Bandas de Forró Eletrônico? Por que não se democratiza a Festa maior do Cariri, proporcionando shows de qualidade, de portão aberto, como o Juá-Forró, como O Festival de Inverno de Garanhuns ? Não é função do estado fazer política cultural ? Ou esta é a política cultural do estado ? Mais nocivos talvez que os espíritos de porco são os porcos de espírito.

17/07/09

sexta-feira, 10 de julho de 2009

"Thriller" em Matozinho

Em Serrinha, enterro sempre acontecia às quatro da tarde. Não interessava a hora que o indigitado tinha partido desta para o outro lado da ponte. A razão deste horário preferencial era simples. Todos finados eram sepultados no Cemitério N. S. da Alegria, em Matozinho que distava dali mais de quatro léguas. O caminho , longo e tortuoso, incluía ainda uma escalada pela Serra da Jurumenha. Destas íngremes de lagartixa cair de costas. É preciso ainda levar em conta que velório por aquelas bandas faz-se uma festa, uma espécie de Axé Velô , de Defuntofolia ! Servem-se caldos , cafezinhos, bolachas durante todo tempo, e rola uma cana danada pra tudo quanto é lado. Sem esses combustíveis ninguém se atreve a enfrentar o Rali. Por isso mesmo, independentemente da hora da passagem desta para melhor, o séquito tinha que sair no máximo até às nove horas de Serrinha. Caso contrário, corria-se o risco de dormir com o falecido no meio das brenhas ou de levá-lo à cova sem bênção de padre.
Havia relatos históricos de muitas atropelos nestes enterros. Casos de sepultamento no pé da serra, em época de inverno e intransitabilidade até Matozinho. Sem falar nos freqüentes casos de almas penadas , no meio da mata, presenciados por caçadores . Bem certo que a credibilidade deles não era lá essas coisas, mas mesmo assim -- pelo sim, pelo não -- neguinho se tremia mais que parkinsoniano com cesão, em dia de frio, só em pensar em varar aquelas veredas madrugada adentro. A mais famosa destas peripécias teria acontecido com o velho “Nicolau Canela Dura” . O homem era um mestre de chocalho em Serrinha. Conhecia todas as nuances , todos mistérios da sua arte. Fabricava-os com um esmero sem par, cada uma com sua sonoridade própria. Vaqueiro de longe assuntava e conhecia rês por rês só pelo sonido do badalo à distância.
Pois um belo dia, Nicolau caiu de cama e não mais levantou. Dado por morto à noitinha, depois das incelenças e rituais de praxe, foi , pela manhã, transportado por um grande séquito para a inumação em Matozinho. Pois num é que justamente no meio da subida mais empenada da serra, Canela Dura resolveu despertar do seu ataque de catalepsia ? Quando o homem sentou no caixão e perguntou : “ E o que diabos é isso, meu povo, tão ficando besta ?” -- aconteceu a debandada. Foram mais de trinta feridos, uns dois que morreram de ataque do coração , sem falar em nove cabras que desapareceram mata a dentro e que até ontem não tinham retornado para saber o restante da conversa. Quando o velho Nicolau morreu de verdade, anos depois, ninguém mais quis seguir o enterro, com medo de um bis de ressureição. Ele foi sepultado ali mesmo, no pezinho da serra e até hoje há relatos de badaladas de chocalho quebrando o silêncio das noite jurumenhas.
Assim, quando chegou, há alguns dias, a notícia do falecimento de Michael Jackson em Serrinha, ninguém se surpreendeu muito. Antonino Mata-Mata, dono da “Botica Infusório de Ouro” já havia vaticinado :
---“Esse cabra, endoidou ! Já gastou mais de três quartas de cal e umas dez sacas de goma querendo ficar branco! Botou pra andar em carrocel , tá meio despombalizado! Ele num vai longe, não ! Depois, canta fazendo uma munganga danada ,canta engrolado com quem teve ramo, parece os Aniceto na cantiga das abelhas! Aquilo só pode ser dança de São Guido, meu senhor ! Olhe prá cara dele, só tá faltando botar os algodãozim nas ventas!
Depois da praga de Antonino , ninguém se surpreendeu com o passamento do homem. Todo mundo ficou horrorizado foi com o tempo que levaram prá enterrá-lo. Comparavam com a urgência dos enterros no Cemitério N. S. da Alegria e não conseguiam compreender. Doze dias e nada ? Como é que pode ? Esse povo das estranja é tudo doido ! Não se conformaram, também, quando se falou em cremação. De início não conseguiram entender que diabos era aquilo. Iam passar mais creme na cara do defunto, era isso ? Ele que, vivo, já parecia um bolo confeitado ? Quando Nezinho Jurubeba, presidente da TFP local, desvendou o mistério, a coisa piorou. Vão fazer churrasco do homem ? Vão encoivarar o indigitado ? Vão sapecar , como D. Umbilina faz com os frangos prá arrancar os canhão? Ave-Maria , te esconjuro bando de incréu ! O povo só se conformou quando Juvenal Pé-de- Página , dono do hebdomadário local, profundo conhecedor da alma estadunidense , os tranqüilizou:
--- Não , meu povo, eles não vão cremar o homem e jogar as cinzas por aí, podem ficar tranqüilos...
E perorou com uma justificativa que pareceu inquestionável :
--- Americano só pensa em lucro ! Se eles cremarem o homem e jogarem as cinzas no mar, acabou o show... e aí como é que vão poder continuar a cobrar o ingresso ? Vai ter um lindo túmulo, sim senhor, pode esperar !
Já haviam transcorrido dez dias da morte de Michael, quando Jojó Fubuia, passando melado na praça, parou um pouco diante da televisão pública. Só com dificuldade entendeu que o astro , naquelas alturas, ainda não havia sido enterrado. Fitou a imagem do caixão banhado de ouro e fez a mais abalizada consideração sobre o assunto :
--- Num é vantagem, não ! É melhor uma cama de vara do que um caixão de ouro! Menino, se má pregunto, ainda é aquele doidim que tá enriba do chão ? E o urubu ainda não baixou ? Salgaram o homem, foi ? Charqueram o caba?

10/07/09

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Balão Cativo


"Dentro de mim mora um grito.
De noite, ele sai com suas garras, à caça
De algo para amar."
(Sylvia Plath)

Noite de São João. Fogos ribombavam ao redor das fogueiras. Meninos hipnotizados com o brilho das chuvinhas, mal perceberam quando um balão cruzou os céus e , pouco a pouco, se foi distanciando das dimensões terrestres. À medida que, impulsionado pelo vento, ia subindo, mais e mais se tornava imperceptível e inatingível. Sem lastro que o amarrasse à terra, ao sabor do vento, o balãozinho se foi perdendo de vista, até ser consumido pela própria chama íntima que lhe servia de motor. Cá embaixo, a festa continuou com o mesmo estardalhaço. A ninguém interessava a pequena e distante tragédia do balãozinho. Seu trajeto significou apenas um brilho a mais no firmamento, numa noite grávida de tantos fulgores e cintilações.
Michael Jackson , um dos mais completos artistas destes últimos séculos, fez um trajeto curto e fulgurante como nosso balãozinho junino. Vida exígua, estrada cintilante, ergueu aos céus o seu balão atormentado. Sequer se deu conta que a luminância que dele irradiava , se intensa e ofuscante, era apenas a conseqüência das chamas que consumiam sua frágil estrutura. Michael sempre fora um balão sem lastro. Precoce gênio do pop, a mídia , como uma forte lufada de vento, o tomou de assalto ainda aos cinco anos. Levado de supetão às alturas, o ar lhe foi ficando cada vez mais rarefeito. É que, em troca, haviam lhe roubado o menino que nunca pôde ser. Bilionário, famoso, nada lhe faltava : apenas este lastro fundamental. Com ventos tão oblíquos , carregou seu dirigível acorrentado , à deriva. Michael procurou , durante toda a existência, desesperadamente, aquela criança que lhe foi roubada: nas mulheres em quem buscou o regaço materno; em filhos que não gerou; no parque que construiu para si mesmo, o Neverland , sintomaticamente chamado de “Terra do Nunca” ; no pai que nunca teve.
A mesma mídia que ajudou a criar o mito mais popular da história da música e que lucrou imensamente com ele; encheu as burras , novamente, na sua derrocada , explorando escândalos midáticos de toda espécie e, agora, com seu desaparecimento, empanturra mais uma vez os cofres : Michael volta a vender discos como nunca. Tudo é festa. O velório do Rei do Pop já se arrasta por mais de uma semana, atapetando todos os noticiários de fofocas e futricas. Com exceção de algumas de crocodilo, de alguns fãs, não há lágrimas derramadas. Nem da esposa, nem dos amigos, nem dos irmãos. O pai, então, aparentemente, só se preocupa com o testamento. A mídia toda aguarda , ansiosa, o resultado da necropsia. Todos sabem que Michael morreu de um acidente com um dos inúmeros anestésicos que utilizava continuamente para aplacar sua dor. Qual ? A quem interessa? O astro, na realidade, padeceu em conseqüência da dor e não do analgésico, a terrível dor de lhe terem amputado sem qualquer analgesia, o menino que devia ter brincado de esconde-esconde nas ruas, com outras crianças, chupado o dedo, jogado bola e soltado pipa. Sem esse menino seu balão , voou à deriva, numa enganadora liberdade, mas nunca deixou de ser um reles balão cativo: fama, lama, chama.
03/07/09