sexta-feira, 24 de julho de 2009

O mar da intranquilidade

Os mais velhos ainda lembram. Teria sido aí pelos meados de 1969. Transformações importantes começaram a acontecer em Matozinho. A vilazinha, provinciana, ganhou ares modernosos. O certo é que tudo, a partir dali, parece ter mudado do aluá à Champanhe. Alguns atribuíram a nova era à chegada, coincidente, do primeiro gerador de energia elétrica, na cidade. Instalado na subida da Serra da Jurumenha, a Casa de Força, como passou a ser chamada, iluminava as ruas, com uma luzinha bruxuleante, do anoitecer até às vinte e uma horas. Depois disso, após três piscadelas seguidas de aviso, desligavam-se os motores até a noite seguinte. O gerador era puxado por uma imensa caldeira a vapor, dessas que depois se passaram a usar nos engenhos de rapadura da região. Os postes cortavam as ruas, arrastando fios de onde, periodicamente, brotavam luzes elétricas. Com exceção da casa do prefeito Sindé Bandeira, nenhuma outra residência, de início , teve o privilégio de se ver iluminada. O gerador mal conseguia levar energia às gambiarras oficiais. Eram freqüentes os black-outs , o povo já apelidara até a Casa de Força de : “o Vagalume de Sindé”.
Ninguém nunca imaginou, por outro lado, que aquela luz de pirilampo traria tantas mudanças de hábito no povo de Matozinho. As rodinhas de praça se prolongaram até mais tarde. Os namoros arrochados , agora sob holofotes, tiveram que afrouxar mais. Os bares e as boticas ampliaram seu horário de atendimento, menos por motivos comerciais e mais por razões puramente fofocais. As cadeiras agora , no anoitecer, saltavam das casas para as calçadas com muito mais ímpeto. Os seres noctívagos da Vila, acostumados a trabalhar sob a cumplicidade das sombras, começaram a ter que redobrar os cuidados e inventar caminhos novos, longe do foco denunciador dos postes.
A mais importante reviravolta em Matozinho, a princípio, não ficou bem visível aos olhos de seu povo : o rebaixamento da Lua a um astro menor . É isso mesmo, amigos, pouco a pouco , sem que ao menos se apercebesse, a lua se foi tornando mais e mais distante da Vila. Ofuscados pelas luzes dos postes, os matozenses perderam as fases do nosso satélite natural e a alternância do seu brilho. Ela deixou de ser a lua dos amantes. As amadas de Matozinho já não mais lhe faziam inveja e seus olhos já não carregavam o resplandecer dos raios lunares. Sem falar que , de repente, desapareceram os sacis, os lobisomens, os vampiros, os bichos papões, as almas penadas. Como uma catástrofe dessas pôde acontecer logo com Matozinho ?
Apesar da forte ligação da chegada da “Casa de Força” com esta comutação nos costumes, não havia consenso sobre a sua real importância . Uma outra ala lembrava um outro fato histórico. Neste mesmo período, não foi quando o homem pisou na lua pela primeira vez ? Desvirginada, ela teria perdido seu encanto, era agora uma fêmea como outra qualquer. Perdera o frescor das ninfetas, aquela sensualidade que brota da busca do aparentemente intocado e inatingível. Esta teoria era amplamente divulgada por Antonio das Calabaças, homem letrado, que lia jornais da capital e depois pousava de cientista, explicando como a Apolo XI, com seus astronautas desceram no “Mar da Tranqüilidade” e ficaram passeando na lua, “devagarzinho como quem toma chegada prá matar Nambu”.
Contrário veementemente a esta teoria estapafúrdia colocava-se , sempre, o Cel Serapião Garrido. Dizia não agüentar estes cabras que mentem mais do que cachorro de preá:
-- Onde já se viu um bando de mentiroso desses ! Se Deus quisesse que a gente fosse prá lua , tinha botado uma escadinha até lá, seus bando de incréu ! E me diga aí , quem diabos era doido de baixar lá pra ter que enfrentar o Dragão de São Jorge ? Eu só quero que um mentiroso desses venha contar essas potocas aqui na minha frente, preu lhe dar um corretivo com meu facão rabo de galo !
Jojó Fubuia, entre um gole e outro, concordava com o Coronel. Aquilo era impossível :
--- Meus amigos, isso de americano ter chegado na lua é pura mentira. Ora, se nem Juvenal Fogueteiro, que tem mais de trinta anos que faz fogo, chuvinha e pichite, conseguiu ! No ano passado, andou até perto, fez um foguetão com mais de cem polvarilho cheiinho de pólvora. Tocou fogo no rabo do bicho que se danou nos ares, em busca da lua. Pois num é que ele disse que o foguetão chegou lá, só que ele calculou mal, e o bicho quando baixou por lá era em lua minguante e o foguete escorregou na beradeinha da lua e lascou-se no chão. Se ele, acostumado a fazer rasga-lata num conseguiu, quanto mais americano!

24/07/09

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