domingo, 12 de março de 2023

Serenata ao latir da lua

 

Era um tempo em que a lua passeava altaneira nos céus, ainda sem a concorrência ofuscante das lâmpadas de mercúrio. Com diferentes nuances e lumens, era possível, inclusive,  saber se  minguava, crescia,  se  nova ou cheia. Depois ela, misteriosa,  se recolheu aos livros de Ciências e se torna visível apenas em alguns eclipses. À noite, ainda sem os postes e as lâmpadas,  revelavam-se    figuras espectrais típicas das sombras: os fantasmas, as almas penadas, os sacis, o lobisomem, os amantes furtivos. Banhados pelo manto do anonimato, como num teatro chinês, personagens dissimulados moviam-se  em meio à treva, como se atuassem de cortina fechada, na face oculta da lua. Recendia um ar de romantismo de meio de penumbra , uma atmosfera que carecia de uma trilha sonora, como a beira-mar não pode prescindir do marulho das ondas.

                        Talvez a relevância da noite se acentuasse em tempos de dias claros como aqueles, onde , com sol aberto, as pessoas necessitassem do uso continuado de suas máscaras para a convivência  nos diversos palcos da vida.  As paqueras aconteciam remotamente, ainda sem os artifícios eletrônicos modernosos: um bilhete, uma cartinha , encaminhados por um pombo-correio cúmplice,  um piscar de olhos, um riso, um muxoxo...

                        Na cidadezinha do interior, as meninas da redondeza estudavam no Colégio Imaculada Conceição, vigiadas por irmãs de caridade que funcionavam, com faro de cão de aeroporto, como câmeras de segurança. Os rapazes agitavam-se com a simples visão distante das  mocinhas, com a libido agitada como Sonrisal na água, pela reclusão involuntária no Colégio. Hormônios vazando pela válvula, como panela de pressão, rapazes e moças precisavam arranjar brechas na fiscalização rigorosa na alfândega moral das freiras. Claro que cobradas, impiedosamente, pelos pais das meninas que colocavam aquele barril de pólvora nas mãos das religiosas, sob sua inteira responsabilidade,  com tantos e tantas faíscas riscando ao redor.

                        Menandro, um adolescente de dezoito anos, completamente em fase de mordedura de cachorro doido, paquerava Afonsina , uma interna do Colégio. Morena de olhos claros, cabelo ondulado, corpo avioloncelado, pernas roliças, como mãos de pilão,  e dois airbags desses que protegem até de acidente aéreo. Nunca sequer tinham se tocado,  apenas contatos imediatos do primeiro grau: na missa, no desfile de 7 de setembro, cubando dos muros do colégio para as janelas da sala de aula.

                        O apaixonado cantava bem, tinha voz de barítono, anasalada,  imitava Nélson Gonçalves e  tocava um violão à Dilermano . Gostava de música de seresta. Com amigos formaram até uma bandinha que se apresentava nas redondezas em fins de semana. Numa véspera de feriado, junto com os colegas,  Menandro entornou um litro de Rum Montilla, enquanto tocavam e cantavam na bodega de Gesuíno. Já melados como mão de sapateiro, decidiram, já alta hora da noite que, em cidades do interior, começa por volta das 21, decidiram fazer uma serenata para Afonsina e outras meninas paqueradas por outros membros da trupe musical. Partiram para o Colégio, Menandro à frente, com seu violão,  e mais três componentes : um panderista, um flautista e um bandolinista.

                        Chegando nos muros do Imaculada Conceição, os quatro músicos já mais altos que a lua no céu, perceberam que o dormitório das meninas ficava afastado demais e, principalmente, quanto à voz de Menandro, seria difícil a plateia ouvir com clareza seu gorjeio. Resolveram, então, saltar o muro e fazer a apresentação logo abaixo do dormitório das meninas. . O vocalista foi o primeiro a escalar  o muro e saltar para dentro do Colégio. Os demais se preparavam para o difícil alpinismo quando perceberam um detalhe que lhes tinha fugido dos cálculos. As freiras criavam um pastor alemão de guarda que , mal nosso menestrel colocou os pés no chão, se viu atacado pela ferocidade do bicho. Que jeito ! Numa carreira desabalada o músico galgou uma mangueira grande que viu à sua frente e ficou só a moqueca agarrado numa galha, livre dos dentes afiados do pastor. Os demais bateram em retirada e ficaram do lado de fora. Como amigos fiéis, no entanto, ali permaneceram, sem arredar o pé. À medida que a noite se arrastava, foram capotando pelo chão e pegando no sono. Na velha mangueira,  Menandro mantinha guarda, insone, com medo de cochilar e despencar lá de cima como manga madura. A serenata virou uma vigília.

                        De manhãzinha, começou o bulício no dormitório, as estudantes se preparando para a aula. Após o café, desceram para o pátio, formando fila. Menandro, então, aproveitou a única oportunidade que lhe restava. Temperou o violão e puxou , com seu vozeirão mais  parecido com Vicente Celestino, a clássica seresta Chuá-Chuá, logo depois do hasteamento do pavilhão nacional:

“Deixa a cidade formosa morena
Linda pequena e volte ao sertão
Beber á água da fonte que canta
E se levanta no meio do chão
Se tu nasceste cabocla cheirosa
Cheirando a rosa no peito da terra
Volta pra vida serena da roça
Da velha palhoça do alto da serra

E a fonte a cantar, chuá, chuá

E a água a correr, chuê, chuê...”

 

                   Os amigos, ao som do tenor tupiniquim, cantando à capela,  acordaram e começaram acompanhar o violonista. As meninas se agitaram, Afonsina encheu os olhos d´água, e as irmãs , como cães farejadores, ficaram procurando a origem e localização da banda e da voz enigmática. O pandeiro, a flauta e o bandolim seguiram afinados e rítmicos o vozeirão do nosso Pavarotti. De longe , o cão, já preso,  ainda acuava a banda, agitado. Na hora do refrão, os músicos do lado de cá do muro, resolveram adaptar a letra do refrão da Serenata, fazendo o back vocal em três vozes ,  que contou  com a quarta voz,  em grunhidos,  do cão das freirinhas:

E Menandro no pau:  Au-Au, Au-Au,

E  o cachorro a latir:  Cãin-Cãin...”

 

Crato, 10/03/2023

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