sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

O Voo Hesitante do Pelicano

 

                               Liguei há pouco para um amigo que, como eu,   entrou no grupo do setentões. Lembrei-lhe de que a inevitabilidade da  sucessão dos anos termina por nos tirar, inclusive, a angústia da estrada que vai mais e mais se estreitando à nossa frente.  Os que tiveram suas crises existenciais nos cinquenta e sessenta, a partir daí, tiram de letra essas frescurites etárias. Talvez porque comecem já a ser computadas como vitórias. Aos que têm medo de envelhecer resta apenas uma opção: morrer jovem.

                   Claro que a setentite, que é quase uma doença, traz consigo os achaques de carro velho. Os rolamentos gripam, a ignição já não pega no arranque, as velas sujam, a pintura, então, perde o brilho e o veículo muitas vezes começa a saltar de marcha.  Mas que jeito, né ? Aumentam as visitas às oficinas, mas ninguém quer ir definitivamente para ferro velho! Por outro lado, como tudo nesta vida,  há também outras facilidades. Os filhos estão crescidos, os netos mandam na gente ( não é nossa responsabilidade educá-los) e vamos levando menos bagagem , em geral, na travessia. E, claro, temos que ter vida própria, dentro das limitações físicas que a idade nos impõe. É preciso  preencher os dias e as horas com aquelas atividades prazerosas que a correria da profissão nos tolheu : ler bons livros, viajar,  escutar músicas inesquecíveis, pintar, escrever, compor, esculpir, namorar. E até trabalhar um pouco, mas como laborterapia, com o juízo de entender que já não teremos a força e o vigor de outrora. Aquela pabulice do velho que diz não se trocar por um menino de quinze anos é mera retórica. O negócio nunca é fechado porque o vovô não tem como pagar o preço exigido pelo rapazinho  na hora de fechar  o contrato, com a pergunta inevitável: “o senhor vai me voltar quanto” ?

                   Um grande desafio   é compreender que o mundo a nosso redor gira em torno da juventude. Somos sempre um estorvo , uma espécie de entrave à progressão das moendas. No fundo, o idoso é visto como um ladrão da previdência social, um parasita que nada tem a contribuir com a roda da vida.  Nossas horas de voo, nossa experiência valem pouco como moeda de troca.

                   Mas é preciso seguir a viagem, mesmo sabendo-a imprevisível e  em desfiladeiro. Nem adianta olhar muito para trás para ver a trilha percorrida e as curvas e derrapadas que poderiam ter sido evitadas.  O caminho está sempre à frente e a estrada é sempre contramão,  voltando. Pode-se olhar rapidamente pelo retrovisor, mas sempre com o  cuidado para não perder a visão da rodagem, agora carroçável, que se estende a se perder de vista. Com bagagem mais leve, é engatar ponto morto e descer na banguela. No final, e nunca se sabe onde está escondido , nos espera sempre o precipício. Que tudo valha a pena: pelo dito e não dito, pelo feito ou refugado, pelo voo desajeitado e hesitante  do pelicano que nunca sabia bem se queria plainar ou colher o peixinho que buliçoso flutuava entre os recifes de corais...

 

Crato, 09/02/2023

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