sexta-feira, 21 de outubro de 2022

Sabiá em Apanha de Arroz


Abigail viveu um casamento atribulado por mais de trinta anos. Clodoveu tinha lá suas qualidades, mas era muito diferente da esposa. Tocava uma fazenda, tentando, como numa corda bamba, sustentar a família com agricultura e pecuária. A renda dependia, assim,  de fatores imprevisíveis e insondáveis como o clima nordestino, a cooperação das lagartas e das epidemias veterinárias e agrárias.  Afeito à vida dura e ao trato com os animais, Clodoveu era cabra de poucas palavras,  pragmático e de pouca delicadeza. Cumpria, no entanto,  à risca todo o esforço que, à sua época, se esperava de um macho alfa na proteção da sua manada. Nunca se soube de trapalhadas suas quer nos negócios, quer fora do sagrado território do casamento. D.  Biga -- como Abigail era carinhosamente chamada por todos -- enveredara por um Curso Normal, em outro estado e, embora tivesse ensinado numa escolinha por pouco tempo, teve que se dedicar ao lar e à filharada. Mais viajada,  ela  tinha uma visão mais ampla , fora mais festeira, mergulhara em livros e em filmes na juventude e, tudo aquilo, idealizara-lhe uma perspectiva de mundo bem diferente do que a vida acabou por lhe oferecer. O casamento com Clodô, como ela o chamava, contara com o corta-jaca de umas tias  bisbilhoteiras, mas Biga acostumou-se a gostar do companheiro por suas qualidades, embora o soubesse caseiro, adestrado pela vida e casca grossa. Os cinco filhos cresceram rápido, e , quando deu por si, já haviam levantado voo e estabelecido ninhos bem longe dali. Terminaram os dois apenas em casa e, já sem o fulgor  dos anos primaveris, Clodô e Biga ficaram mais distantes ainda, já sem muitos arranca-rabos, os dois foram tocando os dias pela simples necessidade de continuar estrada afora.

                               Um dia, anoiteceu e Clodô não retornou da fazenda. A esposa preocupou-se. Aquilo não era comum.  Juntou amigos e começaram a caça. Encontraram-no caído, no meio da roça, sem vida, parecia ter sofrido um ataque fulminante do coração.  Abigail viu-se tomada de uma tristeza extrema, nem tanto pelo amor que já se mantinha apenas com pequenas brasas em meio às cinzas. Perdia um companheiro de muitos anos , via-se só e, antes de tudo, esfacelava-se uma rotina a que já se acostumara. Como se, súbito, tivesse que refazer novamente o roteiro dos dias que viriam, já agora em voo solo. Durante uns dois anos, Biga mergulhou naquele fosso e naquela fossa. Os filhos queriam levá-la para morar com qualquer um deles. Ela, porém, entendeu que seria mais um cavalo de pau que daria na existência e sabia que a convivência diária é a maior fábrica de inimigos figadais.  Sogra morando com nora ou genro é como fumar charuto na Casa da Pólvora.

                               Um belo dia , simplesmente, parecia que o nevoeiro cessara e , por fim, um sol de outubro incendiou o horizonte. Biga acordou cedinho foi ao  cabeleireiro , cortou o cabelo e o pintou. Partiu para o comércio e comprou roupas da moda , maquiagem e perfumes. Daquele dia em diante, não mais perdeu uma festa. Viajava periodicamente para ver os filhos e netos, mas sem muita demora. Qualquer festividade ao redor de cinquenta quilômetros contava com uma Abigail pronta e maquiada, um pé-de-valsa. Os conhecidos, de início, assustaram-se com a transformação. Os homens rapidamente malharam a chamada viúva fogosa. Embora já com dois anos da partida de Clodô, ainda achavam tudo prematuro. Ralhavam, principalmente, com uma atitude que lhes parecia  a mais reprovável. Nas festinhas de jovens, Biga contratava um dançarino particular para dançar a noite inteirinha com ele, já que sabia que não teria lá tantos parceiros interessados por conta da diferença de idade.

                               -- Tá vendo aí ? Vá morrer, vá ! Não deixou nem a fel do falecido estourar e já tá toda fogosa e serelepe !   E chorava feito uma desesperada no velório ! Devia era ter vergonha.

                               As mulheres, do outro lado, não pareciam menos lenientes. Mas, no fundo, presas aos afazeres domésticos, não disfarçavam uma certa inveja pela liberdade de Biga. E, quem sabe, um certo temor em que vulcânica  viesse a atacar seus maridos. Pareciam pássaros na gaiola olhando o voo plainante de um carcará.

                               -- Abigail devia se dar mais a respeito ! Clodô num era lá essa flor que se cheirasse, mas não precisava sair por aí parecendo um cachorra no cio.

                               Biga, no entanto, não ligava para o falatório, numa espécie de nem “escuto a zoada da mutuca !” Continuou a celebrar a  vida e escancarou portas e janelas. Clodô, agora, ficara até como uma boa lembrança, uma imagem fixa numa estação de trem. Ela apenas descobrira que a locomotiva estava em movimento, que não mais retornaria e que era preciso curtir a paisagem mutante que estroboscopicamente  se projetava  da janela do trem, antes que também chegasse o momento do seu desembarque.

                               O velho Quinco Leré passou meses ouvindo os mexericos da vizinhança pinicando o oratório de Abigail. Manteve-se sempre, do alto dos seus oitenta, numa placidez digna de um faquir indiano em transe.  A fofoca comia solta pelas esquinas e calçadas, Quinco não dava um pio. Um dia, no entanto, viu com os próprios olhos, já meio embaçados pela catarata,  os volteios e coreografias de uma alucinante  Abigail , com o seu parceiro contratado, num forró promovido pela Associação de Bairro.  Chegou em casa calado, olhou para a esposa que lhe preparava o mingau de Aveia Quacker e lhe confidenciou:

                               --- Eita, mulher ! Vi hoje Biga numa festa, mais alegre do que sabiá em apanha de arroz ! Se eu tivesse certeza que viúva, Isaurina, tu ia ficar feliz daquele jeito, eu te juro, mulher,  eu me suicidava, eu dava um tiro no cocuruto!

 

Crato, 21/10/22  

                              

                                  

 

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