sexta-feira, 23 de setembro de 2022

A Aranha real

 


Na última semana,  o mundo inteiro assistiu ao interminável velório da Rainha Elisabeth II. Os séculos se sucedem, mudam os tempos e os costumes mas perdura na alma dos homens aquela indissolúvel e inconformada certeza quanto à impermanência. Impossível para a raça humana que subverteu toda a cadeia alimentar e ganhou ares e ufanismos de eternos vencedores, conformar-se com o retorno ao pó,  à substância inicial , alicerce  de todo o universo: o Nada. E quanto mais graduado e importante socialmente seja a pessoa, mais difícil compreender essa verdade única e indissipável: o retorno ao Reino Mineral. Os faraós construíam suas pirâmides gigantescas como tumbas reais; o Taj Mahal  foi erguido pelo Imperador Jahan, na Índia, para perpetuar a memória da sua esposa; os Incas e egípcios mumificavam seus entes queridos para preservar os corpos pelos séculos. No fundo, todos, de alguma maneira, lutavam, bravamente, contra essa inconsolável regra da natureza: no fim os pós se misturam: de reis, de plebeus, de insetos, de mamíferos, de cactos, de pedras. A tumba majestosa do rei e a vala comum do mendigo guardam as mesmas cinzas impossíveis de se diferenciar, quer pela classe econômica, pelo sangue azul ou vermelho, pela vaidade, pelo orgulho, pelas posses, pela beleza, pela elegância. O velório é o vestíbulo do pó, torna-se, assim, o derradeiro instante em que é possível demonstrar a todos que somos mais importantes, mais inteligentes, mais poderosos do que aqueles que conosco conviveram. O extremo estrebuchar da vaidade contra a insignificância, a ruína, a destruição.  Criam-se , assim, narrativas épicas e fantasiosas sobre os finados, todos os que estão deitados no ataúde eram bons, caridosos, humildes, generosos perfeitos. A morte cobre a todos com uma capa impermeável de super-herói, o defunto é um ser funereamente inimputável.

                                    O funeral da rainha em pleno Reino Unido, que já não detém a aura gloriosa do passado, fez-se um momento de revisitar aquele período dourado quando, lá, o sol nunca tinha crepúsculo, talvez porque impedisse a aurora no resto do mundo. As cerimônias se arrastaram ad nauseam , milimetricamente planejadas, com uma simbologia marcante e pesada, dignas de um Ramsés II. Percebia-se que junto às homenagens havia o intuito de firmar ao mundo um Conto de Fadas monárquico, cujo final seria sempre o “E foram felizes para sempre...” em tempos em que a Monarquia, mesmo politicamente de fachada como a inglesa, carrega um cheiro de mofo de um baú que não se abre há muitos anos. Como sempre sói acontecer, as celebrações de morte de entes queridos são, em verdade, um culto à vaidade dos parentes que ficaram para providenciar o velório.

                                    Na  solenidade, na Abadia de Westminster, com a presença de inúmeros chefes de estado, um fato fortuito e quase imperceptível talvez tenha sido aquele que melhor simbolizou  as exéquias reais. No centro da Abadia estava o caixão de Elisabeth coberto com a bandeira do Reino Unido e resguardado por coroas de flores colhidas dos jardins do Palácio de Buckingham. Junto,  um cartão escrito pelo Rei Charles III: “Em memória amorosa e dedicada!”. Do lado o cetro e a coroa da monarca.  De repente, uma aranha sem roupa de gala adequada,  de pernas longas e tortuosas, escalou tranquilamente o cartão real, sem preocupações com rituais, com o som lamuriento das gaitas e os soluços contidos dos presentes. Depois, enfurnou-se, novamente, entre as flores. Talvez porque soubesse, de alguma maneira, que, naquele momento, ela era o personagem mais importante no esquife real. Entre as flores cortadas dos galhos, as mensagens com palavras vagas e vazias, os rituais repetitivos e bolorentos ao redor e o conteúdo do caixão, a aranha de pernas longas sinuosas arrastava-se com  a mais brilhante das qualidades: Ela era a única que tinha vida !

 

Crato, 23/09/22

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