sexta-feira, 18 de junho de 2021

Sonhos de Baleia

 


J. Flávio Vieira

“Constitui, pois, a luta contra a fome, concebida em termos objetivos, o único caminho para a sobrevivência de nossa civilização, ameaçada em sua substância vital por seus próprios excessos, pelos abusos do poder econômico, por sua orgulhosa cegueira – numa palavra, por seu egocentrismo político,sua superada visão ptolomaica do mundo.”

Josué de Castro (1966)

 

                                               Josué de Castro nos deixou há quase cinquenta anos. Morreu triste e isolado, em Paris, exilado pela Ditadura Militar de 1964. De origem humilde, mulato, formou-se em Medicina no final dos anos 20 e sonhou enveredar pela psiquiatria. Mas a vida, como o Capibaribe da sua infância, tem suas próprias cheias e marolas e Josué interessou-se pela Nutrição. Contratado por uma fábrica, no Recife, descobriu rapidamente que a maior doença que lhe chegava para tratar, estava longe do seu raio de ação: chamava-se Fome. Tentou explicar isso aos seus patrões e terminou exonerado sumariamente. Josué aprofundou seus estudos relativos à Desnutrição no Nordeste e depois no mundo. Contou com estudos do Dr. Nelson Chaves, médico também pernambucano, que , em pesquisas, demonstrou uma relação causal entre a fome e a diminuição da inteligência em crianças. Em livros como Geografia da Fome (1946), Geopolítica da Fome (1951) , Sete Palmos de Terra e um Caixão (1965) , Josué denunciou um morticínio programado da população mais vulnerável que dissimulava suas causas na proliferação de filhos, na superpopulação, esquecendo intencionalmente as reais causas políticas e sociais do holocausto. Castro se tornou , rapidamente, uma referência mundial no combate à fome, assumindo funções como presidente do Conselho Executivo da FAO  e embaixador brasileiro junto às Nações Unidas. Premiadíssimo, chegou a ser indicado por três vezes ao Nobel.  Elegeu-se ainda deputado federal por Pernambuco, em dois mandatos, até a Ditadura Militar quando teve seus direitos políticos cassados e partiu para um doloroso exílio na Europa. Um romance de Juarez, “Homens e Caranguejos”, sobre os  trabalhadores dos mangues do Recife  inspirarou Chico Science, nos anos 90, a criar obras antológicas como : “Rios, Pontes e Overdrives”, “Da Lama ao Caos”, “Manguetown”.

                                    Juarez , nos últimos tempos, imaginou-se esquecido, um mero resquício  de um período sombrio no Brasil que parecia ter ficado fossilizado em obras como “O Quinze”, “Vidas Secas”, “Bagaceira”.  Mas o Brasil, tem essa sina de crescer como rabo de cavalo. A pandemia nos trouxe, além do outro genocídio também estudado e planejado, o retorno das imagens degradantes que  imaginávamos  ter permanecido apenas no quadro  “Os Retirantes “ de Portinari.

                                    Incapacitados de resolver a Fome,  gourmetizaram-na:  agora tem o nome pomposo de Insegurança Alimentar. Hoje ninguém passa fome, no Brasil, deusulive ! Estamos apenas inseguros alimentarmente. 116 milhões de brasileiros, segundo dados de 2020, vivem nessa situação, metade dos lares no nosso país, não tem garantida a sobrevivência nutricional mínima. E esse número já vinha num crescente preocupante. Em 2013 o número de famílias em insegurança alimentar era de 23% , entre 2017-2018 saltou para 37%. A pandemia apenas pôs a pá de cal no paciente que já vinha no respirador há alguns anos.

                                    E as medidas que temos tomado para mexer na mola propulsora desse outro genocídio são patéticas:  armar a população, prescrever cloroquina, auxílio emergencial de miséria, pedir à classe média para dar sobejo da sua comida à plebe, ou providenciar ração para o povaréu. . Parte dos brasileiros  tenta minorar solidariamente a chaga , a outra dá comida envenenada ao povo, incendeia moradores de rua.  

                                    O Brasil, como o caranguejo do mangue, retorna ao seu habitat natural:  a lama e ao nosso andar sempre em marcha à ré. Voltamos  a ser os degustadores de calangro e de mucunã  e, enquanto agonizamos,  pomo-nos a sonhar , como a Baleia de Fabiano,  com um mundo cheio de preás gordos e enormes.

 

18/06/2021

Um comentário:

laice disse...

Parabens Dr Flávio. Excelente artigo sobre o Dr Josué de Castro!