sexta-feira, 11 de junho de 2021

Honoris Causa

 


J. Flávio Vieira

 

                                               Os metais, para tomarem forma de artefatos e de joias, necessitam ser forjados  sob o calor altíssimo da fundição e, depois, moldados , pacientemente,  a seguidos golpes   de malho. A pérola é um mero resultado de uma crônica inflamação da ostra, uma reação de corpo estranho. Talvez esse mesmo processo explique a resiliência  e a força do nordestino.  Submetido ao forno climático, surrado pelas intempéries das secas periódicas , martelado pelo descaso das políticas de governo; qualquer adversidade, para nós, é tiquim. Aprendemos a saltar de banda, as artes do negaceio e os pulos de gato.  Descobrimos, nas irregularidades  das estações, na polarização entre Verão-Inferno, que a vida também tem suas ciclicidades. Nada é definitivo e peremptório, a tristeza de hoje já traz consigo o gérmen fecundado da alegria de amanhã. Difícil, assim, pegar o nordestino no contrapé, cabisbaixo ou desiludido. A esperança  nutre-nos e, por isso mesmo, o matuto olha para o céu, menos em feitio de prece  e de  súplica, e muito mais na expectativa da mudança dos ciclos vitais.

                                    E como conseguem ser felizes e realizados com os pequenos triunfos e as mínimas vitórias!  Como sabem partilhar com os familiares e amigos  as pequenas posses, os milagres da terra e a fartura dos paióis! O nordestino , sabiamente, nunca coloca o ninho do sonho numa altura da árvore que não possa alcançar. Alça-se a ventura sempre ao alcance da mão.  E são muito bem humorados, sabem rir das suas desgraças e seus azares que sabem são pedras postas em meio ao caminho para arrancar o chamboque do dedão, mas, também, para impulsioná-los para frente. Vistos de longe parecem ignorantes, tolos  e manipuláveis, mas basta uma simples aproximação para se perceber que são sábios e cientistas naquele segmento do planeta que escolheram por viver e explorar. Como disse Mia Couto: ali, naquele mundo particular, eles são doutores e phd´s e os analfabetos somos nós.

                                    Às vezes,  pomo-nos a estranhar a opção de eles viverem nos grotões, isolados, sem os muitos recursos e os adornos proporcionados pela pretensa modernidade. Mas na cidade grande, o isolamento não é menor. Somos solitários na multidão. A metrópole tem milhões de habitantes, mas com quantos cada um de nós convive? Quantos amigos juntamos? Muitas vezes nosso planeta se restringe a colegas de trabalho e a um apartamento de 60 m2. Caindo nas moendas da sociedade de consumo,  toda a existência se resume em trabalhar para pagar boleto.

                                    Meu avô Vicente Vieira viveu quase toda a existência na Lagoa dos Órfãos em Várzea Alegre. Quase de lá não saía. Nos anos 50, um dos filhos, Raimundo, formou-se em Medicina em Salvador  e ele , ressabiado e desconfiado, foi à cidade grande para festa.  Ficou hospedado no quartinho da República, na Rua Chile. O tio convenceu-o a aproveitar a ida e fazer uma consulta. O velho Vicente não sabia o que era consultório. Procuraram o Dr. Fernando Filgueiras, um dos mais renomados esculápios da Bahia. O médico gostou do cliente desenrolado e senhor de uma outra realidade e puxou conversa.

                                    --- Tá gostando de Salvador, seu Vicente ?

                                    --- Aqui é bom, mas é esquisito. Vocês são como jumento de lote ?

                                    --- Como assim, seu Vicente ?

                                    --- Vocês só cagam num canto só, numa tal de sintina !

                                    --- E onde o senhor mora é diferente ?

                                    --- Oxe ! É muito melhor ! O banheiro é o mundo todo, Dr. Fernando !  Cada dia a gente escolhe um lugar diferente ! O senhor não sabe o que é fazer as necessidades, acocorado,  debaixo de um pé de pião roxo, com um turunga no bico e um sabugo na mão!

                                    --- Sabugo , seu Vicente ? Um sabugo de milho, é ? Pra quê , homem de Deus ?

                                    --- Dr. Fernando, e o senhor, um doutor formado, não sabe disso não ? É nosso papel higiênico , só que muito melhor !

                                    --- Melhor, seu Vicente ? Um sabugo, por quê ?

                                    --- Ora, o sabugo tem três qualidade quesses papel véi daqui num tem !

                                    --- Que qualidades são essas, seu Vicente ?

                                    O velho Vicente, então, mostrou o seu diploma de Doutor Honoris Causa do sertão nordestino:

                                    --- Ora, seu doutor ! O Sabugo  limpa, coça e penteia !

 

Crato, 11/06/2021

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