sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Os Abastados e os Abestados

 

E a turminha era sempre a mesma. Reunia-se na praça Siqueira Campos  , em alguns bancos periféricos, ali na proximidade do coreto central. Todos aposentados, de classe média, afastavam-se, intencionalmente, dos mais RICOS. Era uma divisão espontânea de castas, até porque os interesses e assuntos eram díspares. Lá , ali próximo às bancas de revista, o caga-gomismo prevalecia, cada qual procurando contar mais vantagem e sobrepor-se à riqueza do outro. No outro extremo, os amigos se juntavam, para jogar conversa fora, zonar com a cara do outro, descascar a vida alheia e , literalmente, cultivar uma roça de besteira, essa substância de que , afinal, é tecida a vida e as relações humanas. Sabiam, sem precisar de professor , que tinham se fartado das reuniões sérias, dos carimbos, dos reconhecimentos de firma, das pautas de produtividade, dos sorrisos forçados , do paletó e da gravata. Aposentados, tinham voltado à bermuda, ao pijama de bolinha, ao chinelo e ao papo despretensioso, aquele que vai de plantação de cebola à origem dos buracos negros. Tinham como seu programa favorito o noticiário do Sábado da Educadora, onde prevalecia , justamente, a potoca, o miolo de pote, a conversa mole que não precisava de destino a alcançar. Comentavam, entre si, que os dois grupos se chamavam: os Abastados e os Abestados.

                        Em um dos dias, para vocês terem ideia da importância de temas abordados, os Abestados lembraram as coisas , neste mundo, que têm uma atração  natural entre si. E , cada um passou a citar estas coisinhas que têm uma força de gravidade natural. Roberval citou a primeira: tampa de pasta de dente e ralo de pia ! Zé Ideia  recordou duas outras que parecem gêmeos siameses: Dor de Dente e Dia de domingo ! E aí , na rodinha, pipocaram facilmente  outras tantas: Unha encravada e pé de mesa! Peruca e galho de árvore! Liseira e Black-Friday !

                        Semana passada, o assunto em pauta dirigiu-se a negócios sem futuro. Levino  lembrou de um amigo que pôs uma  empresa de chuveiro elétrico em Terezina !  Zé ideía desenterrou uma história de um parente que se estabeleceu com um Motel na Paraíba e quebrou, estranhamente. Só depois descobriu que pode ter sido por conta do nome fantasia escolhido: Motel N. S. Aparecida.  Contadas as favas, o campeão das piores empreitas foi o Zelito da SAEEC ( o apelido vinha não porque trabalhasse na empresa, mas porque, segundo os amigos, o papo dele era água pura) . Zelito  mostrou a intenção de colocar uma Sorveteria em Macapá.

                        O Grand Finale da prosa dos Abestados geralmente desembocava na política, assunto onde o consenso é sempre impossível. Em tempos bolsonarianos  , quando doidice e besteira não faltam, alguém puxou a declaração do filho do caga-rodando que acusou a China de espionagem  e ameaçou aquela fraquíssima potência com retaliações. Briga de cachorro Pinscher com Rotweiller.   Depois de discursões em torno do problema, alguns últimos bovinos defendendo o deputado e a maior parte  rindo e gozando da megalomania perigosa do maluco, quiseram , então, saber a opinião de Zelito que permanecia calado, encostado num poste da praça, cubando as opiniões divergentes. Zelito, em fins de semana, tempos atrás, tinha sido um dos mais famosos caçadores do Cariri. Subia a serra e voltava, no domingo,  com tatus, cutias, veados, jacus.  Tinha um cachorro que se tornara uma verdadeira  lenda: “Cruvina”. Segundo Zelito, enfrentava todos os inimigos possíveis, latia forte, arreganhava os dentes com um destemor incalculável. Perguntaram, então, a Zelito qual sua opinião sobre a valentia do deputado que tinha encostado a China no pé da parede e ameaçado os amarelos de peia. Nosso Zelito, calmamente, puxou um cigarro, acendeu,  debruçou-o no canto da boca e fabulou:

                                   ---  Todos vocês conhecem Cruvina, não é ?  Nunca conheci , nesse mundo, um cão mais valente e destemido. Enfrentou bois bravos, botou pra correr queixadas e caititus. Pois uns meses atrás, estava com ele na serra, numa caçada, quando , de repente, uma onça vermelha enorme, saltou no meio da vereda. Eu tremi feito Toyota com Parkinson e em ponto morto. Mijei nas calças feito menino. Senti que minha vida dependia de Cruvina. Olhei com o rabo do olho e ele tava todo arrupiado e ronronando. Pensei : se ao menos ele soltar aquele latido forte que parece mais um apito de navio, quem sabe a onça desiste e foge !

                                   Zelito então, estrategicamente, parou a narrativa e foi logo catucado pelos Abestados:

                                   --- E aí ? Cruvina partiu pra cima ? Cruvina acuou a onça ? Estraçalhou a bicha ?

                                   Zelito dissuadiu-os quanto a audácia histórica e intrepidez do seu companheiro de caça:

                                   --- Que nada ! Ele fez o que o filho do presidente vai fazer daqui a pouco.  Cruvina escondeu o rabinho  entre as pernas, abriu o bocão e...  miou !

Um comentário:

Unknown disse...

Bom demais!👏👏👏👏😄😄😄😄😄