sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

O Flamboyant


Uma dúvida quase hamletiana:  Por que havia plantado o frondoso flamboyant bem defronte da casa ? Fizera-o , instintivamente, numa época em que as paredes ainda estavam desnudas, ainda sem o agasalho do reboco.  Aos poucos,  a ramada espraiou-se pelo jardim e sôfrega tomou conta da paisagem. Difícil, agora,  encontrar uma resposta plausível, tantos anos depois. Quiçá,  com o crescimento descomunal da árvore e o milagre da floração ,  todas as perguntas tornaram-se supérfluas. Finalzinho do ano, o flamboyant tingia de um vermelho brilhante os céus e o seu pulsante escarlate reascendia, ainda mais,  com o pano de fundo de um céu propenso aos delicados tons do azul marinho. Depois, como numa genuflexão, estendia um tapete rubro pelo solo, como um convite aos passantes,  entremeando-se , galhardamente, com o verde da grama. Parecia abrir alas para a cerimônia do Oscar da natureza:  a entrada do Ano Novo. Durante o resto dos meses, o flamboyant mostrava-se dormente, usava apenas um tênue vestido folhoso que lhe recobria apenas o dorso, sensualmente, deixando  antever, as formas e circunvoluções do  corpo. Preparava-se , por muitos meses, cuidadosamente,  para a festa de gala  do réveillon.
                                  
Talvez, por isso  mesmo, tantos e tantos anos na ciclicidade das estações, a árvore terminou por fazer parte natural da paisagem. Permanecia ali, meio estática, como um quadro ou um retrato na parede: mero adereço de decoração. Só quando matizava de rubro os horizontes e estendia seu manto colorido no tapete da relva,  para o piquenique nos solstícios de verão, dava-se por sua beleza e resplandecência. Depois, o flamboyant travestia-se de uma  Cinderela já com o encanto desfeito, depois das doze badaladas. Esquecera apenas o sapatinho  de um cristal carmesim, em algum canto da folhagem , como um aviso de que retornaria ao baile, em futuras saturnálias.
                                   De repente, aquela ausência súbita:  a paisagem ferida, como se lhe tivessem amputado um membro!  Árvore tolhida pelo tronco, os galhos murchos estendidos para além do portão da casa, aquele que assumira a pretensão de separá-la do resto do mundo e da realidade à sua volta. O moço olhou o casarão que agora perdera um pouco sua razão de ser. Como se na cena bíblica dos três Reis Magos faltasse a estrela cadente. O flamboyant fizera parte do cenário de sua existência, compusera, por alguns anos, um script de desejos, quimeras e aspirações. Depois, lambidos os castelos de areia pelos lábios da maré, permanecera ao longe, como se guardasse fragmentos de sua história, estilhaços da sua vida. De alguma maneira, a árvore tombada fizera destroçar , também, ramas , folhas e  flores no bosque de  sua alma.
                                   A pergunta, antes desnecessária e entorpecida, saltou  à sua frente,  quando a paisagem mutilada tocou-lhe as retinas. Por que  afinal, um dia,  plantara  o umbroso flamboyant ?  Talvez,  imaginara:  no fundo,   mais resistente ao tempo e seu séquito de intempéries, ela pudesse colocar algumas gotas de eternidade no maremoto da impermanência. Porventura fosse capaz, como um soldado de Pompeia, fazer-se o testemunho único de um ciclo de sentimentos em ebulição, de sorrisos e olhares que acabariam se  dissipando no bordado puído dos dias ? Quem sabe, conseguiria abrigar os fantasmas do casarão, acolhe-los em seus galhos, quando, fartos das sombras do sótão,  quisessem  embebedar-se um pouco de luz ?
                                   Trucidado,  o flamboyant já não tinha respostas. Como sangue, um fio purpúreo de flores  escorria pelo chão. Junto da última atalaia de tantas reminiscências, o rio da memória fluía, enfim,  para o estuário do esquecimento: derradeira  estação onde desembarcam  vidas, sonhos, ilusões e sentimentos...

Crato, 07/01/20

4 comentários:

Unknown disse...

Lindíssima a crônica
O Flamboyant, Dr. José Flávio!
Acredito que tenha sido sobre o majestoso Flamboyant da casa que o senhor um dia morou.
Como eu, outros transeuntes do local,deveriam ter o mesmo olhar de admiração para com aquela árvore de folhagem verde, bem esgalhada ou
repleta de flores vermelhas/ alaranjadas.Lamentei que tenha sido cortada e que a paisagem daquele jardim tenha perdido bem mais o encanto sem o belo Famboyant!


Unknown disse...

Lindíssima a crônica
O Flamboyant, Dr José Flávio!
Acredito que tenha sido sobre o majestoso Flamboyant da casa que o senhor um dia morou.
Como eu, outros transeuntes do local,deveriam ter o mesmo olhar de admiração para com aquela árvore de folhagem verde, bem esgalhada ou
repleta de flores vermelhas/ alaranjadas.Lamentei que tenha sido cortada e que a paisagem daquele jardim tenha perdido bem mais o encanto sem o belo Famboyant!


Unknown disse...

Lindíssima a crônica
O Flamboyant, Dr José Flávio!
Acredito que tenha sido sobre o majestoso Flamboyant da casa que o senhor um dia morou.
Como eu, outros transeuntes do local,deveriam ter o mesmo olhar de admiração para com aquela árvore de folhagem verde, bem esgalhada ou
repleta de flores vermelhas/ alaranjadas.Lamentei que tenha sido cortada e que a paisagem daquele jardim tenha perdido bem mais o encanto sem o belo Famboyant!


INSTITUTO CULTURAL DO CARIRI disse...

Obrigado pela leitura e pelo contato. Feliz que vc tenha gostado do texto