sexta-feira, 3 de agosto de 2018

Fogo Fátuo


Luneta jura, de pés juntos, que tudo que se passou naquela noite foi a mais pura realidade. Como sempre, existem controvérsias irremovíveis. Primeiro, dificilmente nossa testemunha estava “de cara”. Por outro lado, depois da energia elétrica, os fantasmas, as almas penadas, as visagens desapareceram como por encanto. Na sua transparência e fluidez, estes personagens adoram as sombras, os ermos, as entocas. O certo é que Luneta visitava o cemitério de Crato, naquela noite pouco especial, como o fazia cotidianamente. Vezes acompanhado de amigos, vezes sozinho, adentrava o campo santo, tarde da noite, para , sem ser incomodado, pacificamente, empreender viagens montado no bólido do pó  ou suspenso nos etéreos balões da marijuana. Diz ele, com olhos algo arregalados, que naquela noite, estava sozinho, sentado em uma catacumba antiga, quando, depois de sorver o quinto baseado, sob a trilha sonora de um radinho de pilha, encostado, estrategicamente, junto à cruz do túmulo, percebeu uma figura estranha, aproximando-se.
                                    Veio silente, sem algazarra e sentou-se  defronte a ele, de cócoras, numa campa baixa, em formato de cama de casal.  Luneta descreve-o como de altura mediana, uns sessenta anos,  olhos fundos, corpo esquálido. A aparição insólita, no entanto, não lhe causou medo ou apreensão, parecia a visita de um velho conhecido. Luneta ensaiou um boa-noite meio sem jeito e ouviu a resposta do outro lado, numa voz em barítono como se soprada de dentro de uma jarra: Boa Noite ! Passados alguns instantes, como se tirada a rolha do champanhe, o senhor começou a narrar uma infinidade de queixumes. Parecia que de há muito aguardava um companheiro a fim de debulhar seu rosário de atribulações.
                                   Lembrou que morava naquele condomínio há já uns vinte anos, que lhe haviam augurado repouso eterno. Havia visto as lágrimas de familiares rolarem como as fontes do pé da serra, quando da sua mudança. Luneta confirmou que a convivência com os vizinhos era a mais pacata possível . Ali, não havia ricos ou pobres, poderosos e pés-rapados,  brancos ou negros, homos ou héteros: tinham alcançado a plena equidade e o mais perfeito socialismo. As coisas tinham, no entanto, mudado nos últimos tempos. Claro que os familiares, depois do rateio dos testamentos, haviam desaparecido. Um ou outro retornava no Finados, com alguma velinha e algumas ave-marias insulsas. O condomínio, no entanto, estava superpovoado, mal se tirava uma palinha , ouvia-se o tilintar das enxadas e a chegada de novos moradores. Estava pior do que o presídio de Crato, alma batendo em alma. Ademais, a garantia de repouso eterno de há muito se esvaíra. Na Expocrato, bandas inundavam os ares com um barulho ensurdecedor que varava a noite, tocando um arremedo de música que lembrava a todos ( celestinos, luciféricos e purgatorianos ) que tinham sido condenados às labaredas do inferno. A falta de segurança, por outro lado, segundo o interlocutor de Luneta, era uma realidade que até já batera no outro mundo. Ladrões rapinavam os túmulos, carregando argolas, cruzes, porta-retratos. Além do mais, o condomínio estava inteiramente sujo, mal cuidado, destoando, totalmente, do novo Parque de Exposições que ficava , do outro lado, mangando do campo santo e ralhando :
                                     -- Eu sou obra do estado, miserável ! Tu é uma pocilga, entregue ao desmantelo da prefeitura municipal !
                                    A revolta maior de “Fogo Fátuo”, esse foi o apelido que Luneta colocou no companheiro,  e que o fez sair naquele dia da cova, teria sido uma declaração do prefeito da cidade que tinha visitado o cemitério, conversado com os condôminos, não tendo havido reclamação nenhuma. Tudo estava na mais perfeita ordem!  Fogo Fátuo, então, ameaçou:
                                   --- Tá tudo em paz, é ? Pois já falei com o satanás para a gente marcar uma reunião aqui na Caldeira 666 , e trazer o prefeito pra discutir a questão !
                                   Luneta, afirma, por fim, que para acalmar os ânimos,  deu um dos seus cigarrinhos ao Fátuo e que ele, depois da quinta baforada, olhou em volta do cemitério , viu tudo lindo, brilhante e reluzente, teve uma crise de riso e perguntou:
                                   --- Mano Lulu, será que tu num deu foi um cigarrinho desses ao homem, brother ?  Tá todo em cima, a maior limpeza, óóó !

Crato, 03/08/2018

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