sexta-feira, 17 de agosto de 2018

É PRA TU , LUDU !


                                        De onde vem a tradição, profundamente matozense, de se pagar promessa de santo com dois litros de cana  e um saco de umbu ?
                                               Há versões e mais versões deste costume, vamos à mais aceita. A história de Matozinho confundia-se , umbilicalmente, com a do catolicismo na vila. Rezava a lenda que um missionário, que se dirigia à capital, perdera o rumo e dera nas margens do Paranaporanga há muitos e muitos anos . A hostilidade da seca, à época, fez com que permanecesse ali por algumas semanas por conta de cacimbas abertas à margem do rio de onde  brotava uma água um pouco salobra , mas potável.  Consta que ali tivera algumas visões , quando tirava uma madorna debaixo de uma juazeiro frondoso, o certo é que, alguns meses depois da partida, resolveu retornar e ali se estabelecer. Aos poucos, atraídos pelas missas que a celebrar próximo a um grande cruzeiro que fincou às margens do rio, começou-se a formar um arruado. Era a futura Vila de Matozinho que brotava gravitando em torno da fé cristã.
                                  
Depois da chegada daquele primeiro missionário, muitos e muitos outros se sucederam, principalmente depois de se ter erguido a capelinha de Nossa Senhora dos Desafogados. Eram quase todos padres bem tradicionais, guardiões intransigentes da moral e dos bons costumes. Apontavam as artimanhas  do capiroto, sempre pronto a desviar as pessoas da boa prática religiosa, pensando em arregimentar almas para as caldeiras esfumaçantes do inferno.  Claro que naquelas brenhas, longe da rédea curta  dos bispos  e da santa inquisição, vez por outra terminavam por tropeçar nos bueiros que tanto apontavam no caminho dos fiéis. Mantinham , no entanto, uma postura externa impecável, cuspiam ordens e sentenças, como se o simples exercício do seu sacerdócio já lhes trouxesse  um salvo conduto para o paraíso.
                                   Houve, no entanto, um desses padres que destoava totalmente do padrão estabelecido até então. Chamava-se Ludovico. Era um varapau de quase dois metros de altura, magricela, elétrico e meio alvoroçado. Falava como se as palavras fossem lançadas de sua boca como de um cano de pistola. Com ele não se percebia aquela hipocrisia tão típica dos velhos sacerdotes que o antecederam, adeptos do “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”. Estabeleceu , publicamente, um casamento público e notório,  com uma Irmã de Maria,  e com ela vivia, abertamente : o casal tinha quatro filhos. Se interrogado sobre o caso respondia, claramente, que a invenção do celibato tinha sido mera convenção do catolicismo e aquilo não tinha nenhuma sustentação nos livros sagrados: o primeiro papa, Pedro, não fora casado?  Por outro lado, era um ferrenho ativista na política local, colocando-se, frequentemente, contra os prefeitos e vereadores que, como sempre, não tinham qualquer sensibilidade social e utilizavam seus bolsos como se fossem os cofres públicos. Gostava de festinhas, de um sueca em final de tarde e um pé de ouro nos sambas de pé de serra.  O padre era um copo fenomenal e tinha o hábito de degustar a cachaça, em longas talagadas, tirando o gosto com umbu. Abençoava as relações gays , para o espanto dos poderosos da vila, lembrando que qualquer forma de amor é válida e bem melhor que o livre tráfico de ódio tão presente na sociedade.  Chegou a sofrer ameaças de morte, mas não se desviou um milímetro das suas convicções. Ludovico, por outro, levava uma vida modesta e franciscana, acolhia os mais pobres , os humildes e os perseguidos , ajudava-os nas suas necessidades mais prementes, até parecia que acabara de retornar da Montanha onde ouvira o famoso sermão. Talvez fosse essa transparência que o tornasse tão querido, respeitado  e amado pelo seu rebanho.
                                   Ludovico , por outro lado, tinha um atitude bastante condescendente com os pecadilhos nossos de cada dia. Entendia que atitudes altruísticas diante da vida, a solidariedade, a compreensão, o amor e a amizade, no final, contavam mais, diante do Criador, do que tropeços pequenos ao longo do pedregoso caminho da existência. Suas penitências tinham um padrão todo ludoviquiano de ser. Os dez mandamentos necessitavam de um upgrade, no seu entendimento. Pecar contra a castidade devia ser específico para a terceira idade, os jovens tinham mais era o direito de fazê-lo. O “Não roubarás” devia ser , totalmente, excluído da atividade política, já que era inerente àquela profissão. O “não desejar a mulher do próximo” precisava ter uma correlação direta com a proximidade do próximo.  No final, segundo Ludovico, no balançar da peneira, ficava o mais importante deles: Amar ao próximo como a ti mesmo!”.
                                   Quando Padre Ludovico adoeceu gravemente, pairou uma grande consternação na região. A vila já se adaptara ao Concílio Matozinho II impetrado pelo pároco. Ele partiu, sereno, numa sexta feira, reclamando de Deus que devia ao menos ter deixado desfrutar o final de semana: -- Bastava me levar na segunda, balbuciou o moribundo ! O certo é que Ludovico se foi, mas ficaram muitas das suas histórias, citadas, tantas e tantas vezes, pelos matozenses, como parábolas.
                                   Um dia, percebeu que o número de confissões estava insuportável. As pessoas tomavam o precioso tempo do pároco para contar desvios pequenos e insignificantes que podiam ser diretamente resolvidos em suas orações. Não bastasse isso, era o mesmo público que vinha eternamente aos pés do padre como os mesmos pecadinhos repetitivos de sempre. Rezavam apenas para poder voltar aos mesmos agravos. Resolveu, facilmente, o problema com uma portaria onde, para organizar os trabalhos de confissão estabelecia o atendimento: no sábado, para os adúlteros; domingo, para os ladrões; segunda, para assassinos; terça, para os falsos testemunhas; quarta, para os invejosos; quinta, descanso.
                        Contavam ainda que um adolescente, em confissão, meio choroso, lhe confessou que havia pegado no peito da namorada. Ludovico, sério e brusco, perguntou-lhe se tinha sido por cima da blusa ou por baixo. O menino tremendo disse-lhe que tinha sido por cima da blusa, apenas apalpara. O mão de Ludovico, atravessou a parte superior do confessionário e imprimiu-lhe um croque fenomenal no quengo, seguida de um advertência feroz:
                        --- Menino besta ! Aprenda, seu zé-mané !Devia ter pegado por baixo da blusa, seu leso ! A penitência era a mesma !
                        De uma outra feita, segundo reza a tradição de Matozinho, uma  mulher, na confissão, sussurrou que estava tendo um caso com o padre da vizinha vila de Bertioga. Não sabe como aquilo acontecera tão de repente. Ludovico, pareceu espantado e revoltado e sapecou-lhe uma pena pesadíssima, fora dos critérios normais da sua liberalidade.
                        --- Reze vinte e cinco rosários, esta é sua penitência !
                        --- Mas seu padre , isso tudo ?
                        --- Isso sim ! É pra você aprender ! Se você é da paróquia de Matozinho tem que cometer seus pecados é nessa paróquia e não em outra, joviu ?
                        Pelo sim, pelo não, as pessoas rezam para o Pe. Ludovico e o veneram como santo. Fazem promessas e alcançam graças, prometendo o pagamento mais inusitado e tradicional da religiosidade de Matozinho. Antes do primeiro trago, nos bares, é de praxe. Derrama-se um tiquinho do aguardente no chão e ordena-se:
                        --- É pra tu, Ludu !

Crato, 18 de Agosto de 2018

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