sexta-feira, 18 de maio de 2018

São Gualberto do Cuvioco


J. Flávio Vieira


                                               Existia uma regra geral típica de Matozinho. Proprietário de bar, que se prezasse, tinha que ser casca grossa. Nada de meter-se com mesuras excessivas, com muitos “com licenças”, com demasiados “por favor”. Bar que que merecesse essa denominação não tinha muitos querequequés que aquilo não era salão de beleza, não sinhô ! Botequim tradicional possuía não um dono, mas um  general por trás do balcão. Havia que se manter a autoridade e a ordem no ambiente. Bêbado se meteu a besta com palavrório inapropriado tinha a boca fechada por muque. Coçou-se para pegar faca, já encontrava o dono de facão em punho; sacou de pistola,  levava cano de escopeta nos peitos, antes que pronunciasse qualquer baboseira. Aquilo era boteco e não cabaré! Cuspia logo o balconista, antes de jogar o primeiro pinguço engraçadinho de porta para fora. Bar com estes estatutos , ganhava confiança da freguesia e já era meio caminho andado para o sucesso.
                                   Destoava dessa regra pétrea o famoso “Cuvioco do Gualberto”. Fazia-se um estabelecimento mirrado, de duas portas, encravado em uma das ruelas , sem saída, próximo à Praça da Matriz. Talvez porque fosse uma instituição flex que envolvia mais de uma atividade comercial. Um misto de bar, de confeitaria, padaria, tabacaria. O Gualberto , em pauta, era um sessentão, comprido como um dia de fome, mas de trato fácil, voz mansa e pausada, educado. Nunca o flagraram com rispidezes , com altear de voz. Tirante isso, tinha lá suas idiossincrasias. Não era de levar, também, desaforo para casa e, claro, precisava, à sua maneira, manter a boa convivência e a boa reputação do seu Cuvioco. Uma das especialidades da casa eram os doces: banana em rodelas, coco, leite cremoso e talhado. Ficavam postados sob o balcão, em grandes aribés, envolto por um vidro grosso, como chamariz para os que transitavam pela calçada. Eram preparados pelas mãos de fada da esposa do Gualberto: D. Mariquinha.
                                   Para os padrões matozenses, nosso taberneiro era um gentleman, um diplomata, mais fino que assovio de sagui gay. Claro que as regras diplomáticas do Itamaraty sofreram lá seus reajustes até chegarem a Matozinho. Dia desses,  “Rosenildo Trapaiada”, um desses malas da região, o típico malaca que não paga as contas antigas e põe as novas em incubadora para amadurecerem, pediu uma tirrinta de doce de coco a Gualberto. Ao terminar, solicitou a conta e , ao saber que se tratara de dois reais, sacou uma nota de cem do bolso, já contando com a possibilidade de não ter troco disponível e recair na inevitável “pendura”. Gualberto, com uma calma beneditina, perguntou ao cliente se não tinha dinheiro mais trocado. Claro que não tinha!
                        --- Tenho não, rapaz ! Se vire ! Dê um jeito! Se quiser posso passar depois para acertar, já que não tem troco.
                        Como se pegasse um cálice sagrado na ceia larga, Gualberto rasgou a nota de cem reais no meio e entregou um pedaço à “Trapaida”, sem se alterar.
                        --- Tem problema , não ! Você é amigo nosso, de toda confiança. Leve esse pedaço, quando você trouxer os dois reais, devolvo o outro. Você cola, Rosenildo,  e vai ficar como novo ! Se avexe, não !
                        De outra feita, entrou no “Cuvioco”, em dia de feira, um matuto meio apressado. Olhou de cima do balcão de vidro as bacias de doce , logo abaixo e , com o dedo, ficou tamborilando em cima do vidro, apontando o de sua escolha ,meio exasperado.
                        --- Toc, toc, toc... Bote esse aqui ! Bote esse aqui ! Toc, toc, toc...
                        Gualberto, sossegado, nem bateu a passarinha. Meteu a mão, pegou a colher de pau dentro da panela  e colocou o doce de coco em cima do vidro do balcão, exatamente no local onde o matuto apontava.
                        --- Pronto, meu amigo ! Você manda ! Bom apetite !
                        A história, no entanto, que levou o povo de Matozinho a admirá-lo, ainda mais, pelas finesse e educação aconteceu pertinho do São João. Antonildo Jurubeba era um freguês assíduo do “Cuvioco”. Tinha apenas uma perna, a outra perdera num desastre de trem. Andava com ajuda de muletas.  Tomava lá suas talagadas, mas frequentava o ambiente mais pelo papo, pelo debulhar da conversa, do que propriamente pelas meropeias. Tinha o hábito de sentar em um tamborete grande do bar  e recostar as costas na parede, equilibrando-se apenas nas duas pernas traseiras do  banco. Punha-se, então,   a balançar-se, num leve movimento de vai e vem, impulsionado pelo único pé que lhe restara. Gualberto incomodava-se com aquilo, mas , do alto da sua diplomacia, não reclamava de Antonildo, parte por conta do defeito, parte porque temia perder a freguesia. Naquele dia, porém, Gualberto parece ter vindo trabalhar depois de chute  nos quibas. Jurubeba chegou como sempre, pediu um oito de fubuia e entornou como se fosse água benta. Encostou as muletas na parede e tomou assento no seu tamborete, elevando os dois pés dianteiros do bicho  e descansando o lombo na parede de trás.
                                   Nisso, o depósito de fleugma do proprietário do “Cuvioco” parece ter esvaziado.   Sem se alterar, sem mostrar quaisquer sintomas de exasperação, Gualberto pegou um serrote, em uma das prateleiras, ajoelhou-se e começou a serrar as pernas dianteiras e suspensas  do tamborete de  Antonildo. O homem deu um salto danado.
                                   --- Oxe ! Tá ficando doido, Gualberto ! Serrando os pés do banco ? Tu num tem o que fazer, não ?
                                   O dono do bar, tranquilo, voz leve e macia, com aquela paciência quase que budista,  explicou :
                                   --- Nada, não ! Eu notei, Antonildo, que banco pra você só carece ter duas pernas !  Vou cortar essas duas aqui da frente, só serve pra atrapalhar ! Vai vê, o doutor cortou essa outra sua, por essa mesma causa !
                                   Por essas e por tantas outras, os matozenses já pensam em dar entrada no processo de canonização do nosso São Gualberto do Cuvioco.

Crato, 18/05/18

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