sexta-feira, 11 de maio de 2018

Despojos de Guerra


Cenildo acordou cedinho. Aonde deixara guardado aquele sono interminável da juventude? De hábitos noctívagos, sempre ralhara com aquele necessidade de levantar cedo e partir para o trabalho na repartição onde enfrentou, por muitos anos, a pouca flexibilidade do Relógio de Ponto,  sempre o esperando com aquela cara de poucos amigos. Agora , um desses contrassensos da vida, quando vestira o pijama de aposentado, e as manhãs se ofereciam lúbricas para o seu deleite, Morfeu , como um amante temeroso, saltava pela janela do quarta ainda de madrugadinha.
                                   Sem muito ter o que fazer com os lençóis, Cenildo ganhou a rua aos primeiros raios do sol. Peitou com os primitivos espreguiçares da cidade ainda insone e com seus personagens primais: o velho que trazia o pão ainda quente da padaria; operários que corriam para o trabalho,  como ele um dia o fizera; o primeiro bêbado da manhã e o último ébrio da noite anterior; os comerciantes que abriam as bocas sedentas de seus armarinhos. Para ele, aquele era um dia especial. Rumou até a repartição da prefeitura para tirar um diploma inusitado: A Carteira de Idoso. Pois é, era preciso comprovar, com documento , sua condição de senilidade para poder auferir os enormes benefícios que a velhice pode proporcionar. De posse da carteirinha, teria direito a estacionamento gratuito e com vagas especiais, prioridade em filas, abatimento em passagens. Cenildo seria , por fim, um velho documentado, assumido  e regulamentado. Perderia, claro, a partir daquele momento, a licença poética de mentir a idade, de usar subterfúgios para parecer mais jovem:  pintar o cabelo e a barba, aplicar o Botox,  usar roupas adolescentes, abastecer o som do carro com funks, breganejos e forrós estridentes da hora.  Demorara um pouco a tomar a decisão drástica, esperou lá uns cinco anos, mas , por fim, entendeu que já não era possível deter a inundação com uma caquera de passarinho: perdido por cem, perdido por mil ! Meio a contragosto, chegou no departamento municipal, ainda no romper da aurora. Na fila, já lá se empertigavam uns dez velhotes, insones como ele,  e com aquela cara de quem entornou um suposto copo de leite condensado e só então descobriu que se tratava de chá de boldo. Depois de algumas horas de espera, chegou por fim ao pé do balcão. Aguardava-o um barnabé de cenho franzido que maquinalmente preencheu   o formulário e anexou os documentos que Cenildo lhe passou. Sem levantar a cabeça, informou ao solicitante que voltasse com uma semana para pegar a carteirinha.
                                   Cenildo retornou no prazo combinado. Depois da aposentadoria andava meio a esmo, à deriva, perdido como  cachorro que cai de caminhão de mudança. Tanto tempo na rua, a casa lhe funcionava como simples guarida noturna. Não entendia do seu funcionamento, do fluxo diário e contínuo do seu pulsar. Apenas a cama e a TV lhe pareciam familiares. Depois de devidamente emplacado como idoso, Cenildo acrescentou algumas dúvidas mais ao seu estranhamento. A carteirinha como que lhe deu os superpoderes do Homem Invisível. Trafegava pelas ruas como um espectro. Em casa, quase que passava desapercebido. Deslizava em meio às multidões na rua, como uma agulha que tentasse, loucamente, tecer uma colcha de retalhos com seu fio invisível.  Muitas vezes assaltou-o a sensação de que já tinha feito a passagem e estava perambulando por este mundo, como alma penada. A única prova de que isto não acontecera é que, a cada final de mês, como por encanto , recobrava , novamente, seu estado sólido e concreto. A partir do dia vinte e oito, os filhos e a esposa lhe sorriam, o padeiro o cumprimentava   com certa galhardia, o dono da bodega lhe fazia mesuras, alguns amigos das antigas acervavam-se e puxavam conversa. A  visibilidade, no entanto, durava pouco: por volta do dia dez, retornava, aos poucos,  ao estado gasoso, à fluidez etérea e transparente . Era como se hibernasse.
                                   Cenildo tomou nas mãos a carteirinha mágica. Pareceu desvendar, em meio aos traços vetustos, a silhueta de um menino.  Onde estava ele agora ? Investira-se da mesma invisibilidade do velho que lhe embotava as feições ? Do fundo do peito,  teve a certeza de que se morresse, voltaria , contraste dos contrastes, a ser vívido, palpável e real como já fora um dia, ao menos enquanto durasse  os trâmites do inventário, da divisão de bens, da rapinagem final dos seus despojos de guerra.

Crato, 11/05/2018

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