sexta-feira, 16 de março de 2018

Uma rosa para Marielle


Houve um período em que vivendo no topo das árvores, num dos maiores saltos evolutivos da nossa história, o primeiro hominídeo decidiu que já era tempo de descer ao solo e conquistar seu espaço na face da terra. Sabia, de antemão, que eram mínimas suas possibilidades de sobrevivência: não tinha a velocidade dos leopardos; faltava-lhe a amplitude de audição dos lobos; seus olhos não se faziam penetrantes como os do lince  e da águia.  Deve ter perecido nas primeiras tentativas, mas abriu os horizontes para todos os da sua espécie, num leque inesgotável de possibilidades e de riscos. Sem aquele ímpeto primal, estaríamos ainda hoje disputando frutos com nossos irmãos chimpanzés e macacos prego. E durante todo nosso percurso neste planeta, ainda tão curto e tumultuoso, sempre dependemos dos sucessores visionários daquele hominídeo primal que conseguiu ver além das fruteiras do seu pomar, que fugiu da estabilidade da  matilha e abriu picadas próprias e novas veredas, mesmo com o iminente perigo de ser devorado antes de alcançar a primeira clareira.


                                   Do homem-caixa, do trabalhador-relógio-de-ponto, do operário-padrão-obediente, do macho-sim-senhor, da mulher-livro-de-tombo, da fêmea-inhô-sim, do Homo domesticus não se pode esperar muito. Flutuarão entre o berço e a cova sem deixar uma marca, uma nódoa, um vestígio na superfície do tempo. De dentro do seu aquário, que imaginam corresponder a toda amplitude do  universo, comerão satisfeitos a sua ração e, enquanto aguardam a inexorável mudança de águas, pôr-se-ão a criticar   os outros peixinhos que resolveram pular por sobre o vidro protetor, mesmo com a ameaça de se verem sufocados sem a água em suas brânquias. Cristo, Martin Luther King, Miguel Servet, Tiradentes, Ghandi, Giordano Bruno... Há sempre uma cruz, fincada em algum Gólgota, esperando por quem quebra as fronteiras do conforto, da acomodação e resolve comer os frutos da árvore do Conhecimento.
                                   Nestes dias, a mesma história milenar se repetiu. No Rio, uma vereadora e líder comunitária, Marielle Franco, foi executada , junto do seu  motorista , sumariamente, com armas de uso exclusivo da Polícia.  Seu crime foi exatamente igual a de muitos seus sucessores nos extermínios periódicos. Vindo da Favela da Maré, fez-se defensora dos mais pobres, das prostitutas, dos indefesos, dos continuamente massacrados pelo estado que ao invés de subir os morros com hospitais, escolas, livros, cultura e cidadania, presenteia-o com metralhadoras, AR-15 e socos, balas e repressão. Isso tudo no Rio de Janeiro , em intervenção militar, num perigoso  tubo de ensaio para a reconsolidação definitiva da Ditadura armada no país. A revolta popular com o assassínio que tem nuances similares ao de Edson Luiz, há meio século, foi contrabalançada por uma chusma de ataques de uma extrema direita em franca ascensão no Brasil, para eles (a história anda  em bumerangue)  Marielle teria colhido o que plantou. Os comentários dos soldados romanos devem ter sido parecidos quando Cristo, Paulo e Pedro estavam pregados na cruz. Mais que um assassínio brutal e inqualificável, perpetrado, possivelmente a mando do estado e por funcionários pagos pelos nossos impostos, vem anexo o recadinho, com a clara certeza de impunidade ( não muito diferente daquele mandado pela Corte Portuguesa, no esquartejamento de Tiradentes) : “ Quem não se enquadrar, vai provar do mesmo cadafalso!”
                                   Aos que se põem a saborear com a execução pérfida de Marielle, vale lembrar o restinho da história. A fuga do primeiro símio do topo da árvore levou-nos à conquista do planeta. O Império Romano que sojigou Cristo e o Britânico que massacrou Gandhi soçobraram e eles, ao contrário, esquiam impávidos e intocáveis  na memória do povo.  Os morros estão repletos de Marielles ( há uma Canudos em cada Favela) e é sempre bom lembrar que a estrada da violência tem sempre mão e contramão. Mais dia, menos dia, como diria Vandré, virá “A volta do cipó de aroeira no lombo de quem mandou dar”. O ato de despetalar ferozmente uma Rosa, felizmente, não tem o poder de impedir  a eclosão da primavera: as flores desabrocharão mais fortes, brilhantes e reluzentes.

Um comentário:

barbara disse...

👏👏👏👏👏👏👏🙏🙏🙏🙏