sexta-feira, 2 de março de 2018

Entressafra




                                               O velho Filogônio Avelino Freixeiras  criou alma nova, quando o compadre deu-lhe a notícia. A novidade funcionou como se acendesse o pavio de um fogo de artifício. É que a coisa não estava de brincadeira, não. São Pedro desmaiara ou caíra numa longa modorra lá pra riba das nuvens. Cinco anos de seca braba, sem cair pingo, já tinha peixe de três palmos que nem sabia nadar! Freixeiras, então, saltou das tamancas com as alvíssaras trazidas pelo compadre Fulgêncio: o Banco do governo, em Matozinho,  estava  dando um empréstimo de entressafra para os agricultores, uma ajudazinha do governo que andava muito sensível e solidário,  pois aquele era ano de eleição para presidente e deputado. Experiente, Filogônio entendeu, do alto dos seus setenta e lá vai lajedo,  que aquilo devia ser uma esmolazinha, uma gota d´água em língua de papagaio. Mas , para quem já está desenganado, qualquer chá de  pitanga é antibiótico de última geração. Cedinho, no outro dia , antes da abertura da agência, pegou a fila que já dobrava a esquina, serpenteando as ruas e calçadas, feito cobra jiboia em campo de cansanção. Já de tardezinha, uma moça simpática o atendeu. Filogônio levava até um matulão  para já trazer o dinheiro emprestado. Ficou meio capiongo quando a moça encheu seu utensílio não com a grana sonhada mas com um extensa relação de documentos necessários para dar entrada no processo.
                                   --- Seu Filogônio ! Traga esses documentos que a gente preenche seu cadastro. Sendo aprovado, o senhor vai receber a verba !
                                   --- Oxe ! E não levo né hoje, não ? Quem precisava desse dinheiro trezantonte... !
                                   Filogônio voltou desapontado. Já vinha meio cabreiro: esmola grande na cuia, o cego desconfia ! Durante a semana pôs-se a tentar juntar os documentos: RG, CPF, Escritura do Terreno, Imposto Rural,  certidão de casamento dele e do escancha-avô, o exame da goma, a Cópia da Carta de Pero Vaz de Caminha, Comprovação de Residência de Belchior e do Padre dos Balões... O diabo a sete !  
                                   Uns quinze dias depois, com a maçaroca de papéis, voltou para a fila do Banco que, parece, tinha sido borrifada com fermento Royal. Esperou pacientemente sua vez de ser atendido. No final do expediente,  recebeu uma senha para retornar dois dias depois. A mocinha, sentada diante de uma máquina de escrever Olivetti, pediu-lhe os documentos, verificou atentamente a relação, ticando com um lápis de ponta fina, nos bordos dos papéis. Confirmou , então, para seu alívio que estava tudo ok e que iria preencher o cadastro. Enfiou uma folha de papel enorme  no rolo da máquina e iniciou o interrogatório, enquanto datilografava pacientemente os dados obtidos. Nomes dele, do pai, da mãe, da esposa, dos filhos; endereços de todos os envolvidos;  escolaridade; religião... Já anoitecia quando , umas três horas depois, a bancária entrou nos dados mais financeiros do cadastro. Filogônio espavorido já fumava numa quenga.
                                   --- O Senhor tem algum bem, seu Filogônio ?
                                   --- Tenho:  minha mulher Filismina e Juclécia, uma quenga da rua do caneco amassado --  informou  o velho.
                                   A mocinha, então, explicou que eram bens materiais: terrenos, carros, imóveis , etc.  e não bens sentimentais. Filogônio, então, completou:
                                   --- Ah , sim ! E lá sobrou nada, numa seca miserável dessa !?  Anote aí : Uma casa velha de taipa, uma burra manca e uma cachorra boa de preá : Cruvina !
                                   A bancária, meio agoniada,  pediu, em seguida, duas pessoas suas conhecidas que pudessem servir de referência. O velho Avelino, de chofre, lhe passou:
                                   --- Bote aí : Criseudo Catonho e Juciclébio Arnóbio, do Sítio Zabelê !
                                   --- E quem são eles ? - Quis saber a datilografista.
                                   --- Oxente, tu tá doida ? Todo mundo conhece Criseudo e Juciclébio nestas bandas! Tu num é daqui, não ?  Criseudo é  cobrador  de um crediarista. E Juciclébio, tu num lembra , não ? Ele é adivinhador de pule de jogo do bicho ! Sonhou , ele destrincha e diz logo qual o número que a pessoa deve jogar.
                                   O interrogatório longo e cansativo continuou. Num momento, vexado , Filogônio quis saber quanto dinheiro, se tudo fosse aprovado, ele poderia tomar emprestado. A moça , para seu desalento, informou  que o teto máximo seria de uns trezentos reais, caso sua proposta fosse aprovada. Teria dois anos para pagar com juros de 2,5 % ao mês. Antes que um Avelino estropiado, protestasse , ela mandou a pergunta seguinte do interrogatório. Queria saber se ele já tinha feito alguma operação bancária naquela instituição.
                                   --- Seu Filogônio, o senhor já fez alguma operação?
                                   O velho, exasperado, soltou brasa para tudo quanto é lado:
                                   --- Já minha, senhora ! Operei uma tal de apendicique, uns dez anos atrás  e quase morro! Passei uns três meses botando pus pela barriga, fiquei arrombado que só um mané-magro-de-aroeira. Se pra conseguir essa merrecazinha desse Banco , for preciso eu me operar de novo, pode ficar com o dinheiro. Fique com ele, Sá Dona !  Compre uma Hylux !


Crato, 02/03/2018  

Nenhum comentário: