sexta-feira, 12 de maio de 2017

Panelada e Caititu



J. Flávio Vieira

                               A segurança de Matozinho  sempre foi entregue a três ou quatro samangos que corriam o risco eterno de morrer de enfado ou de preguiça. Tanto assim que Severo  , o mais tranquilo guarda local, era um dos mais procurados para indicar pules no jogo do bicho, tanto vivia a dormir e sonhar pelos cantos da delegacia. A cadeia local vivia entregue às moscas e o escrivão, Toinho do BO, já até desaprendera  a escrever. As embuanças  resolviam-se na rua : bebedeiras, briga de marido e mulher, tapas no pé-do-ouvido e muxoxos. Raramente as lambedeiras faziam bainha em bucho de gente.  Matozinho, assim, não podia ter queixas da sua polícia municipal.
                        A coisa pesava, no entanto, quando, periodicamente, principalmente em tempos de eleição, a Polícia Militar do estado vinha mostrar serviço na cidade. Os milicos chegavam, então, enfatiotados, com ar de superioridade, humilhavam os guardas locais e sojigavam o povo, a toda hora, dando geral, buscando armas, colocando sob suspeita  tudo quanto era de vivente. Nesta ocasiões, de preferência, prendiam logo os dois mais conhecidos malacas da Vila : “Panelada” e “Caititu”. Os dois  possuíam uma extensa Folha Corrida preenchida de falcatruas,  como  pequenos furtos, negócios enrolados, compra e venda de cheques sem fundo, receptação de objetos afanados, contratação de pistoleiros e coiteiros,   estelionatos de pequena monta. Os dois malandros viviam destes rolos , mas tinham uma profissão oficial que lhes envolvia numa certa aura de honestidade. “Panelada” dizia-se mecânico numa pequena oficina na periferia da vila,   e  “Caititu” exercia a especializadíssima profissão de coveiro.
                        Pois, naqueles dias, a Polícia Militar entrou com estardalhaço em Matozinho. Vinha investigar o roubo reiterado de cargas de caminhão. Dirigiram-se diretamente ao Dr. Olímpio Matagão, o juiz de direito em exercício,  naqueles cafundós do judas.  Olímpio sempre fora mais desmantelado que queda de helicóptero. Fazia acordos com rábulas por debaixo dos panos, vendia sentenças, sem pejo, como quem negocia  gimgibirra ou quebra-queixo em banca de feira. Contava-se dele que , um dia, tendo negociado com um matuto uma sentença a  favor, numa briga de terra, o babaquara invadiu uma audiência de Matagão e gritou , como se fora a coisa mais natural desse mundo :
                        --- Seu juiz, eu vim trazer o dinheiro que o senhor pediu pra julgar aquela questão a meu favor !
                        Matagão encolerizado, levantou-se , saiu empurrando o matuto à base de safanões, gritando-lhe impropérios , até jogá-lo atrás de uma porta,  e, enquanto metia-lhe a mão no bolso e pegava o maço,  lhe sussurrou :
                        --- Tá doido , Mané ! Isso se dá é detrás da porta e não na frente dessa ruma de fofoqueiro !
                        Matagão, de posse das informações da PM, já pensando em alguma ôia que pudesse vir do Sindicato dos Caminhoneiros , arrolou as figurinhas carimbadas de sempre , a fim de colher informações : “Panelada” e “Caititu”. O primeiro a ser ouvido : “Panelada”.
                        Olímpio, com ar sério e enérgico, começou o interrogatório e o jogo de caça ao rato :
---  “Panelada”, você conhece “Caititu”?
O malaca já providenciou o primeiro drible:
--- Conheço sim, seu juiz ! Mas caçaram tanto que quase num tem mais esse bicho aqui em Matozinho ! Tá em extinção !
Olímpio , exasperou-se :
--- Não se faça de engraçadinho não, seu moleque ! Você sabe de quem eu tô falando !Me fale dos caminhões !
“Panelada” providenciou o segundo traço :
---  Tem o Fênemê, o Chevrolet e o Ford ! O senhor tá querendo comprar um ?
Matagão, nervoso, voltou a atacar:
--- Quero saber, se você sabe quem está nas estradas tirando os carregos ?
--- Na de Bertioga, o terreiro de “Pai Catolé”. Na estrada de Serrinha,   pode procurar “Mãe Zulene de Iansã”.
                        Fulo da vida, Matagão mandou que levassem “Panelada”, que driblava melhor que Garrincha na direita,  e trouxessem  “Caititu” para o interrogatório. Quem sabe ele não resolveria cooperar? O homem chegou naquela tranquilidade típica dos inocentes.
Matagão, recompôs-se   e atacou :
--- “Caititu”, você conhece “Panelada”?
O malaca mostrou que não entregaria o jogo fácil:
--- Conheço, seu juiz ! Mas deus me livre de comer ! Fico logo impando !
Olímpio percebeu que estava diante de um outro Pelé  e interrogou novamente:
--- Você tá se fazendo de mal-entendido, seu malaca ! Diga logo onde esconde a carga roubada dos caminhões !
Caititu nem bateu a passarinha :
--- Sei disso não, seu doutor ! Carga ? Caminhão ? Eu sou coveiro, não vendo casa, não vendo óleo, não vendo leite... Nem sentença, seu juiz, nem sentença ...
Matagão entendeu a indireta e , fumaçando por todas as chaminés, ameaçou :
---- Venha ! Venha !Sabia que eu possa deixar você apodrecendo na cadeia, seu meliante ?
Caititu nem mudou o tom de voz e deixou claro a vantagem que levava sobre o juiz por ser coveiro :
--- O senhor pode me prender, seu doutor ! Fico lá um ano, dois, dez, mas um dia eu saio ! Agora se eu prender vocimicê, eu quero é ver ! O Senhor não sai de lá mais é nunca !

Crato, 12/05/2017


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