sexta-feira, 5 de maio de 2017

3 de Maio : Semente e Fruto


                                               Era um domingo na pacata Vila do Crato. Há exatos duzentos anos,  a vilazinha resumia-se a uma pequena praça central de onde saiam radialmente onze ruelas. No extremo sul cearense,  o Crato sempre teve uma ligação fortíssima com Pernambuco, mesmo depois da nossa emancipação daquele estado,  no finalzinho do Século XVIII. Boa parte da nossa colonização branca dali procedeu, de lá  também importamos a nossa mais preponderante cultura:  a cana de açúcar e as ideias iluministas viriam também a reboque. Naqueles idos, o Ceará vinha assoberbado de muitos problemas: uma seca que já se arrastava por mais de dois anos e  uma consequente carestia nos gêneros de primeira necessidade; o domínio português no comércio da Província revoltava os comerciantes nativos; por outro lado, após a chegada da família real,  o Sul do país começou a se tornar preponderante no Brasil, relegando o Nordeste a um plano inferior.
                                   Pois foi em meio a esse  cenário,  que naquela fatídica manhã de  3 de Maio de 1817 , um seminarista cratense do Seminário de Olinda, de 22 anos, envergando sua batina negra,  subiu ao altar da Igreja da Sé , após a missa dominical. Com voz forte e empostada leu um manifesto enviado de Recife em que proclama a Independência e a República no Brasil. Na plateia uma elite local constituída de proprietários rurais e comerciantes e muitos populares aplaudem freneticamente a iniciativa. A reviravolta política progride com o hasteamento da bandeira branca da república e a deposição imediata de toda a burocracia monárquica cratense. Novos serventuários seriam imediatamente eleitos , o Capitão-mor da Vila , Pereira Filgueiras, representante maior da monarquia na região,  num primeiro momento, pareceu aderir ao movimento libertário e seria içado a “Comandante das Tropas” revolucionárias. Dois dias depois conseguiriam a adesão de Jardim, uma das mais importantes vilas caririenses na época.
                                   O sonho pioneiro e premonitório da República do Crato durou, exatamente, oito dias. O governo central retomou as rédeas do poder político com a ajuda das elites comerciais e feudais num Ceará de forte viés lusitano. A bandeira da República foi defenestrada e rasgada. Os revoltosos foram detidos entre eles:  José Martiniano ( o seminarista revolucionário ), seus irmãos Tristão e Pe José Carlos. Junto ,  a primeira heroína e presa política brasileira , a matrona dos Alencares : D. Bárbara. Eles permaneceriam detidos, precariamente,  em prisões pútridas e fétidas em Fortaleza,  Recife e Salvador. Por um mero acaso, escapariam da pena de morte e  seriam liberados, quatro anos depois, por conta de ordens da Corte, após uma Anistia Geral que se seguiu à  Revolução Liberal do Porto.
                                   Na última quarta feira, dois séculos depois, um ator subiu ao altar da Sé e refez o ato e o discurso históricos. A pequena plateia , após a missa, deve ter se perguntado, já sem a emoção passada:  que  legado deixou a fugaz República do Crato ?  Aparentemente, resumiu-se tudo a um gesto tresloucado e inglório. A partir daquele momento,  começamos a computar baixas. O Nordeste foi, pouco a pouco, perdendo sua força política e econômica no cenário brasileiro, vendo a gangorra guinar para  o sul e sudeste . O interior do Ceará, então o apogeu da província,  foi paulatinamente  percebendo  sua influência esvair-se para Capital. E o Crato , depois do segundo quartel dos Novecentos, observaria, atônito, seu poderio mercantil e político obnubilar-se no Cariri. O movimento seminal encetado em Pernambuco, no entanto, de tão curta sobrevivência, fincou ideias iluministas que redundariam logo depois na Independência do Brasil, embora o sonho republicano ainda tivesse hibernado por mais de setenta anos.
                                   Acredito que o mais importante testamento deixado pelos revolucionários de 1817 tenha sido a coragem e a determinação de lutar contra as forças opressoras, mesmo colocando o pescoço no laço da forca. No fundo, eles não titubearam em plantar uma árvore que daria frutos para serem saboreados por futuras gerações. Hoje , quando novamente a Democracia é colocada em cheque; quando a Escravidão tende a reaparecer, no baile,  fantasiada de reforma trabalhista; quando o entreguismo governamental põe em risco a Independência conquistada em 1822;   quando a miséria e a fome reaparecem como plataforma de governo; quando os verbos administrar e afanar já são sinônimos; o ideário e a coragem de Bárbara, José Martiniano, Pe Carlos José e Tristão , mais que nunca parecem exemplares e atuais. O Altar da Pátria aguarda ansioso um outro três de maio.


Crato, 05/05/17  

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