quinta-feira, 28 de maio de 2009

Prisma


Os brasileiros quando assistem de cadeira de balanço à invasão do Iraque , ao extermínio dos afegãos, às lutas fratricidas do continente africano ou aos conflitos envolvendo Israel e árabes, no Oriente Médio deviam ao menos perceber que a briga lhes diz respeito. De alguma maneira estão sendo dizimados irmãos nossos, nestas pelejas internacionais. Não, não falo aqui biblicamente, invocando o nome de Adão, nosso pretenso ascendente comum. Os mouros têm uma profunda influência na cultura brasileira estudada por um dos maiores gênios da raça, o potiguar Luiz da Câmara Cascudo. O tempero árabe-sarraceno esteve fortemente presente no caldeirão étnico quando da cocção gradativa da identidade pátria. Somos um país único , fruto da fabulosa miscigenação de um número incontável de raças e culturas e carregamos conosco a fagulha da esperança. Ensinamos a todos a possibilidade de união dos povos, sem barreiras, sem preconceitos e que é possível sim semear a tolerância e conviver pacificamente com a diferença. No Brasil, não existe purismo, não há arianos. Qualquer um de nós , se formos revolver o passado, não chegamos à terceira geração sem que nos deparemos com nossos ascendentes na Taba, na Senzala, na Sinagoga ou na Mesquita. Nossas veias não transportam sangue azul ou negro; o prisma da nossa colonização fez o milagre da refração e cá estamos todos multicoloridos , enchendo de brilho a aquarela do nosso país. Neste aspecto, o Brasil é, estrategicamente, a nação do futuro.
No que tange à nossa influência moura ela é simplesmente enorme. Não bastasse a presença dos árabes por aqui, eles estiveram na península Ibérica durante oitocentos anos, de 661 dC até quarenta anos antes do descobrimento do Brasil. Além de tudo, influenciaram sobremaneira a Cultura Afro, um dos pedestais mais fortes da nossa etnia. As tintas árabes tingiram nossa cultura bem mais que os judeus, os ingleses, os franceses, os holandeses e os japoneses. O gênio de Luiz Câmara, em seus mais de 150 livros, deu um cascudo na maior parte dos pesquisadores do Sudeste e deve-se a ele o descobrimento do Brasil árabe-sarraceno. No Nordeste, então, esta influência tem tintas fortíssimas. O cuscuz, o arroz doce são iguarias que deles herdamos. O hábito de comer no chão limpo, tão freqüente por aqui ,também é influência moura. Beber água depois da refeição e não durante. Os panos que as mulheres gostam de usar na cabeça e os turbantes que usam sobre os penteados. Mulher andar a cavalo ou de moto de lado e não escanchada. Fazer renda, usar leques, guarda-sóis, véus no rosto, uso de tintas nas sobrancelhas e brilho nos olhos são herança dos nossos irmãos mouros. A alpercata de rabicho é tipicamente árabe , assim como o próprio nome alpercata. O fascínio pelos doces parece também ter forte origem sarracena. Apanhar de chinela da mãe não era uma verdadeira desonra? Igualzinho a se jogar sapato no Bush ! O aboio dos nossos vaqueiros , segundo Câmara, também de lá veio, bem como o pandeiro e o tamborim que adornam nossas escolas de samba. As histórias e festas populares nordestinas estão povoadas da cultura islâmica: as Cavalhadas, o Reisado, A Chegança, o Cordel , Duelos de Espadas, os nossos Contos Infantis. “Bão-Balaão, Senhor Capitão/ Em terra de mouros , morreu seu irmão...”Há historiadores que lembram, inclusive, a semelhança entre o Afeganistão e Canudos de Antonio Conselheiro ou das hordas iraquianas com as imagens Glauberianas em “Deus e o Diabo na Terra do Sol”. Seriam uma espécie de Afegani-sertão ? – Chegam a perguntar. Basta dar uma olhadinha em uma foto de Canudos, de Flávio de Barros, para se ficar em dúvida: não foi clicada num campo de refugiados árabe?
Existe um outro traço tão freqüente no cotidiano brasileiro de profundas raízes arábicas. O fatalismo é uma delas. “Quando a gente nasce, tudo já está determinado !” Só se falta completar com o Maktub: Estava Escrito! Nossa relação com o divino, também. Vejam os pára-choques de caminhão, o outdoor do pobre. “Deus sempre ajuda” “Dirigido por mim, guiado por Deus””Deus proteja esse carro” “Deus me Guia” . Pois não é lá no Alcorão que se lê: Allah-U-Akbar, ou seja, Deus é grande? Uma das razões de sermos um povo muito supersticioso, devemos também a eles. Tememos o trovão, o relâmpago, o gato preto, as sextas-feiras, a lua nova, o lobisomem, o vôo da coruja... Acreditamos ainda nos sonhos como orientador para o jogo do bicho. Semana passada, observei várias frases em carros aqui em Crato e percebi claramente o temor que temos com a inveja , o “Olho Gordo”. “Não me inveje, trabalhe!” “Falar de mim é fácil, difícil é ser eu” “A sua inveja faz a minha fama””A Tua inveja é minha felicidade” “Com as pedras que me atiras construirei meu castelo” “Deus te dê em dobro o que me desejas”. Pois bem, lembrei o velho Cascudo. Rogar praga a torto e a direito, imprecação, maldição é uma outra herança árabe. Praga de mãe, então, é pior do que bomba atômica. Lembram da praga materna na história do Lobisomem ? E do genial poema “Rogando Praga” do nosso Patativa?
Assim, amigos, não custa recordar que cada míssil que explode no Afeganistão de alguma maneira atinge Canudos; cada bomba que explode no Iraque bombardeia também o Caldeirão; o embate fratricida entre islâmicos e israelenses fere de morte os brasileiros. Você pode até fechar os olhos e concluir que nada tem a ver com isso. Cansado de mourejar, resolve deitar-se num sofazinho baixo e amplo, cruza as pernas e prefere ficar “na sombra e água fresca”. Tudo bem, mas não esqueça que tanto o verbo mourejar, quanto o sofazinho, o cruzado de pernas e a visão paradisíaca da sombra e da água fresca você deve à fabulosa cultura que agora mais uma vez está sendo bombardeada.

28/05/09

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Entre o Bordeaux e o Aluá

Em Matozinho, um vereador fez levar à votação um projeto simplesmente fantástico: tornar todos os cidadãos do município pensionistas, a partir da promulgação da lei, recebendo proventos mínimos de R$ 2000,00 ao mês. Na justificativa, nosso legislador fazia-se enfático: o projeto imediatamente acabaria com a miséria em Matozinho , faria o comércio prosperar e , mais, legaria aos munícipes condições para o lazer e a sobrevivência sem que ninguém precisasse lascar-se de tanto trabalhar e sair por aí suando mais que tampa de chaleira. A idéia parecia brilhante e inventiva, como ninguém ainda havia pensado nisso ? Viver às expensas da viúva desde o nascimento até o Cemitério! Tudo ia às mil maravilhas até que um cri-cri resolveu fazer a pergunta fatal. Feitos os cálculos iniciais, os gastos com a nova lei sobrepassavam os recursos totais de Matozinho em mais de dez vezes. Quem pagaria a conta ?
Esta pequena história, “lá de nós”, vem bem a calhar quando acabamos de apagar as vinte velinhas no aniversário do rapaz. Pois é, o menino já nasceu meio despombalizado, anêmico, zambeta e com bico de papagaio. Teve todas aquelas mazelas de infância que chegaram a preocupar os pais e depois vieram as crises típicas de uma adolescência complicada com rebeldias e caras trombudas. É, amigos, mas agora , o menino se diz dono das ventas, estampa o primeiro buço e uma barbicha meio desalinhada. Os pais não parecem satisfeitos, no entanto. Esperavam mais dele , que já tivesse independência financeira e tomado tento na vida. Mas a paternidade não é sinônimo de paciência e esperança ? O Susto, talvez, venha exatamente porque a criança, por similiaridade semântica, foi batizada exatamente de SUS.
Conseguimos avanços ? Sim, avançamos significativamente. Priorizamos uma Medicina Preventiva ao invés da Terapêutica, como anteriormente. Aproximamos a população das equipes de saúde, com o PSF, melhorando o acesso como jamais ocorrera na história brasileira. Organizamos o Sistema de Saúde Nacional em termos de planejamento estratégico, trabalhando cientificamente os dados epidemiológicos, tendo sido criado um Banco imenso de Dados, alimentado regularmente por todas as Secretarias de Saúde Brasileiras. Melhoramos imensamente os Indicadores Epidemiológicos, com vacinação em massa, diminuição impactante da Mortalidade infantil e das doenças infecto-contagiosas. Então, por que tantas denúncias de desatendimento , de omissão de socorro, de negligência no SUS que a todo momento explodem na mídia ? Por que ninguém está satisfeito com o SUS? Nem os profissionais de saúde, nem os gestores e muito menos os usuários do sistema ? Por que ? Vamos tentar dar algumas respostas pessoais à questão, nós que participamos do parto da criança e acompanhamos seu crescimento e desenvolvimento.
O SUS foi a realização de um sonho de toda uma geração de idealistas do Sanitarismo Brasileiro. Esta utopia se fez presente na Constituinte de 1988, quando na Carta Magna, no Artigo 196 estampou-se a saúde como um direito de todo cidadão brasileiro e um dever do estado. E mais : que este dever era Universal, para todos os brasileiros; Integral, contemplando todas as nossas necessidades de saúde e mais: seria distribuído com Equidade, contemplando mais quem mais dele necessitasse. O sonho era vultoso, não muito diferente do sonhado pelo vereador de Matozinho. Criar um Plano de Saúde gigantesco que contemplasse , hoje, quase 200 milhões de brasileiros , desde o atendimento a um simples “Pano Branco”, até à mais complexa Cirurgia Neurológica. E mais, um projeto de saúde gestado com uma visão socialista, bebida em águas gramscianas, devia ser implantado num universo totalmente dispare, de marcantes cores neo-liberais.
Pois bem, o certo é que , quem sabe intencionalmente, nunca se pôs dinheiro suficiente para alimentar um sonho tão gigantesco. Hoje gastamos em torno de 7,6% do PIB com a saúde no Brasil, aí envolvidos todos os investimentos públicos e privados no setor. Só para se comparar os EUA empregam 15% do PIB, a Alemanha 11%, o Canadá 10% e a Argentina 9 %. Só que no Brasil apenas 45% deste valor é do setor público, mais da metade são de investimentos privados, dos Planos de Saúde. Só que os Planos gastam mais para atender 40 milhões de brasileiros do que o Estado para atender os outros 150 milhões. Em 2007, empregamos pouco mais de mil dólares per cápita para atender todos os brasileiros, os Estados Unidos investiram em torno de U$ 7500,00 por habitante. E sempre é bom lembrar que a saúde tem demandas tecnológicas crescentes, com novos medicamentos, novos equipamentos, novas terapêuticas e estes gastos nos EUA duplicaram na última década. O professor Bosi Ferraz da UNIFESP resume bem o problema : O Brasil precisa satisfazer as demandas de 2009, com investimentos de 1980 e problemas de saúde ainda de 1960.
Com pouco dinheiro disponível para financiar um sonho tão grande é previsível a catástrofe. O lençol ,curto demais, foi puxado para cobrir a atenção primária ( a cabeça do Sistema) e a Atenção Secundária terminou descoberta: o frio é inevitável. O interessante é que grande parte dos que sonharam o sonho estão agora na gestão do sistema e vivendo as agruras terríveis do monstro que ajudaram a dar à luz. Em casa que falta pão, como diz o populacho, todos brigam e ninguém tem razão. O Ministério da Saúde, há alguns anos, fez um grande movimento pelo estabelecimento de remédios genéricos, de preço mais acessível e com bioequivalência testada. Pois bem, todas as prefeituras que conheço, só compram os famosos similares, também chamados de B.O. , simplesmente porque são mais baratos, embora não tenham qualidade comprovada. Incentivam-se medidas como as Farmácias Populares, o Parto Domiciliar, a Alimentação Alternativa, aparentemente por serem mais baratas, como substitutivo a uma terapêutica científica. Fico desconfiado, porque não vejo profissional de saúde tratar o filho com pneumonia com chá de olho de goiaba; nem presenciei casais de ginecologistas preferirem ter o filho em casa e também nunca vi nenhum empresário importante chegar em restaurante e solicitar farofa de casca de banana. Estas medidas só servem para pobres ?
Recentemente chegou ao Supremo Tribunal Federal um debate crucial: o Estado deve assegurar medicamentos caros para todos ? Explique-se : pacientes que necessitam de medicamentos dispendiosos para tratamento de câncer ou doenças degenerativas, sendo negado o fornecimento pelas Secretarias de Saúde, entram na justiça e conseguem por via judicial. As ações têm sido crescentes e só no ano passado foram mais de duas mil, envolvendo um montante de R$ 52 milhões de gastos com estes medicamentos. As secretarias se sentem prejudicadas, pagando medicamentos caros para poucos e , às vezes, impossibilitados pelos gastos, de dar os medicamentos básicos e baratos para muitos, e recorreram ao STF. Primeiro é importante lembrar que só as classes mais favorecidas têm acesso à justiça e os pobres, mais uma vez, levam desvantagem. Por outro lado, muitas vezes o uso destes medicamentos significa morte impedida ou adiada e só quem entende disto é quem tem um problema em si mesmo ou numa pessoa querida. Depois, R$ 52000,00 , em um ano, não é tanto, não é ? Apenas menos de um terço do que o juiz Lalau conseguiu desviar. Mais uma vez , batemos no mesmo problema: não há dinheiro suficiente e se partimos de premissa errada ( ou seja com uma mixaria é possível dar saúde para duzentos milhões de brasileiros) nunca chegaremos a conclusões verdadeiras. Vamos rasgar junto com o STF a Constituição que tão duramente construimos ?
O SUS vive um momento ímpar. Convidamos milhões de pessoas para uma festa onde seriam servidos caviar e vinho Bordeaux. Quando quebramos o porquinho, descobrimos que só há grana suficiente para oferecer mungunzá e aluá. Ou conseguimos verbas extras para cobrir os gastos do evento sonhado ou reconvidamos todos para uma festinha simples , sem muitos riquififes, umas bolachinhas Maria e uma tubaínas para não entalar.

21/05/09

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Poesia ? Prá que ?

Por que um livro de poesias ?

Os nossos antepassados carregavam consigo dois modos de perceber e perscrutar o mundo, segundo Karen Armstrong: o Mythos e o Logos. Esta dualidade utilizava instrumentos díspares, mas complementares, com o fito de atingir a verdade e cada um possuía sua área específica de atuação. O Mythos remontava às origens da vida, aos fundamentos da cultura e aos níveis mais primais e profundos da mente humana. Reportava-se a significados e símbolos e não a questões práticas. Sem significado preciso, o fardo da existência se torna insuportável. O Mythos criava um contexto que dava sentido ao cotidiano e dirigia a atenção humana para o eterno e o universal. Quando contavam épicas histórias de heróis que desciam do mundo dos mortos, violavam labirintos e dizimavam monstros tenebrosos, as pessoas traziam à luz regiões obscuras do inconsciente, inacessíveis a uma investigação puramente racional. O Mythos só se fazia realidade quando incorporado em cultos e rituais, imantando os homens de um senso de significação sagrada e levando-os a apreender os fluxos mais abissais da existência humana. A pré-modernidade tinha um olhar diferente para o mundo que a cercava, ligava-se mais à significância de cada acontecimento do que ao fato puro e simples.
Na outra extremidade , igualmente importante, existe o Logos : o pensamento racional, pragmático e científico. O Logos, para ser eficaz, necessita ater-se aos fatos e corresponder às realidades exteriores. Se o Mythos conecta-se ao mundo sagrado, o Logos apodera-se da sua face profana. O Logos é prático e avança buscando explorar percepções, adquirir um controle maior sobre o meio, descobrir e inventar novidades. À medida que a ciência se foi firmando, a partir do Século XVII, o Logos exacerbou sua importância e passou-se a tê-lo como único meio de alcançar a verdade. O mundo que a partir dali se foi edificando contradizia a dinâmica da antiga espiritualidade mítica. E os homens passaram a fazer do Logos o Mythos de sua fé. Só que o Logos tem lá sua imensas limitações: não pode aliviar a dor e o sofrimento, a angústia, os mistérios mais profundos da meteórica passagem do homem pelo planeta.

Por que um livro de poesias ?

Se vivemos, segundo Max Weber, enclausurados num mundo que é uma gaiola de aço, uma estrutura reificada e alienada que encerra as pessoas nas leis do sistema como uma prisão ? Por que um livro de poesias? Se transitamos neste mundo de racionalidade limitada, de espírito mercantilista, de lógica mesquinha, do realismo rasteiro da Sociedade capitalista-industrial, do universo do espírito do cálculo racional, uma mera medida quantitativa de perdas e ganhos ? Por que um livro de poesias ? Se habitamos um universo em que o código de barras é muito mais importante que os códigos de ética, Civil e Penal. A racionalidade instrumental, segundo Weber, impregna completamente a vida de nossa sociedade e molda cada gesto, cada pensamento cada comportamento humano. Talvez tenha sido o afastamento absurdo do Mythos que criou a necessidade de desenvolvermos a psicanálise na tentativa desesperada de lidar com nossos anjos e demônios interiores e certamente contribuiu firmemente para que a literatura de Auto-Ajuda, com toda sua superficialidade, vivesse o boom atual. Presos nesta gaiola de aço muitos poetas, atados aos grilhões de um mundo tão pouco glamouroso e sem perspectivas, preferiram a saída pela porta de emergência : Torquato Neto, Virgínia Wolf, Maiakóvsky, Goytisolo, Paul Celan, Gabriel Ferrater, Alfonsina Storni, Kostas Kariotakis, Cesar Pavese,Luiz Hernandez, Maria Poliduri, John Berryman, Ana Cristina César, Sylvia Plath, Byron e tantos tantos outros. Sem falar nos que terminaram no manicômio como Ezra Pound, Geraldo Urano, Dylan Thomas, Artaud e Lima Barreto. E o próprio Pound ( recolhido ao Hospital Psiquiátrico) já havia premonitoriamente vaticinado : “Estou bem aqui, para viver nos Estados Unidos , amigos, só é possível mesmo se for dentro de um hospício !” Tiveram todos que escolher entre morrer de ópio ou de tédio. Esmagados pelas hastes de aço da gaiola , cortaram-se com o canto do papel, enforcaram-se no fio da poesia.


Por que um Livro de Poesias?

Num mundo utilitarista como o nosso, por que um livro de poesias? Se Oscar Wilde já acentuara que toda arte é perfeitamente inútil e Paulo Leminsky acrescentara que um poema é uma objeto inutilitário. Pois bem, amigos, pasmem vocês, a poesia é uma tentativa subversiva de re-encantamento do mundo. Ela tem a capacidade quase que única de reascender no coração humano os momentos mágicos apagados pela civilização burguesa como : a paixão, o amor-louco, a imaginação, o mito, o maravilhoso, o onírico, a revolta, a utopia. A poesia, no dizer, de Michel Löwy é um estado de insubmissão , de revolta que arranca suas forças das profundezas cristalinas do inconsciente, dos abismos insones do desejo,dos poços mágicos do prazer, das músicas incandescentes da imaginação. A poesia nos traz a possibilidade singular de reconectarmos com o Mythos e estabelecer um percurso à deriva, no dizer de Guy Debord, fugindo às leis de ferro do utilitarismo. De escapar do bando que na busca de uma aparente segurança, segue a manada, sem refletir, sem olhar o mundo ao derredor, apenas anda e anda e anda em direção ao penhasco que o espreita, ávido, na próxima curva da estrada . De uma forma lúdica , este ato de ruptura nos lança a um passeio ao reino encantado da Liberdade tendo o acaso como única bússola disponível. Por tudo isso , mais que nunca, a Poesia ,nos tempos atuais, bem mais que um exercício de Liberdade projeta-se como um ato de sublevação contra o engessamento, o empalhamento, o curare mortal do comodismo, do mesmismo, da uniformização das mentes, da clonagem cultural.
Assim quando o nosso Batista de Lima , para desespero inicial do pai, seu Chico de Osmundo, negou-se a entrar no seminário, ele certamente se afastava do religioso, mas , em nenhum momento, estava renunciando ao Sacro. A Poesia está no alicerce de todo Mythos e é de suas fontes que fluem os mananciais do Sagrado.
Pois bem, amigos, eis aqui “O Sol de cada Coisa” do nosso Batista. Estimulando mentes e corações a perceberem a beleza única e efêmera que refulge de cada pequenino objeto deste mundo. Se tocados por sua arte nos libertarmos do embotamento a que nos sujeita a chatice da Sociedade de Consumo, descobriremos que o brilho de cada coisinha deste mundão de meu Deus é apenas um mero reflexo da luz interior de cada um de nós e Maiakovsky já havia adiantado : Gente é para Brilhar !

“Brilhar para sempre,
brilhar como um farol,
brilhar com brilho eterno,
Gente é pra brilhar”

A poesia de Batista de Lima traz consigo todos os ingredientes que temperam a arte dos grandes poetas. Profundamente telúrico, consegue, focado no pequeno e encantado mundo da sua infância, perscrutar o universo em todas as suas contraditórias facetas e dimensões. Percebe que a vida se resume quase que completamente aos anos dourados da nossa meninice e adolescência, a partir daí a existência se restringe em se acompanhar o séquito fúnebre do menino que um dia existiu em cada um de nós. E só os artistas têm a mágica capacidade de manter este guri imortal e redivivo. Singelos, simples e escorreitos os versos de Batista de Lima atingem , estranhamente, uma profundidade inesperada. Conciso , sintético , escolhe as palavras com precisão quase que cirúrgica. Posta-se diante do poema como um encantador de serpentes entre a pessoa e a peçonha, entre o vento e o veneno. Como todo grande poeta, Batista tem a coragem de revolver temas cotidianos já trilhados vastamente por outros bardos : o amor, a paixão, a vida, o momento, a revelação, a beleza e deles arrancar novas sensações, novos olhares, novas fragrâncias.


“Plantador de correntezas
Tenho caçado palavras
Como quem caça veredas
No coração dos caminhos
Sopro de dor e de espanto
No meio desse destino
No tino do desencanto
No canto do desatino”


Por tudo isto, é imprescindível ler os poemas do nosso Batista de Lima. Todos que quiserem descobrir que ainda sobrevive uma lua por trás da lâmpada de Néon; que explorar outros planetas é tão importante quanto deslindar a existência de vida a brilhar e pulsar bem distante das vitrines dos shoppings; que a tristeza é apenas a felicidade de férias; que a vida não se resume a uma mera planilha do Excel; que é possível, sim, quebrar as tariscas opressoras da “gaiola de aço”. Mais que um livro de poemas “O Sol de cada coisa” é um Manual de Sobrevivência na Selva. Há dois anos a modernidade parecia ter engolido o Engenho velho do Taquari. Quando se acreditou que estava de fogo morto eis que renascem as velhas moendas de seu Zé Cândido , no engenho e arte de Batista de Lima, inundando o mundo com o alfinim do lirismo, com a garapa do sonho, com o doce mel da esperança.

Por isso mesmo, amigos , um livro de poesia!
Por tudo isso os poemas do nosso Batista de Lima!


(Apresentação do Livro "O Sol de cada Coisa" de Batista de Lima feita por J. Flávio Vieira em 15/05/09 -URCA)





sexta-feira, 15 de maio de 2009

Fênix

Súbito, obra-se o milagre da ressurreição. Os galhos ressequidos, retorcidos e nus, que pareciam clamar aos céus por chuva, recobrem-se do manto verde e resplandecente da esperança, mal os primeiros pingos caem dos céus. Da noite para o dia, mal desponta o inverno, a crua e transparente paisagem veste roupa de gala , como a esperar pela festa tantas vezes prometida e outras tantas adiada. Os sapos aparecem como por geração espontânea e preenchem o mundo com um coaxar repetitivo em feitio de mantra. As formigas , outrora presas à sequidão da terra, tornam-se aladas , ganham o espaço e, já não suportam a subterrânea escuridão: banham-se e queimam-se de luz. . As tanajuras desfilam exuberantes e sexys, parecendo Carlas Perez em meio ao tchan da natureza.. Os pássaros antes raros e desconfiados, singram a amplitude , impávidos , como brigadeiros do ar. Os homens, de pele cinza, mimetizando-se com a paisagem, testemunhas de tão deslumbrante espetáculo de ressurreição, transformam-se, vestem a alma de linho : primaveram e invernam. De repente, a natureza é uma una e rediviva : uma fênix de penas verdes e canto multiforme e mavioso.
Untamos nossas vidas nordestinas na bipolaridade das estações. Verão para nós não é sinônimo de praia e de bronze; é apenas a dura e áspera perspectiva do inverno ansiosamente esperado, cuidadosamente profetizado. O verão carrega consigo, umbilicalmente, o outono que despe descaradamente e sem escrúpulos os marmeleiros.Ele, com o seu fogo, forja-nos a alma para a luta incessante contra as adversidades climáticas . Aprendemos a sobreviver em meio às pedras, e aos seixos; à mucunã e ao catolé. O Inverno, por outro lado, imanta-se em primavera e transforma a paisagem debuxada em nanquim, numa esplendorosa aquarela. Como se fora o Yang e o Yin, o verão e o inverno nos ensinam a cada dia a possibilidade eterna de renascer. O deserto da nossa alma, a seca dos nossos sentimentos, a estiagem em nosso coração, quem sabe, são meros acidentes da nossa metereologia vital . Abramos, pois, os riachos dos nossos sentidos, preparemos os açudes do nosso espírito e aguardemos pacientes as gotas benfazejas que haverão de cair , mais cedo ou mais tarde, para a ressurreição da nossa vida. Ah ! E não esqueçamos de semear, enquanto a chuva não vem, uma ou outra begônia, em algum canteiro esquecido do nosso peito... é bom esperar os novos tempos com uma flor na lapela !

15/05/09

quinta-feira, 7 de maio de 2009

O Defluxo da Bacurinha

Invariavelmente era mesmo assim. Finalzinho de tarde havia um encontro marcado, pré-estabelecido, na Praça da Matriz. Os comerciantes iam fechando suas lojinhas, os empregados saindo do trabalho e Matozinho ia se preparando pra se envolver por baixo do manto da noite. Antes do recolhimento, uma talagada no Bar do Giba e uma conversa atirada da boca pra fora nas rodinhas da praça. Existia quase que uma pauta definida. Primeiramente as últimas fofocas da cidade , depois as notícias do estado, do país e do mundo, estas últimas filadas do rádio do Coronel Serapião Garrido, o único da cidade totalmente confiável. Os outros eram dados a emitir mentirinhas e noticiário fantasioso de vez em quando. Havia dois moderadores nestas conversas de fim de tarde , escolhidos por conta do bigodão e do poder de fogo: Rui Pincel, o filósofo da vila e o próprio coronel Serapião, proprietário da agência Reuteurs de Matozinho: o velho radião Cliper que tinha mais válvulas do que motor de Mavericks.
Naquele dia, pularam-se algumas notícias locais. Havia uma temperadíssima história de chifre envolvendo Zé Maliça, um conhecido pistoleiro da cidade, mas o homem estava presente à reunião e ninguém se afoitou a puxar o assunto, temendo chifrada na traseira e chuncho no pescoço. O primeiro item da pauta , então, versou sobre o uso de passagens por parte dos vereadores locais. Explique-se: a Câmara Municipal havia disponibilizado passagens na velha sopa de “seu Duzentos” para os vereadores, com o intuito de facilitar-lhes o deslocamento até suas bases eleitorais. A medida, grosso modo, parecia perfeitamente justificável e exeqüível, para qualquer estrangeiro que não conhecesse um mínimo de Brasil. Tudo andou às mil maravilhas até que o Conselho de Contas resolveu, claro por motivos políticos, dar um baculejo no trem da alegria. Como era previsível, descobriu o impensável. Passagens distribuídas à mancheias para parentes, aderentes , quengas, amigos e inimigos . Num só mês haviam furado o bucho do erário em mais de oitocentos mil reais. E o pior: o velho Duzentos, misteriosamente, continuava na mesma pindaíba de sempre.
--- Até o velho Tadeu Marcolino ! -- Lembrou Rui Pincel. O homem parecia um rato de igreja, carregando opa de Santíssimo e enredando tudo quanto é de mal feito ao Padre Saturnino ! Pois tinha até passagem para o lua no nome dele ! Eu nem sabia que a sopa de Duzentos tinha sido envenenada e virado sputinik!
O segundo assunto: o inverno caudaloso.
--- O velho Pedrácio parece que estrompou as torneiras do céu, lembrou Generino. Já tem sapo trepado em cabeça de estaca pedindo socorro. No Piauí, , a enxurrada foi tão grande que morreu curimatã afogada. Já tem pato nadando com bóia e jia pulando na água com duas cabaças amarradas na cintura !
Jojó Fubuia – no seu estado natural , ou seja meio melado – acrescentou de lá com a voz meio engrolada:
--- Pois num é que sonhei ontem com o velho Nicanor que morreu na enchente do Paranaporã , semana passada! Ele me contou que na enxurrada um velho observava tudo de longe trepado numa nuvem e, horrorizado, dizia que nunca na vida tinha visto um pé d´água daquele calibre. Sabe quem era o homem que se horrorizava tanto com o chuvaral, Generino ?
--- Sei lá, homem de Deus !
--- Noé, meu senhor, o velho Noé, o almirante do dilúvio !
À medida que a pauta ia sendo cumprida, os pracianos perceberam que um dos personagens centrais das encontros permanecia lacônico e de cenho contraído. O dono da Reuteurs de Matozinho. O coronel Serapião não metera sua colher de pau em nenhum dos assuntos levantados até então. Instado a tornar públicas suas preocupações, manteve um silêncio obsequioso por alguns minutos. Depois, com cara de quem dá aviso de ensebamento de capim de vivente, confessou:
--- Sei não, meus amigos! Ando preocupado. Ontem visitei a fazendo do capitão Sinfrônio, no caminho pra Bertioga. Pois no chiqueiro tava lá uma ruma de porco: mexe cu pra cá, mexe cu prá lá... E o pior : ainda vi três barrão espirrando, Ave Maria !
Os circunstantes acompanharam o raciocínio, mas não conseguiam entender a preocupação.
--- E o que é que tem isso, Serapião ? Mexe cu, barrão espirrando ? Que charada da peste é essa?
--- Vocês num entenderam não, bando de Zé Mané ? Isso é um sinal dos tempos...Não ouve rádio, não ? Tá dando uma doença feia lá pras banda do México que eu acho que é lá perto do Cococi. Comeu lingüiça, toucinho, já pegou! O cabra com a enfermidade pula na lama e morre espojando e falando:cochim-cochim-cochim. Dizem que é um tal de defluxo da bacurinha e acho , pelo que vi na fazenda de Sinfrônio, que ta chegando por aqui. Pelo sim, pelo não, a rodinha se desfez rapidamente, o povo se trancou em casa e só olha agora o mundo pelas gretas das portas. Pedro Magarefe que negocia com miúdos de porco teve que mudar o meio de vida. Bacurim, em Matozinho, tá vivendo mais que Matusalém e só morre gagá e de arteriosclerose.

07/05/09

sexta-feira, 1 de maio de 2009

O Fato e a Versão

Alguém já afirmou que a versão é muito mais importante do que o fato em si. Talvez seja justamente esta lei que resume toda atividade jornalística. Houve um tempo em que as informações circulavam de boca em boca e, claro, que, a cada passagem de língua, as histórias iam tomando nuances próprias que dependiam da capacidade inventiva do povo, mas, também, dos muitos interesses envolvidos no enredo que cada um passava adiante. Os primeiros meios de comunicação de massa como jornais e rádios trouxeram a possibilidade de multiplicar a difusão das histórias e os poderes político e econômico perceberam, rapidamente, que tinham em mãos um instrumento poderosíssimo. Passavam a ter controle de milhares de línguas com capacidade de espalhar a versão que mais lhes interessava. Podiam cometer os crimes mais hediondos, as fraudes mais estapafúrdias, a corrupção mais deslavada pois possuíam nas mãos a mídia capaz de torná-los santos e cândidos. Detinham o monopólio das versões. Assim não existe jornalismo imparcial, a informação sempre está a serviço de grupos ideológicos e econômicos. A luta sempre deve ser no sentido de que todos tenham igual acesso democrático à veiculação das suas versões e, mais, que tenham apurado senso crítico para perceber, claramente, que interesses existem mascarados por trás de cada notícia veiculada. Com a globalização das informações nos últimos tempos, esta arma midiática se tornou bem mais poderosa, mas , por outro lado, democratizou-se mais e fugiu um pouco ao controle do Poder. O grande problema nos dias atuais é filtrar , no meio do turbilhão de versões acessadas, aquelas com um mínimo teor de credibilidade e, mais, entender a intenção subjacente.
Em Matozinho, Gutemberg ainda não havia chegado com suas prensas. A informação e a contra-informação perambulavam de língua em língua e se amplificavam apenas nas rodinhas da Praça da Matriz, na Igreja e nas conversas no Bar do Giba e na Botica de Janjão. Além disso, havia naturais difusoras na vila que eram suas fofoqueiras, imprescindíveis ao leva-e-traz, à fabricação de inimizades e à tessitura de intrigas. Algumas, como D. Filó, morassem em cidades maiores e mais conflituosas, já teriam envenenado as relações internacionais e o planeta já estaria vivendo, segundo Rui Pincel, sua quarta ou quinta Guerra Mundial.
Segundo nosso filósofo, quem primeiro em Matozinho percebeu a importância da versão e não do fato em si, teria sido o velho Chico Liberalino. Ele vivia na cidade do aluguel de alguns imóveis que herdara do pai. Nunca fora de muito trabalho. Suor de Chico, no dizer de Rui Pincel, tinha poder de curar tudo quanto é enfermidade perigosa: câncer, paludismo, hidropsia e “até está tal de gripe do bacurim que vai terminar chegando por aqui”. Chico tinha um filho que herdara do pai a mesma disposição. Grandão, meio destrambelhado e gorducho, andava com passadas largas como quem toma chegada prá atirar em nambu. Confiado no tamanho, Albericão gostava de se meter em arranca-rabos, geralmente escolhendo com cuidado seus contendores entre os mais franzinos da cidade. O filho de Chico contava uma vantagem danada. Aumentava seus atos heróicos e seus embates e epopéias, traçando histórias que fariam inveja a Ferrabraz.
Um belo dia, pai e filho saíram para cobrar um aluguel atrasado de Zé do Sal. O homem alugara um pequeno quartinho a Liberalino e lá instalara uma bodega sortida. Vendia de um tudo. O comércio vivera até com certa estabilidade até que Zé se acoloiou com uma mulher dama da Rua do Caneco Amassado. O estabelecimento começou a não dar lucro suficiente para sustentar as duas famílias e, mais, pagar o aluguel de Liberalino que já varava mais de três meses sem o devido ressarcimento. Foi com este mister que Chico e e Albericão saíram decididos a ter a pendenga resolvida. Zé era um rapazinho franzino e meio empererecado. Só que morara durante muitos anos na Bahia e lá se fizera professor de capoeira, embora nunca tivesse exercido esta função após a volta a Matozinho, possivelmente por falta de alunos.
Em lá chegando, pai e filho, colocaram Zé na maior sinuca de bico. Queriam porque queriam o atrasado. De início a conversa até transcorreu com uma certa civilidade, mas rápido partiu para a agressão verbal. Albericão, confiado no seu físico, resolveu ir às vias de fato e exemplar o inquilino. Não sabia das proezas marciais de Zé. Nas primeira tentativa de tapa, recebeu Albericão uma pernada no tronco das orelhas e se estendeu no chão. Zé do Sal, num salto de felino, pulou em cima e passou a bater nele sem pena. Nisso Liberalino , ciente de que não poderia ajudar muito ao filho, resolveu utilizar o poder da propaganda. Como a briga acontecesse no interior da bodega, em pleno dia de feira, Chico se pôs na porta do estabelecimento e começou a gritar a plenos pulmões :
--- Vamo Simbora, Albericão, já basta ! Num mate o homem de peia não ! Já basta, meu filho ! Ele vai terminar pedindo o caco!
Albericão sofreu uma surra fenomenal mas até hoje Matozinho conta uma versão que ele fez Zé do Sal se mijar todinho com o tamanho da sova que levou.

01/05/09