segunda-feira, 18 de maio de 2009

Poesia ? Prá que ?

Por que um livro de poesias ?

Os nossos antepassados carregavam consigo dois modos de perceber e perscrutar o mundo, segundo Karen Armstrong: o Mythos e o Logos. Esta dualidade utilizava instrumentos díspares, mas complementares, com o fito de atingir a verdade e cada um possuía sua área específica de atuação. O Mythos remontava às origens da vida, aos fundamentos da cultura e aos níveis mais primais e profundos da mente humana. Reportava-se a significados e símbolos e não a questões práticas. Sem significado preciso, o fardo da existência se torna insuportável. O Mythos criava um contexto que dava sentido ao cotidiano e dirigia a atenção humana para o eterno e o universal. Quando contavam épicas histórias de heróis que desciam do mundo dos mortos, violavam labirintos e dizimavam monstros tenebrosos, as pessoas traziam à luz regiões obscuras do inconsciente, inacessíveis a uma investigação puramente racional. O Mythos só se fazia realidade quando incorporado em cultos e rituais, imantando os homens de um senso de significação sagrada e levando-os a apreender os fluxos mais abissais da existência humana. A pré-modernidade tinha um olhar diferente para o mundo que a cercava, ligava-se mais à significância de cada acontecimento do que ao fato puro e simples.
Na outra extremidade , igualmente importante, existe o Logos : o pensamento racional, pragmático e científico. O Logos, para ser eficaz, necessita ater-se aos fatos e corresponder às realidades exteriores. Se o Mythos conecta-se ao mundo sagrado, o Logos apodera-se da sua face profana. O Logos é prático e avança buscando explorar percepções, adquirir um controle maior sobre o meio, descobrir e inventar novidades. À medida que a ciência se foi firmando, a partir do Século XVII, o Logos exacerbou sua importância e passou-se a tê-lo como único meio de alcançar a verdade. O mundo que a partir dali se foi edificando contradizia a dinâmica da antiga espiritualidade mítica. E os homens passaram a fazer do Logos o Mythos de sua fé. Só que o Logos tem lá sua imensas limitações: não pode aliviar a dor e o sofrimento, a angústia, os mistérios mais profundos da meteórica passagem do homem pelo planeta.

Por que um livro de poesias ?

Se vivemos, segundo Max Weber, enclausurados num mundo que é uma gaiola de aço, uma estrutura reificada e alienada que encerra as pessoas nas leis do sistema como uma prisão ? Por que um livro de poesias? Se transitamos neste mundo de racionalidade limitada, de espírito mercantilista, de lógica mesquinha, do realismo rasteiro da Sociedade capitalista-industrial, do universo do espírito do cálculo racional, uma mera medida quantitativa de perdas e ganhos ? Por que um livro de poesias ? Se habitamos um universo em que o código de barras é muito mais importante que os códigos de ética, Civil e Penal. A racionalidade instrumental, segundo Weber, impregna completamente a vida de nossa sociedade e molda cada gesto, cada pensamento cada comportamento humano. Talvez tenha sido o afastamento absurdo do Mythos que criou a necessidade de desenvolvermos a psicanálise na tentativa desesperada de lidar com nossos anjos e demônios interiores e certamente contribuiu firmemente para que a literatura de Auto-Ajuda, com toda sua superficialidade, vivesse o boom atual. Presos nesta gaiola de aço muitos poetas, atados aos grilhões de um mundo tão pouco glamouroso e sem perspectivas, preferiram a saída pela porta de emergência : Torquato Neto, Virgínia Wolf, Maiakóvsky, Goytisolo, Paul Celan, Gabriel Ferrater, Alfonsina Storni, Kostas Kariotakis, Cesar Pavese,Luiz Hernandez, Maria Poliduri, John Berryman, Ana Cristina César, Sylvia Plath, Byron e tantos tantos outros. Sem falar nos que terminaram no manicômio como Ezra Pound, Geraldo Urano, Dylan Thomas, Artaud e Lima Barreto. E o próprio Pound ( recolhido ao Hospital Psiquiátrico) já havia premonitoriamente vaticinado : “Estou bem aqui, para viver nos Estados Unidos , amigos, só é possível mesmo se for dentro de um hospício !” Tiveram todos que escolher entre morrer de ópio ou de tédio. Esmagados pelas hastes de aço da gaiola , cortaram-se com o canto do papel, enforcaram-se no fio da poesia.


Por que um Livro de Poesias?

Num mundo utilitarista como o nosso, por que um livro de poesias? Se Oscar Wilde já acentuara que toda arte é perfeitamente inútil e Paulo Leminsky acrescentara que um poema é uma objeto inutilitário. Pois bem, amigos, pasmem vocês, a poesia é uma tentativa subversiva de re-encantamento do mundo. Ela tem a capacidade quase que única de reascender no coração humano os momentos mágicos apagados pela civilização burguesa como : a paixão, o amor-louco, a imaginação, o mito, o maravilhoso, o onírico, a revolta, a utopia. A poesia, no dizer, de Michel Löwy é um estado de insubmissão , de revolta que arranca suas forças das profundezas cristalinas do inconsciente, dos abismos insones do desejo,dos poços mágicos do prazer, das músicas incandescentes da imaginação. A poesia nos traz a possibilidade singular de reconectarmos com o Mythos e estabelecer um percurso à deriva, no dizer de Guy Debord, fugindo às leis de ferro do utilitarismo. De escapar do bando que na busca de uma aparente segurança, segue a manada, sem refletir, sem olhar o mundo ao derredor, apenas anda e anda e anda em direção ao penhasco que o espreita, ávido, na próxima curva da estrada . De uma forma lúdica , este ato de ruptura nos lança a um passeio ao reino encantado da Liberdade tendo o acaso como única bússola disponível. Por tudo isso , mais que nunca, a Poesia ,nos tempos atuais, bem mais que um exercício de Liberdade projeta-se como um ato de sublevação contra o engessamento, o empalhamento, o curare mortal do comodismo, do mesmismo, da uniformização das mentes, da clonagem cultural.
Assim quando o nosso Batista de Lima , para desespero inicial do pai, seu Chico de Osmundo, negou-se a entrar no seminário, ele certamente se afastava do religioso, mas , em nenhum momento, estava renunciando ao Sacro. A Poesia está no alicerce de todo Mythos e é de suas fontes que fluem os mananciais do Sagrado.
Pois bem, amigos, eis aqui “O Sol de cada Coisa” do nosso Batista. Estimulando mentes e corações a perceberem a beleza única e efêmera que refulge de cada pequenino objeto deste mundo. Se tocados por sua arte nos libertarmos do embotamento a que nos sujeita a chatice da Sociedade de Consumo, descobriremos que o brilho de cada coisinha deste mundão de meu Deus é apenas um mero reflexo da luz interior de cada um de nós e Maiakovsky já havia adiantado : Gente é para Brilhar !

“Brilhar para sempre,
brilhar como um farol,
brilhar com brilho eterno,
Gente é pra brilhar”

A poesia de Batista de Lima traz consigo todos os ingredientes que temperam a arte dos grandes poetas. Profundamente telúrico, consegue, focado no pequeno e encantado mundo da sua infância, perscrutar o universo em todas as suas contraditórias facetas e dimensões. Percebe que a vida se resume quase que completamente aos anos dourados da nossa meninice e adolescência, a partir daí a existência se restringe em se acompanhar o séquito fúnebre do menino que um dia existiu em cada um de nós. E só os artistas têm a mágica capacidade de manter este guri imortal e redivivo. Singelos, simples e escorreitos os versos de Batista de Lima atingem , estranhamente, uma profundidade inesperada. Conciso , sintético , escolhe as palavras com precisão quase que cirúrgica. Posta-se diante do poema como um encantador de serpentes entre a pessoa e a peçonha, entre o vento e o veneno. Como todo grande poeta, Batista tem a coragem de revolver temas cotidianos já trilhados vastamente por outros bardos : o amor, a paixão, a vida, o momento, a revelação, a beleza e deles arrancar novas sensações, novos olhares, novas fragrâncias.


“Plantador de correntezas
Tenho caçado palavras
Como quem caça veredas
No coração dos caminhos
Sopro de dor e de espanto
No meio desse destino
No tino do desencanto
No canto do desatino”


Por tudo isto, é imprescindível ler os poemas do nosso Batista de Lima. Todos que quiserem descobrir que ainda sobrevive uma lua por trás da lâmpada de Néon; que explorar outros planetas é tão importante quanto deslindar a existência de vida a brilhar e pulsar bem distante das vitrines dos shoppings; que a tristeza é apenas a felicidade de férias; que a vida não se resume a uma mera planilha do Excel; que é possível, sim, quebrar as tariscas opressoras da “gaiola de aço”. Mais que um livro de poemas “O Sol de cada coisa” é um Manual de Sobrevivência na Selva. Há dois anos a modernidade parecia ter engolido o Engenho velho do Taquari. Quando se acreditou que estava de fogo morto eis que renascem as velhas moendas de seu Zé Cândido , no engenho e arte de Batista de Lima, inundando o mundo com o alfinim do lirismo, com a garapa do sonho, com o doce mel da esperança.

Por isso mesmo, amigos , um livro de poesia!
Por tudo isso os poemas do nosso Batista de Lima!


(Apresentação do Livro "O Sol de cada Coisa" de Batista de Lima feita por J. Flávio Vieira em 15/05/09 -URCA)





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