sábado, 28 de fevereiro de 2009

A Troça


“E qual é a natureza do Deserto ?
é uma terra onde todos vivem uma vida
falsa, fazem a mesma coisa que os outros
fazem, do modo como lhes foi ensinado,
sem que ninguém tenha coragem de viver sua
própria vida.”
Joseph Campbell



Para Campbell (1904-1987), um dos mais profundos estudiosos da Mitologia, existem duas forças inconscientes na raça humana impulsionadoras das histórias mitológicas. A primeira delas é a nossa Finitude . Somos espécie extremamente perecível e de vida curtíssima se comparada , por exemplo, aos reinos mineral ou vegetal ou mesmo a outras espécies menos desenvolvidas como as tartarugas. Este terror da estrada tão curta e com tantos abismos nos assalta a cada passo. A outra delas é a constatação da nossa selvageria intrínseca : para sobrevivermos temos que devorar outras espécies diariamente , vegetais ou animais. Este destino canibalesco nos persegue sem trégua. Parece-nos aterrador , com tanto desenvolvimento humano, com tanto avanço tecnológico, não conseguirmos escapar das mais primárias leis da floresta. Para escapar no planeta , mesmo dentro dos limites apertados da nossa finitude, temos que utilizar meios não diferentes do lobo e do chacal. A maior parte dos mitos, assim, surgem de forças inconscientes que buscam , como um mecanismo de defesa, minorar um pouco esta constatação aterradora: por mais importantes e civilizados que os homens se sintam, não passam de canibais de vida brevíssima.
Assim, os rituais de morte em toda nossa trajetória aqui pela terra são carregados de significado. Quase todos pregam uma possibilidade de transcendência. A vida não é só esta curta passagem terrestre, mas continuaria infinitamente em outras dimensões. As cerimônias religiosas variam histórica e geograficamente, mas todas carregam consigo este potencial mágico de prolongar a existência humana. Algumas em espírito como na Umbanda, no Kardecismo e no Budismo; outras como entre os Cristãos, os islâmicos e os egípcios : em corpo e alma. O anverso e reverso desta mesma moeda estão, como era de se esperar, ligados umbilicalmente e a outra dimensão mágica desta vida é necessariamente um reflexo da dimensão real. Do outro lado colheremos o que plantamos por aqui ou teremos que continuar semeando por lá até que nasçam frutos opimos e saborosos.
Entre nós os rituais fúnebres são bem mais leves entre os Kardecistas, os Budistas e no Camdomblé . Entre os Cristãos percebe-se que , mesmo com a promessa inconteste de ressurreição plena futura , existe uma difícil digestão da partida final. Talvez porque o sentimento de culpa que nos é imposto desde a infância seja aterrorizante. Nascemos já com uma dívida de uma maçã digerida ainda no Gênesis e com a pena eterna da crucificação de Cristo; além dos espectros do inferno e purgatório a nos perseguir. O pavor do julgamento final, por mais misericórdia que se pregue na imagem do Criador, é sempre vultoso. As religiões que acreditam na Reencarnação , por outro lado, apresentam a cômoda possibilidade de se pagar a dívida eterna em módicas prestações reencarnatórias. Diferentemente, em Nova Orleans , o berço do jazz, os funerais começam geralmente acompanhados de bandas afinadíssimas tocando blues , mas a partir de um certo momento, atacam com músicas animadas e carnavalescas e as pessoas dançam e pulam, inclusive o fazem com o próprio caixão, incluindo o falecido no baile. É como se simulassem o ritual de morte-renascimento. Choramos pela morte, mas comemoramos o renascimento neste mesmo instante
Talvez, por tudo isto, o Carnaval, entre nós , seja uma festa tão gigantesca e de tanto significado mitológico. Claro que estou me referindo a um Carnaval como de Olinda e Recife. O de Salvador é uma indústria de entretenimento, perdeu toda característica de uma festa popular. A maisena foi substituída pela Caixa Registradora. O período momino nos dá uma espécie de salvo-conduto religioso. É como se tapássemos os olhos de todos os vigilantes da moralidade por cinco dias. Quebram-se as fronteiras sociais e todas as castas se misturam sem nenhum apartheid. Os códigos de conduta, os rigores do moralismo se esfacelam. Chutamos o traseiro de Apolo e caímos nos braços de Dionísio. Cada um veste seu figurino e , naqueles cinco dias, representa um personagem no grande palco da vida. O empresário se veste de urso, a mocinha de melindrosa, o rapaz de prostituta, o menino de super-herói. Tudo que acontece é perfeitamente transitório e temporário: as relações, as brincadeiras , as danças, os movimentos, os afetos. Simplesmente porque são realizados pelos personagens de que cada um está travestido. Na quarta-feira, despem-se as roupas da Cinderela e os personagens saem de cena, já não é possível encontrar a dona do sapatinho de cristal. Todos os blocos têm uma relação muito suave com a perspectiva da morte. A cada ano vão faltando foliões inveterados. Homenagens são feitas, a saudade claro, existe, mas em nenhum momento se quebra a alegria da festa. Os frevos e os bonecos gigantes eternizam o nome deles : Felinto, Pedro Salgado, Guilherme Fenelon, Raul Morais, Capiba, Nélson Ferreira, Edgar Morais, Batata, Enéas do Galo da Madrugada. Além dos antigos blocos que foram desaparecendo : Bloco das Flores, Andaluz, Pirilampos,Turunas de São José, Apóis Fum. A sensação que todos têm é que , agora, com suas ausências naturais, os que ficam têm que manter a tudo custo alegria e a ludicidade da festa. Existia em Olinda um senhor humilde chamado Mário Raposo e que todo carnaval se vestia de fraque e cartola e incorporava um personagem conhecido por todos : “O Lord”. Há dois anos seu Mário partiu e, defronte da sua casa, na Rua do Amparo, há um pôster extremamente significativo, colocado desde então em todo Carnaval . Um retrato grande do Lord e abaixo : “ Mário Raposo – Saudades Sim, Tristeza Nunca !”.Talvez as Cinzas da Quarta-Feira já tenham sido colocadas estrategicamente depois da folia para jogar água morna no povo, trazendo-os de volta à culpabilidade da vida cotidiana.
O Carnaval traz consigo, assim, este grande potencial mitológico e terapêutico. A existência , quem sabe, é uma espécie de troça chamada de “A Vida é Maravilhosa”. Os foliões terão sempre uns poucos dias para brincar; todos se disfarçarão de muitos personagens neste desfile; muitos irão saindo , pouco a pouco , do corso e os que ficam precisam manter a alegria da festa e, mais, se divertir pelos que ficam e pelos que já não estão presentes. É preciso manter erguido o estandarte da troça: a saudade não poderá nunca se transformar em tristeza. E, como nunca se sabe quando a festa acaba, é mergulhar no passo, antes que no horizonte irrompa a quarta-feira ingrata com suas cinzas de chumbo.


27/02/09

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Cinzas


Despertou com aquele gosto arenoso na boca, como se tivesse ingerido todas as cinzas da quarta-feira ingrata. Os sons metálicos de um frevo distante e agora quase que ininteligível se dissolviam no ar. As ruas se recobriam com os últimos espólios da guerra dos quatro dias. Confetes e serpentinas se misturavam ao lixo comum , agora já sem asas e magia. Até os rapapés febris dos passistas do “Bacalhau do Batata”, o soldado de Pompéia da folia, pareciam já longínquos e perfeitamente obsoletos.O mundo em volta ia pouco a pouco perdendo seu ar de festa e a vida crua, aguda como a ponta do punhal, voltava a preencher o espaço com um insuportável clima de normalidade. Os homens começavam a arrancar suas máscaras fictícias e, paulatinamente, iam cobrindo a face com aquelas outras mais reais e duradouras. Arlequins sem Colombinas, Catirinas viúvas de seus Mateus , Super-Heróis sem espinafre, amolecidos pela Kriptonita cotidiana, perambulam sem destino num planeta estranho e desconhecido. A La Ursas matracam em compasso ternário as suas matracas. Papangus já sem a proteção do anonimato retornam para casa a fim de prestar contas a suas patroas da fuga do presídio doméstico por tantos dias . Caboclos de Lança fazem a viagem de volta à roça agora já sem o luxo cerimonialista da túnica multi-espelhada e da farta cabeleira multicolor. Como se o ritmo da vida se marcasse agora pelo toque cadenciado, em mantra, do seu chocalho. Os Maracatus, respeitosamente, silenciam seu baque virado e retornam, religiosamente, aos terreiros.
Cuspiu no chão aquele gosto de cabo de guarda-chuva e ficou matutando : a vida se resumia exatamente àquilo : à Festa, à Celebração. A chama acesa e em brasa da existência se consubstanciava no anarquismo inocente do Carnaval. Perdidos todos , sem saber de onde viemos e para onde marchamos, passamos a comemorar a esta louca e misteriosa viagem. Travestidos todos dos nossos desejos mais impenetráveis, abraçando desconhecidos, dançando com figuras aparentemente estranhas e beijando línguas que jamais teremos capacidade de saborear outra vez. Tocamos outros corações com a vara de condão do etéreo e do fugaz e imprimimos um volátil ar de eternidade nos nossos sentimentos. A festa nos abre, quase que imediatamente, a perspectiva sombria do fim-de-festa. O pistão que ataca metalicamente o “Vassourinhas” é o mesmo que logo depois entoará o Toque de Silêncio. A vida se vai escoando assim mais entre bemóis que sustenidos. E adiante, por mais efervescente e estupenda que tenha sido a festividade, as máscaras cairão por terra, as serpentinas perderão sua sinuosidade ofídica e a vida terminará por cobrir-se daquela substância que preenche as gargantas e as quartas-feiras : Cinzas !


Crato, 26/02/09

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

O Circo da Moralidade em Matozinho

Cidadezinha perdida no meio deste mundão de meu Deus, Matozinho tinha poucos eventos que saculejavam sua estrutura até as raízes. A festa de Santa Genoveva, o Judas na Semana Santa talvez fossem as festividades mais típicas da vila e que mais remexiam com a alma dos matozenses. Havia, no entanto, uma atração itinerante que revolvia seu povo e trazia um invejável clima de alegria : O Circo. Simplesmente porque ele atraía a meninada , os jovens e, sabe-se lá como, transformava os adultos e velhos em criancinhas de colo. O circo imprimia em todos o mais puro magnetismo. Por mais simples que fosse a companhia sempre inundava a cidade de um ar lúdico com as piruetas dos palhaços, as mágicas indecifráveis, o rodopiar dos malabares , os mortais dos trapezistas e aquela fina sensualidade das partners e dançarinas.
Aquele dia parecia, assim especial e a cidade se engalanou. Ainda cedinho, adentrou a vila o famoso “ Circo Moscovita”. Já chegaram fazendo alarde, com uma retreta pelo meio : palhaços, mágico, anões, equilibristas, mulheres em biquinis sumários desfilando pelas ruas da cidade e convidando a todos para os espetáculos que aconteceriam, como sempre, em curtíssima temporada.
--- E o palhaço o que é?
--- É ladrão de mulher !
Matozinho respirou fundo e vestiu a sua melhor roupa para receber os artistas que chegavam . Armaram o circo na beira do Paranaporã que estava com pouca água, quase batendo piaba, naquele tórrido setembro. Todos os artistas chegaram espremidos em duas kombis velhas. Todos tinham muiltifunção. O dono, já idoso, fazia mágicas, a esposa era sua partner; os malabaristas , trapezistas, equilibristas e palhaços e as esposas todos subiam ao picadeiro à noite e, durante o dia, cuidavam da infra-estrutura circense. Eles mesmos esticaram a empanada velha , tipo mini-saia, também chamada de “tomara-que-não-chova” e prepararam o espaço para as apresentações. No meio um picadeiro precário e acima alguns balançadores, em feitio de trapézios. Parte das acrobacias aéreas podia ser vista de fora, por quem não tinha comprado o ingresso e ficava ali arriscando uma possível “hora dos miseráveis”. Ao derredor, montaram três barracas que acomodavam todo o elenco do circo. Falavam com um sotaque carregado tentando demonstrar uma possível, mas improvável, origem estrangeira da trupe , uma mistura de espanhol-inglês-francês-pernambucano , quase um esperanto ! Era uma ingrizia de famílias e filhos dos mais diversos relacionamentos que parecia difícil, aos de fora, entender a divisão de espaços. Coisas de artistas.
O “Moscovita” chegou numa quinta a Matozinho, já com um corso pelas ruas da vila. Feitos os contatos políticos, escolhido o espaço para alocação do circo, marcaram a estréia para o domingo à noite. Distribuíram-se, como é de se esperar, cortesias para todas as altas autoridades locais. Prefeito, secretários municipais, juiz, vigário, delegado , cabo e soldados. Durante a sexta e o sábado os artistas , nos intervalos da montagem, desfilavam pela cidade, convocando a todos para os espetáculos.
No domingo à noite, a beira do Paranaporã parecia uma Broadway. A casa estava repleta de pessoas de todas classes sociais. Nos camarotes da primeira fila, o juiz Dr. Hermenegildo Bembém e a esposa; o prefeito Sindé Bandalheira e a primeira dama, D. Guilhermina; o presidente da Câmara Saturnino Bilhar com a esposa; Padre Vanderico; Gumercindo Seridó , o delegado , junto com a esposa e a filha Tequinha de uns oito anos; todos eles perfaziam quase que uma mesa solene de abertura dos trabalhos. De repente, após um ruflar de tambores, uma voz em off anunciou o início do espetáculo:
---“Senhoras e Senhores, distinto público de Matozinho, o Circo Moscovita, com a graça de Deus e de São Jorge e Padre Cícero tem a honra de apresentar o espetáculo desta noite. O Drama : “O Cego de Barcelona”.
De repente, quatro atores invadem o palco, com um figurino paupérrimo e encenam por uns trinta minutos um dramalhão destes de deixar a platéia em lágrimas. Seguiram-se o mágico encantando a platéia, os malabares, o equilibrista. Os matozenses estavam tomados de um maravilhamento incontrolável. E vejam que ainda faltavam várias atrações, entre elas os trapezistas que geralmente fechavam com chave de ouro a noite esplendorosa. Ninguém esperava o contratempo que estava prestes a surgir. De repente, entram no picadeiro os palhaços “Bolachinha & Biscoitão”, como se sabe, palhaço de circo pobre é quem segura a barra. Outra característica é que geralmente apelam para piadas mais picantes . Bolachinha e Biscoitão não fugiam à regra, contarem umas duas piadas de papagaio e umas outras duas de putas e bichas, o que já deixou o primeiro pilotão de camarotes arrepiado. O pior era o bordão da dupla repetido a cada minuto e seguido de movimentos sensuais de cadeiras:
--- Ai , minha fia, aprume o buraquim, só vai muiando...!
O delegado Gumercindo não agüentou muito tempo. Além da filha presente, o vigário, a primeira dama, a mulher do juiz... Resolveu acabar com aquela putaria de uma vez por todas. Chamou, imediatamente, o Cabo Inocêncio e autorizou:
--- Cabo, isto aqui virou um verdadeiro cabaré. Onde já se viu tanta esculhambação junta ? Nem na Rua do Caneco Amassado! Tome as providências imediatamente, cabra !
O cabo, mediante a ordem dada, invadiu o picadeiro de cacetete em punho e deu umas duas lapadas no couro dos palhaços , enquanto gritava:
--- Que putaria é essa, seus filhos de rapariga ? A mãe de vocês só pode ter uns priquito tudo afolosado, seus chupador de caceta ! Se vocês continuarem com essa putaria, sem respeitar as autoridades presentes, vou enfiar esse cacetete no olho do cu de vocês , rodar dentro até lascar todas as pregas , até a prega rainha ! Vocês não tão vendo meu galão não ? Não respeita um cabo, não ? Tão pensando que esssa divisas aqui no meu peito foram pregada foi com sebo de pica, foi , suas quenga desclassificada?
Depois dessas reprimendas bem dosadas, as autoridades locais respiraram fundo e a moralidade finalmente foi restabelecida na cidade de Matozinho. E o espetáculo pode continuar candidamente e sem interrupções.

Crato, 13/02/09

sábado, 7 de fevereiro de 2009

D. Hélder e o sonho possível

“Felizes aqueles que sabem que
para se manter o mesmo durante
a vida, é preciso mudar muito”
D. Hélder


O tempo é inexorável com algumas pessoas. Não bastasse a destruição física -- roubando-lhes as energias, minguando-lhes as forças, sugando-lhes a beleza -- , a vida transforma-os, na mor parte das vezes, em seres amargos, azedos e muitas vezes insuportáveis. Os anos , também, vão trazendo o conformismo, a acomodação, a inércia , prendendo os homens ao passado e os tornando avessos ao progresso, à mutabilidade da vida , ao incessante renascer do universo. Em pouco , não só vão ficando velhas as pessoas, mas também chatas , intolerantes e obsoletas como um computador XT. Viram meras peças de um museu biológico e, quando a morte por fim chega, com todos os seus sortilégios, já não existe muito o que abocanhar : apenas uma múmia ambulante a aguarda, com uma triste história escrita num poeirento papiro. O que fica de quase todos é mais uma lembrança da vitalidade passada do que da serenidade presente.
A contemporaneidade , por outro lado, é privilégio de poucos. Pouquíssimos partem deixando um vácuo de contribuições a ser doada aos novos tempos. Raros são aqueles que fazem falta real , que abandonaram a terra com uma obra ainda inacabada , que poderiam por fim, mudar em alguma coisa os próximos capítulos da história da humanidade.
Senti exatamente isso, quando perdemos D. Hélder Câmara , no início da semana. Aos 90 anos, brotava dele a alegria e o entusiasmo da juventude, a cada instante. Conseguiu conservar o élan intacto, durante toda a existência e pregava o sonho de criança embotado num ideal de luta e não violência. Lutou incansavelmente, durante todos os seus dias, pelos mais arraigados ideais de justiça social e paz entre os semelhantes. Ele foi, sem nenhuma dúvida, a pessoa nessa terra que mais abalou o meu agnosticismo : aproximar-se dele era sentir , imediatamente, a existência de uma alma, um espírito, uma força superior, escondida por baixo daquela figura magra, frágil, esquálida.
Há duas passagens de D. Hélder que me marcaram a vida definitivamente. A primeira, quando celebrou a missa da minha formatura, no final dos anos 70. Na homilia , em meio àquela oratória típica, forte e emocionante , ele dizia que o maior esforço que todos devíamos fazer era no sentido de não nos deixar embrutecer pelos ínvios caminhos da vida que se abriam para todos nós ,naquele exato momento, e fechava biblicamente:
-- “Vocês nunca devem perder a capacidade de chorar !”
Aquilo nos foi dado como um instrumento, um termômetro para que pudéssemos, a todo instante, na dura vida de esculápio , poder aquilatar se éramos apenas um simples técnico da arte de curar ou um artista da arte médica.
Anos depois, num Congresso de Médicos Residentes, em plena ditadura militar, era bonito vê-lo falar sem ódio e sem alimentar sentimentos de vingança. Fora perseguido, ameaçado, tinham matado e torturado auxiliares diretos seus e andara prestes a sofrer atentados pessoais. Em nenhum momento demonstrava rancor qualquer de seus detratores ; transparecia, claramente, que apenas sentia pena . Contou-nos , na ocasião, que , dias atrás, um coronel com seus sequazes, entrou de supetão na igrejinha modesta onde passou a maior parte da sua vida, na Boa Vista em Recife. Gritando, o militar, perguntou onde estavam escondidos os comunistas que ele vivia acoitando. D. Hélder nunca negara guarida aos perseguidos, sabia que o próprio catolicismo já vivera perseguido e escondido nas catacumbas. Calmo, respondeu que não sabia o que ele estava inquirindo. O Coronel, ameaçador, disse que o reverendo sabia sim e, se estivesse mentindo, iria responder pelos atos subversivos. D. Hélder, tranqüilo, retrucou:
-- Meu filho, você é novo e não sabe, mas o mundo é uma roda, hoje você está lá no topo... Mas a roda, roda, roda... daqui uns dias, sem que ao menos você perceba, eis que você descobre que está lá embaixo... igualzinho a esses que você chama hoje de subversivos... Você pode precisar de guarida e , não se faça de rogado, é só vir para cá que eu te escondo do mesmo jeitinho... O Coronel, perplexo, deu meia volta e saiu...
Que lição de vida para aqueles que ao assumirem chefias, posições executivas, cargos públicos , se acham eternos, semideuses e não se intimidam em pisar os subordinados, como se o mundo não rodasse e a vida também não tivesse movimento de rotação e translação...
De todas as pessoas que conheci na vida, D. Hélder foi a que mais mereceu o adjetivo de Santo.



07/02/09 - D. Hélder Hoje faria 100 Anos !

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

A Paisagem lateral

Gostaria de comentar com vocês, caros leitores, alguns dados recentes do IBGE referentes à população brasileira. Sentados confortavelmente na nossa poltrona, nem percebemos o dinamismo da vida que corre à nossa volta. Sou um colecionador de fotos antigas do Crato e , quando as contemplo, muitas vezes fico extasiado com as mudanças ocorridas. A paisagem dos anos 20 está quase que irreconhecível, as vestimentas das pessoas mudaram da água para o vinho, os carros antigos parecem de museu. Pois é , amigos, junto com tudo modificaram-se, também, os costumes. Precisamos estar atentos a isto sob risco de terminarmos obsoletos igualzinhos à paisagem da foto. A população brasileira tem crescido numa taxa bem menor, tem aumentado o contingente de idosos e decrescido a percentagem de jovens. A partir de 2062 estima-se que o número de mortos será maior que o dos que nascerão. Temos , sem perceber, uma bomba relógio com estopim aceso : o país não tem nenhuma estrutura para acolher o grande batalhão de idosos que vem surgindo. Não temos clínicas específicas, faltam-nos geriatras ( uma especialidade rara ) e simplesmente carecemos de outros membros da equipe multidisciplinar treinados como enfermeiros, psicólogos, terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas. Além de tudo, não temos abrigos suficientes para acolher a terceira idade. Aí a questão é extremamente preocupante, pois as famílias quase não têm filhos ( a média atual é de pouco mais de 2 rebentos por casal) e estes têm que tocar o carrossel da vida que roda de forma cada vez mais vertiginosa.
A família brasileira, por sua vez, tem nuances completamente diferentes de anos atrás. Primeiro encolheu no número de pessoas. Os filhos andam muito mais solitários. Os pais, na sua maioria, trabalham fora e distanciou-se enormemente a presença materna. O número de casamentos tem crescido consideravelmente. Por outro lado multiplicou-se o número de casais separados, em 2007 já ocorria uma separação para cada quatro casamentos realizados. De 1984 quando se aprovou a Lei do Divórcio até 2007 os números triplicaram. O 2º. Casamento já representa quase 20% do total de enlaces matrimoniais, na atualidade. Isto, claro, sem falar na grande quantidade de uniões estáveis não legalizadas formalmente nas suas mais variadas maneiras e entre os mais diversos sexos. Junto disso tudo têm se ampliado infinitamente os graus de parentescos. Convivem de perto irmãos de diferentes casamentos; ex- esposas e ex-esposos múltiplos; cunhados das mais variadas modalidades; sogros-sogras diversos; netos, netos tortos, sobrinhos multifacetados; avós diretos , avós tortos; aponham-se a isto todas as possibilidades de relacionamento entre as mais variadas determinações sexuais e se perceberá que as combinações são quase que infinitas. Esta diversidade se numa extremidade pode fazer crescer exponencialmente o risco de conflitos, na outra se delineia a possibilidade de se estender o guarda-chuva acolhedor familiar, encontrando-se caminhos para tecer os fios da tolerância e desatar os nós da diferença. A maior parte das separações ( 76%) tem sido procedidas de forma consensual e talvez fosse possível melhorar ainda mais esta estatística se criássemos artifícios jurídicos no momento da enlace, com o fito de dirimir a disputa posterior, tornando o procedimento mais fluído e menos contábil.
Junto a tudo isto os costumes, no vácuo destas mudanças, metamorfosearam-se imensamente. A iniciação sexual dos jovens tem sido feita de forma cada vez mais precoce. O namoro que na minha geração transcorria na Praça da Sé, hoje a regra é que ocorra no Motel. Virgindade é um valor arcaico nos tempos atuais e , de tão raro, sob risco de extinção, devia ser cadastrado no IBAMA. Alguém ainda ouviu falar de um casamento feito à força por conta de o rapaz ter mexido com a moça ? A lavanderia que lavava a honra das donzelas acabou totalmente desativada por falta de clientes. Casais do mesmo sexo assumem seu relacionamento publicamente sem grilos maiores e seus afetos já começam a fazer parte da paisagem natural das nossas ruas e logradouros. E as mulheres ( que já são franca maioria no Brasil) avançaram no mercado de trabalho e já não existe quase nenhuma atividade no país em que não estejam presentes e trabalhando com afinco e dedicação. A iniciação sexual precoce elevou a taxa de adolescência na gravidez que hoje beira os 20% e que poderia, certamente , ser minimizada se encarássemos os tempos atuais com a franqueza necessária e sem os preconceitos tão frequentes. É , meus amigos, não adianta como avestruz enfiar a cabeça no buraco do passado , senão se acaba atropelado pela locomotiva do progresso.
Existe ainda uma outra realidade própria dos tempos atuais. Cada vez mais as pessoas têm preferido morar sozinhas e a percentagem tem aumentado com a idade. Até os 19 anos apenas 1% dos brasileiros optam pela solidão, mas esta taxa chega a 15% partir dos 70 anos. As causas certamente são multifatoriais, no entanto, a sociedade parece ir se tornando cada vez mais individualista. Esta perspectiva talvez seja um reflexo do que acontece a nível mundial entre povos e nações. Desistir simplesmente da possibilidade de convivência com os outros é um pouco diminuir a esperança de convivência pacífica e harmoniosa no planeta.
Depois que se chega nos “Enta” existe uma tendência natural de se observar os tempos modernos com olhar atravessado. “ No meu tempo, sim, era diferente... a coisa era muito melhor..!” Esta é a frase mais típica dos mais maduros quando se detalham os sempre ditos vergonhosos costumes atuais. E ela é um moto-contínuo, sempre repetida de geração a geração. O que aconteceu : o filme passou à nossa frente sem que assistíssemos a ele. Claro que naqueles tempos, avaliando com nossos valores, tudo era melhor para nós : curtíamos o dourado caminho à frente , agarrados na direção, na boléia do nosso caminhão. Hoje, na carroceria, meio a reboque, contemplamos apenas a paisagem lateral que passa rápida e indefinida e a estrada distante enevoada que já se foi e não retorna nunca mais. Bons tempos aqueles !

05/02/09

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Contatos Imediatos

Hoje, passados tantos anos, ainda existem controvérsias sobre a origem dos estranhos episódios que passaram a acontecer em Matozinho, naquela época. O único consenso neste assunto ,tão pouco palatável na cidade ,é que o desencadeamento dos fenômenos paranormais coincidiu com a chegada de um sujeitinho esquisito, em Matozinho. Dizia vinha das bandas de Quixadá e narrava por todo canto a história da invasão de Ufo´s e da convivência de ETs com a população, em plena luz do dia, na terra da pedra da galinha. Seus relatos juntavam uma grande audiência e nosso viajante não tinha meias palavras para contar , com detalhes, todos os fatos, para uma platéia aturdida e progressivamente temerosa. Reunidos no Bar do Giba , ele informava que lá os discos voadores desciam na cidade em plena luz do dia e os ETs faziam compras nos supermercados e conversavam com a população numa linguagem metálica e pouco compreensível. Vezes por outras levavam , afirmava ele, quixadenses nas suas viagens e muitos já conheciam perfeitamente o planeta Ω425( ômega 425) , na constelação Alfa de Centauro. Não bastasse isto, constatou-se que dezenas de habitantes do sertão central estão chipados , sendo controlados a distância pelos ET´s.
Não se sabe bem que influência tiveram estes relatos no desenvolvimento dos estranhos fenômenos que, a partir daí, começaram a surgir , reiteradamente, em terras matozenses.Pessoas desaparecendo por períodos irregulares de tempo, aparição de discos voadores e contatos imediatos de todos os graus. As histórias se acumularam tanto que, vendo a população em pânico, o edil municipal, Cel. Feliciano Pedrácio, resolveu realizar um grande encontro na cidade, com fins de discutir tão premente assunto. Para tanto, convidou o Prof. Agobaldo Franz, renomado ufologista da capital, homem acostumado, segundo se dizia, a pegar ET´s pelos cornos.
No dia aprazado, chegou o cientista em Matozinho, na sopa das quartas feiras, com aquela cara de fugitivo de hospício : magricela, óculos fundo de garrafa, cabelo desgrenhado, uma grande pasta de couro numa das mãos e um bicho parecido com um teodolito na outra. Soube-se depois se tratar de um telescópio. Pediu ao Cel. Feliciano uns dois dias para pesquisar, em campo, os fenômenos e o 1o. ENMU -- Encontro Matozense de Ufologia—marcou-se para a sexta-feira e sábados seguintes. A princípio imaginaram realizar na Câmara Municipal o ENMU, mas foram tantas as inscrições que resolveram levar para a praça da matriz. Cada um responsabilizou-se pela cadeira e pelo guarda-sol.
Na sexta-feira, enfim, formou-se a mesa dos trabalhos com o prefeito, o professor Agobaldo e o presidente da Câmara. A platéia mal notou que uma das cadeiras na mesa estava estrategicamente vazia. Após os discursos de praxe, cedeu-se a palavra ao nobre cientista. Sem meias palavras ele explicou que o problema mostrava-se simples :Matozinho encontrava-se numa grande rota universal de UFO´s. Isto porque existe um portal intergaláctico que comprime o espaço-tempo e este abre-se sobre a Serra da Jurumenha que circunda esta cidade. Segundo ele, mais de trinta matozenses já tinham sido abduzidos e havia suspeita de mais de cinqüenta chipações em habitantes da cidade. Praticamente quase toda a vila já tinha tido contatos de diversos graus com os extraterrestres. Para provar minhas teorias, ele completou, para o assombro de todos, trouxe aqui para o nosso encontro um ET do planeta Ψ 127 , ele está sentado aqui na nossa mesa de trabalhos.Como ninguém o visse, ele apontou para a cadeira vazia e lascou:
-- Ele está aboletado ali, chama-se Zibim, mas só eu que tenho poderes extrassensoriais posso vê-lo.Todos vocês , no entanto, podem entrevista-lo através de mim. Me perguntem que eu traduzo para ele e vice-versa.
Por mais de duas horas a entrevista rolou solta, até que o professor traduziu a última mensagem do ET :
--- O bicho tá dizendo que tá encafifado, num agüenta mais, já tá todo engembrado com uma dor que começa nas cruz e responde no osso do mucumbu. Ele quer parar. .
No sábado, o 1o. ENMU terminou com todo sucesso deste mundo, já com promessa do prefeito de novas edições nos próximos anos. Ele se convencera : finalmente Matozinho encontrara sua vocação como cidade e o turismo prosperaria como nunca, até mesmo com a possibilidade de um turismo intergaláctico, fato que já tinha sido acordado, previamente com Zibim.
Meses depois, Rui Pincel, o incréu da vila, fez aquelas que, talvez tenham sido as considerações de maior embasamento científico sobre o assunto:
--- Ô povo mentiroso esse povo de Matozinho ! Jojó Fubuia , bêbado, viu uma caixa de marimbondo de chapéu e espalhou que era um disco voador e que , inclusive, tinha sido atacado pelos canhões do bicho, já que tava cobertinho de ferroada. Neguim desaparece com rapariga, durante três dias, e depois diz à patroa que foi abduzido.Cabra tá devendo no comércio, anoitece e não amanhece, e ninguém diz que é velhaco não ! Tá viajando, meu filho, lá no tal deste planeta “fi 127” . Ô planetinha fi duma égua ! De noite, é um pula pula de ET ,de muro em muro , que a previsão do prof. Agobaldo tá até subestimada ! Num tem ninguém chipado não, mas acho que chifrado aqui em Matozinho já tem pra mais de cem. Mariquinha, mulher de Valdo, o padeiro, desapareceu por uma semana e diz que foi abduzida. Engraçado é que, no mesmo dia, Pedro das Bananas foi também seqüestrado por ETs. Coincidentemente, eles voltaram no mesmo dia, devem ter pegado o mesmo disco voador ! Agora Mariquinha apareceu com um bucho e jura para o marido que aquilo foi um contato imediato do quarto grau .Vôte! É isso mesmo , meu amigo, ela furunfou com o ET. O marido, meu Deus, anda até feliz, imaginem que até já escolheu o nome do menino:
--- ETeValdo ... !

01/02/09